sábado, 30 de maio de 2020

Joana Oliveira, uma barrista que se afirma


Fig. 1 – Passeio de Santo António com o Menino Jesus (2020). Joana Oliveira (1978).
Colecção de Alexandre Correia.

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Santo António e Estremoz
Santo António de Lisboa é um Santo venerado pela Igreja Católica, seguramente o Santo que é objecto da mais intensa devoção popular. O seu culto foi incentivado em Estremoz pelos religiosos da Ordem de São Francisco de Assis, sediados no Convento de São Francisco, desde os primórdios da sua construção, no século XIII, em data imprecisa, balizada pelos reinados de D. Sancho II – D. Afonso III (1239-1255).
Daí não ser de admirar que a iconografia antonina inclua exemplares da barrística popular estremocense, desde os sécs. XVIII-XIX.
Iconografia de Santo António
A iconografia de Santo António representa-o correntemente a envergar o hábito castanho da ordem franciscana, com terço e cordão à cintura, acompanhado do Menino Jesus, o que simboliza a intimidade de Santo António com Cristo. Em geral, o Menino Jesus é mostrado de três modos diferentes: - SOBRE A BÍBLIA: Significa que Santo António anunciava Jesus Cristo através de inúmeras citações do Evangelho; - AO COLO DE SANTO ANTÓNIO: Traduz a profunda intimidade do Santo com Jesus, fonte da sabedoria e dos dons que nele se manifestavam; - MOSTRADO AO SANTO PELA VIRGEM MARIA: Revela a intensa devoção de Santo António pela Virgem.
Existem ainda iconografias antoninas muito específicas que têm a ver com os Milagres de Santo António. Tal é caso do Sermão de Santo António aos peixes, do qual irei falar a seguir.
Sermão de Santo António aos peixes
Alguma iconografia de Santo António representa o "Sermão de Santo António aos peixes". Vejamos o que nos diz o Padre António Vieira (1608-1694) no seu “Sermão de Santo António aos peixes” publicado pela primeira vez em 1682:
“Pregava Santo António em Itália, na cidade de Rimini [1], contra os hereges, que nela eram muitos; e como erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o Santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele, e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida. Que faria neste caso o ânimo generoso do grande António? Sacudiria o pó dos sapatos, como Cristo aconselha em outro lugar? Mas António, com os pés descalços, não podia fazer esta protestação; e uns pés, a que se não pegou nada de terra, não tinham que sacudir. Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a prudência ou a covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia naquele, não se rendeu a semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da sua doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: “Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes! Oh! maravilhas do Altíssimo! Oh! poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos; e, postos todos por sua ordem com as cabeças de fora da água, António pregava, e eles ouviam”.
É o próprio Camões (c. 1524-1580) que relata: “Com que os mudos peixes / saem ouvindo ao ar aberto.” [2]. De resto é bem conhecida a quadra popular: "Santo António Português,/Quando foi pregar ao mar,/Até os peixes na água,/Se puseram a escutar!" [3]     
Passeio de Santo António com o Menino Jesus
A temática antonina traz-me à mente os versos do “Passeio de Santo António”, de Augusto Gil (1873-1929), magistralmente declamados pelo saudoso actor João Villaret (1913-1961). Os versos incluídos no livro de poemas “Luar de Janeiro” (1909), mostram a dimensão humana e ingénua com que são tratados os personagens Santo António e Menino Jesus. Perante alguma impertinência do Menino Jesus, Santo António ameaça fazer queixas à Mãe: “Corado como as vestes dos cardeais, / Achou esta saída redentora: / - Se o Menino Jesus pergunta mais, / ... Queixo-me à sua mãe, Nossa Senhora!”. O poema é todo ele revelador da grande intimidade entre Santo António e o Menino Jesus.
Criações de Joana Oliveira
Alexandre Correia, porventura o maior coleccionador português de Santo António, facultou-me as imagens de duas criações da barrista Joana Oliveira, que frequentou o Curso de Formação sobre Técnicas de Produção de Bonecos de Estremoz, que no ano transacto teve lugar em Estremoz, no Palácio dos Marqueses de Praia e Monforte. Essas imagens são “Passeio de Santo António com o Menino Jesus”(Fig. 1) e Sermão de Santo António aos peixes” (Fig. 2). De cada uma delas vou falar em particular.
Passeio de Santo António com o Menino Jesus (Fig. 1)
A tonsura na cabeça de Santo António frisa a sua castidade. A auréola na cabeça de Santo António e do Menino Jesus, sublinha a santidade de ambos.
Santo António enverga o hábito franciscano castanho, com o cordão à cintura. Na mão direita segura uma Bíblia de capa castanha que comprime contra o peito. Parece ir dar a mão ao Menino Jesus, que veste túnica azul clara e que segura na mão esquerda três lírios amarelos (Porventura uma alegoria à Santíssima Trindade, já que o amarelo traduz a luz.). Qualquer deles calça sandálias castanhas com tiras.
Naturalmente que a cor das vestes tem um significado profundamente simbólico. O castanho de Santo António é a cor da terra e simboliza a humildade, a simplicidade e a pobreza que são apanágio dos franciscanos. O azul claro do Menino Jesus representa a espiritualidade, a eternidade, a paz, a pureza e o desapego da vida mundana.
A representação é muito feliz. Sugere: Intimidade (Caminham juntos); - Confiança mútua (Santo António e o Menino vão praticamente de mão dadas, sem contudo se tocarem); - Cumplicidade (Olham um para o outro); - Comunicação (Parecem falar entre si); - Amor aos Evangelhos (Santo António comprime a Bíblia contra o peito); - Partilha (O Menino transporta os lírios, atributo de Santo António).
De registar que o conjunto não assenta numa peanha. Esta começou por ser usada pelos barristas populares de Estremoz, os quais utilizaram como modelo imagens devocionais de escultores eruditos em madeira, que eram objecto de culto nas nossas igrejas e conventos. Todavia libertaram-se dessa "canga". A peanha tem sido utilizada por quem o entende fazer, mas há barristas como José Moreira, Fátima Estróia e Maria Luísa da Conceição, que embora tenham modelado imagens devocionais com peanha, perceberam que esta era dispensável e são conhecidos trabalhos seus (eu próprio os tenho), em que as imagens de Santos não assentam nem em peanhas nem em andores. Nunca passou pela cabeça de ninguém, dizer que não são imagens devocionais ou que não possam ser considerados Bonecos de Estremoz. Tal é o caso, que aqui registo e saúdo.
As duas figuras assentam numa base quadrangular. Sendo o quadrado símbolo da perfeição e da estabilidade, a geometria da base poderá constituir uma alegoria aos quatro Evangelistas (Mateus, Marcos, Lucas e João). Por uma questão técnica, os vértices do quadrado foram cortados em bisel, para conferir mais solidez à base. Esta é de cor verde, cromatismo ligado à natureza, ao crescimento, à renovação, à esperança e à liberdade. A orla da base é castanha, cor do hábito do Santo. No seu conjunto, as cores verde e castanha da base reforçam a sobriedade do conjunto.
Voltando à peanha cujo uso é advogado por alguns, julgo não ser despropositado tecer algumas considerações suplementares. Na sua imponência ornamental, a peanha configura o afastamento do devoto em relação à imagem devocional. Pelo contrário, uma imagem devocional sem peanha traduz a aproximação do devoto em relação à imagem devocional, já que o Santo fica no plano térreo do devoto. Por outras palavras, trata-se de uma abordagem artística mais “terra a terra”, que a meu ver humaniza mais a iconografia, sem todavia a dessacralizar.
Sermão de Santo António aos peixes (Fig. 2)
Santo António enverga o hábito franciscano castanho com terço e cordão à cintura e calça sandálias castanhas com tiras. A tonsura na cabeça salienta a sua castidade, mas a cabeça não apresenta auréola por a representação se referir a um episódio da sua vida, antes de ter sido canonizado.
A figura do Santo está assente num plano mais elevado em relação ao nível do mar. Os pés pisam aquilo que configura ser rocha cinzenta, provável alegoria à dor sentida pelo Santo, por não ser escutado pelos homens e se ver forçado a pregar aos peixes. Junto aos pés, dois lírios branco e lilás, provável alegoria à inocência do Santo. Este, de boca aberta, prega aos peixes olhando para o céu como se recebesse a palavra de Deus. O seu sermão é acompanhado de linguagem gestual.
Aos pés do Santo rebentam as ondas do mar azul, repletas de espuma. Da água emergem peixes (em número de quatro), que parecem escutar as palavras do Santo. Será uma alegoria às quatro virtudes fundamentais (Sabedoria, Fortaleza, Temperança e Coragem), referidas por Platão (428/427 – 348/347 a.C.), na “República”?
Epílogo
Os trabalhos da Joana Oliveira são trabalhos expressivos, reveladores de forte personalidade, sensibilidade e bom gosto que se traduzem em marcas identitárias muito próprias, que a maioria das vezes só são conseguidas ao fim de muito tempo de traquejo, após os barristas se terem conseguido libertar da influência daqueles que os precederam e/ou ensinaram, deixando de imitar ou tentar imitar a sua produção, não o conseguindo muitas vezes. Com o trabalho da Joana Oliveira, a Barrística Popular de Estremoz está de parabéns e ela própria também. Pois claro!
O seu caminho deverá ser sempre uma procura, com prazer no caminho e na descoberta. E com tal procedimento é sempre possível manter uma estrita fidelidade ao modo de produção, consensualmente reconhecido como "sui generis" e de Estremoz.

[1] - Rimini, cidade do NE de Itália, na região de Emília, província de Forli, situada na costa do Adriático e na foz do Mareccha, a 44º 3’ 43" de latitude Norte. A cidade de Rimini teve origem na antiga Ariminum, fortaleza e posto de grande importância política e militar no período romano. Já na Idade Média, Rimini foi porto de importância e domínio dos Malatesta, senhores cruéis e requintados mecenas. Actualmente é uma das maiores e mais famosas estações balneares de Itália.
[2] - CAMÕES. Écogla 6.ª das Rimas Várias.
[3] - Quadra recolhida por Armando de Mattos (ver Bibliografia).

BIBLIOGRAFIA
- MATOS, Hernâni António Carmelo de. Bilhetes-Postais Comemorativos do VII Centenário do Nascimento de Santo António de Lisboa in Catálogo da Inteiromax - Eça de Queiroz 2000, Póvoa de Varzim, Agosto de 2000.
- MATTOS, Armando de. Santo António nas Tradições Populares. Porto, 1937.

Hernâni Matos

Fig. 2 - Sermão de Santo António aos peixes (2020). Joana Oliveira (1978).
Colecção de Alexandre Correia.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Bonecos de Estremoz e pandemia: Peralta e Sécia


Peralta e sécia na pandemia (2020). Irmãs Flores.

Introdução
No início de Março de 2020 alastrou em Portugal uma pandemia de COVID 19. Como coleccionador e investigador da barrística popular estremocense, surgiu-me na mente a ideia de que poderiam e deveriam ser modelados Bonecos que perpetuassem no barro, a pandemia que atravessamos. A ideia começou por ser posta em prática, através da criação pelo barrista Ricardo Fonseca da figura de São Roque, tido como Santo Protector contra as epidemias e que não havia ainda sido modelado pelos barristas de Estremoz.
A ideia inicial tinha pernas para andar e podia estender-se noutras direcções. Foi assim que pensei que para além daquela imagem devocional, podiam ser criados Bonecos que retratassem em contexto social a resposta possível à pandemia. Em termos de prevenção, uma das atitudes a tomar passa pelo uso de máscaras comunitárias em ambientes fechados. Uma opção possível passava assim pela modelação dum Boneco usando máscara. Todavia, a pandemia não escolhe nem sexo, nem idade, nem etnias. Haveria pois que confeccionar dois Bonecos, um referente ao sexo masculino e outro ao sexo feminino. Optei por representações de adulto de idade indeterminada e como havia que escolher uma cor para a pele, escolhi a branca, por ser a cor de pele dominante em Portugal.
Bonecos da Tradição ou Bonecos da Inovação?   
Chegado a este ponto, tinha duas opções possíveis: serem recriados Bonecos da Tradição ou inovar, criando novos Bonecos. Que fazer então?
Estamos em presença de tempos que são tempos de mudança, o que me levou a lembrar Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, / Muda-se o ser, muda-se a confiança: / Todo o mundo é composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades.”; “Continuamente vemos novidades, / Diferentes em tudo da esperança: / Do mal ficam as mágoas na lembrança, / E do bem (se algum houve) as saudades.”
Fui levado a concluir que seria mais interessante e preferível, recriar Bonecos da Tradição, já que permitiria aprofundar e enriquecer o seu conjunto. Cada um deles encerra em si as marcas de identidade próprias dos barristas que os criaram e lhes deram alma e vida. Os Bonecos a recriar agora passariam ainda a ostentar marcas que os associavam temporalmente ao período da pandemia.
Que Bonecos da Tradição?   
Chegado aqui, tinha novas opções a fazer que passavam pela escolha dos Bonecos da Tradição que iriam ser recriados.
As “Figuras de presépio” e as “Imagens devocionais” foram excluídas à partida do conjunto das hipóteses a considerar, dada a sua função simbólica.
Restavam então as figuras que desempenham uma função decorativa: as “Figuras da faina agro-pastoril nas herdades alentejanas”, as “Figuras que têm a ver com a realidade local”, as “Figuras intimistas que têm a ver com o quotidiano doméstico”, as “Figuras de negros”, as “Figuras destinadas a assinalar períodos festivos” e as “Figuras satíricas”. Obviamente que estes três últimos tipos de figuras foram eliminados imediatamente, por a sua utilização carecer de sentido face aos meus propósitos. O mesmo se passou com as “Figuras da faina agro-pastoril nas herdades alentejanas”, já que isso seria limitar a representação a um contexto rural, bem como as “Figuras intimistas que têm a ver com o quotidiano doméstico”, já que a importância do uso da máscara sobressai na interacção social. Restavam então as “Figuras que têm a ver com a realidade local”. Por não serem socialmente predominantes, excluíram-se as figuras do “Sector militar” e do “Domínio religioso”. Restaram então as figuras de “Âmbito civil”. Chegado aqui, optei por escolher a imagem do “Peralta” e da “Sécia” (esta última vulgarmente designada por “Senhora de Pézinhos”).
A escolha das cores
Havia agora que definir as cores, convindo não esquecer que estamos em Portugal, “a ditosa pátria minha amada”, no dizer de Camões. As cores nacionais são as cores da Bandeira Nacional adoptada pela República instaurada pela Revolução de 5 de Outubro de 1910. O verde-escuro e o vermelho são as cores fundamentais e o amarelo e o branco são cores secundárias.
Pensei então que o traje do “Peralta” e da “Sécia” deveriam sublinhar simultaneamente a diferença e a complementaridade entre homem e mulher. Escolhi para a roupa feminina a cor vermelha, ornada de verde-escuro e para a roupa masculina, a cor verde-escuro, ornada de vermelho. Os chapéus deveriam ser ambos amarelos.
O simbolismo das cores
As cores da bandeira nacional têm um significado simbólico diversificado, que pode assim ser sistematizado: - VERMELHO - associado à paixão, à energia, à coragem e à revolução; - VERDE – ligado à natureza, ao crescimento, à renovação, à esperança e à liberdade; - AMARELO - traduz a luz, o calor, o optimismo, a alegria, a felicidade e a prosperidade; - BRANCO – simboliza a paz, a espiritualidade, a virtude, a inocência e a virgindade.
A materialização duma ideia
Contactei as Irmãs Flores expondo em traços sumários a minha ideia de ver modeladas as figuras do ”Peralta” e da “Sécia“, usando máscaras de protecção contra a pandemia. Dei também conta das cores que gostava que fossem utilizadas, para situar as figuras em contexto português. Disseram-me imediatamente que podiam modelar as imagens pretendidas e que a combinação de cores que eu propunha, era por elas usada com frequência.
As Irmãs Flores interpretaram a seu modo o que eu propusera e a sua mestria criou duas figuras muito belas, de cunho verdadeiramente popular e que correspondem inteiramente aquilo que eu pretendia (Fig. 1 e Fig. 2).
Peralta
Figura antropomórfica masculina, de pé, com as mãos na anca e sapatos negros. Na cabeça, o cabelo é castanho e está parcialmente coberto por chapéu amarelo, de aba larga e virada para cima.
Os olhos são dois pontos negros, encimados por dois arcos igualmente negros, simulando as pestanas e as sobrancelhas. Uma máscara azul clara com orla branca e estreita, cobre a boca e o nariz, do qual só é visível a parte superior. Da máscara sai uma atadura branca que a prende às orelhas.
Traja um fato verde-escuro. As calças têm uma bainha vermelha. O casaco tem uma orla e punhos vermelhos. A gola é igualmente vermelha mas decorada com seis flores, que apresentam uma corola verde e oito pétalas, alternadamente brancas e amarelas. As flores estão separadas entre si por faixas transversais à gola, verdes e amarelas, que se alternam.
O casaco tem à frente uma abotoadura constituída por quatro botões amarelos, dois de cada lado. A parte detrás do casaco ostenta na horizontal dois botões amarelos, à altura da cintura.
À volta do pescoço tem enrolado um lenço amarelo, cruzado à frente e com as pontas a mergulhar dentro do casaco.
A figura assenta numa base quadrangular com os vértices cortados em bisel e pintalgada de branco, amarelo e zarcão. Verticalmente, a orla da base é cor de zarcão.
Sécia
Figura antropomórfica feminina, de pé e com as mãos na anca. Na cabeça, o cabelo é castanho, enrolado atrás em forma de troço e está parcialmente coberto por um chapéu amarelo, levantado à frente e ornamentado por três plumas igualmente amarelas mas com três pintas vermelhas em cada ponta, separadas entre si por traços longitudinais a verde.
Os olhos são dois pontos negros, encimados por dois arcos igualmente negros, simulando as pestanas e as sobrancelhas. Uma máscara azul clara com orla branca e estreita, cobre a boca e o nariz, do qual só é visível a parte superior. Da máscara sai uma atadura branca que a prende às orelhas, das quais pendem arcadas amarelas.
Enverga um conjunto de saia e casaco vermelhos. A saia é comprida e encontra-se decorada na orla inferior por aquilo que configura ser um bordado constituído por meias folhas lanceoladas, alternadamente verdes e amarelas, separadas por pétalas brancas. Ao fundo da saia, à frente, espreitam os sapatos pretos usados pela figura.    
O casaco é curto, justo ao corpo e tem uma orla e punhos verdes. A gola é igualmente verde, decorada com seis flores com corola vermelha e oito pétalas, alternadamente brancas e amarelas. As flores estão separadas entre si por faixas transversais à gola, vermelhas e amarelas, que se alternam. O casaco tem à frente uma abotoadura constituída por seis botões amarelos, três de cada lado. A parte detrás do casaco ostenta na horizontal dois botões amarelos, à altura da cintura. A gola é fechada à frente por um botão amarelo maior que os restantes.
Origens históricas                              
O “Peralta” e a “Sécia” eram os elegantes portugueses dos sécs. XVIII e XIX, que envergavam trajos garridos com demasiado apuro e enfeites. De acordo com a literatura da época e sobre a época, eram pessoas afectadas não só no trajar, como no andar e no comportamento.
No Museu Municipal de Estremoz existem exemplares daquelas figuras identificadas como sendo do séc. XIX. A sua produção foi retomada nos anos 30 do séc. XX, graças à acção do escultor José Maria de Sá Lemos (1892-1971), director da Escola Industrial António Augusto Gonçalves, que atribuiu a si próprio a missão de recuperação da tradição de manufactura dos Bonecos de Estremoz, extinta desde 1921. Para tal, utilizou primeiro como instrumento primordial dessa recuperação a velha barrista Ana das Peles (1869-1945) e depois como instrumento de continuidade dessa recuperação, Mariano da Conceição – o Alfacinha (1903-1959), mestre de olaria naquela Escola.
Estremoz, Abril de 2020
(Jornal E nº 247, de 28-05-2020)


Peralta na pandemia (2020). Irmãs Flores.

Sécia na pandemia (2020). Irmãs Flores.

terça-feira, 26 de maio de 2020

Santo António e COVID-19


Santo António (2020). José Carlos Rodrigues. Colecção Alexandre Correia.

Iconografia de Santo António
A iconografia de Santo António representa-o correntemente a trajar o hábito castanho da ordem franciscana, com terço e cordão à cintura. O hábito castanho simboliza os princípios franciscanos: humildade, simplicidade e justiça. O terço traduz que é um homem de oração. O cordão apresenta três nós que expressam: obediência, pobreza e castidade.
A iconografia figura-o ainda com um livro nas mãos, o que tem um triplo significado: representa os Evangelhos, a sabedoria de Santo António e o facto de ser Doutor da Igreja.
A iconografia caracteriza-o também através da presença do Menino Jesus, o que expressa a sua intimidade com Jesus Cristo. O Menino Jesus é apresentado em cima do livro, a Bíblia, o que significa que Santo António anunciava Jesus Cristo. Por vezes, o Menino Jesus aparece ao colo de Santo António, o que reforça a singular intimidade do Santo com Jesus.
A iconografia associa igualmente ao Santo, um lírio como símbolo de pureza e castidade, esta última reforçada pela sua representação com uma tonsura na cabeça.

Santo António e Bonecos de Estremoz
Recentemente tomei conhecimento de duas representações de Santo António da autoria do barrista José Carlos Rodrigues (Fig. 1 e Fig. 2), sobre cuja execução técnica nada tenho a observar, o que já não acontece em termos iconográficos.
A imagem da Fig. 1 enquadra-se na iconografia tradicional e nada tenho a notar sobre a mesma. Já a representação da Fig. 2, ainda que alegórica e despoletada pela actual pandemia de COVID-1 19, merece-me reparos muito sérios:
1 - Santo António usa luvas e máscara comunitária e tem a seu lado um frasco de gel desinfectante. É posta em causa a santidade e pureza do taumaturgo que o deveriam manter imune ao vírus e de o transmitir ao Menino Jesus, o qual pela sua santidade também estaria imune.
2 - Santo António está refastelado num sofá que configura ser de couro, ao que parece a usar um “tablet”. Será adequada tal representação a um franciscano que fez juramento de humildade e simplicidade?
3 - Santo António trocou a Bíblia pelo “tablet” e os Evangelhos passaram a ser sustentados pelo Menino Jesus. Será que este adquiriu a sabedoria de Santo António e passou a ser Doutor da Igreja? 
4 - O lírio está numa jarra de flores. Será para sugerir que o Santo trocou há já algum templo a Bíblia pelo “tablet” e pôs o lírio na jarra para não murchar? Será que isso não sugere que a pureza e castidade do Santo correm riscos ao usar o “Tablet”, relegando a Bíblia?
Como cidadão creio que as questões de religião devem ser abordadas com pinças e nunca tratadas com ligeireza, já que isso pode entrar em confronto com as crenças mais profundas da comunidade católica, as quais devem ser merecedoras do maior respeito.
Como investigador responsável da barrística popular de Estremoz sou uma pessoa de espírito aberto, receptiva a criações de novas figuras para além do âmbito restrito dos chamados Bonecos da Tradição. Todavia, tenho sempre presente que a nossa barrística teve origem nas imagens devocionais e nos presépios, que continuam a ser modelados desde setecentos. Desde então que os nossos Bonecos nunca se desviaram das características e do rumo identitário cimentados por séculos de modelação. As figuras humorísticas e satíricas são próprias de latitudes como Barcelos, mas não o são de Estremoz. Tal é válido não só para imagens laicas mas também e sobretudo para imagens devocionais.
Do exposto e pelo exposto creio ser legítimo concluir que a imagem da Fig. 2, não possa ser considerada aquilo que se convencionou chamar um Boneco de Estremoz. Isto não põe em causa a liberdade de criação do barrista. Acautela apenas a designação “Bonecos de Estremoz”, que tal como estes deve ser salvaguardada.

Santo António (2020). José Carlos Rodrigues. Imagem recolhida com a devida
vénia do grupo do Facebook "Olaria e Figurado Português".

terça-feira, 19 de maio de 2020

Adagiário de São Roque


São Roque (c. 1516). Iluminura do Missal de Joanna de Ghistelles, c. 1516:
Egerton MS 2125, f. 209 v.

Propus-me estudar o adagiário português dos Santos e dei conta desse estudo em três textos publicados sucessivamente:
Adagiário dos Santos - 3                 
Apesar da expressividade do culto a São Roque em Portugal, não conheço nenhum adágio português que faça referência ao dia de São Roque (16 de Agosto). Todavia, na tradição oral francesa, existem adágios que têm a ver com o calendário agrícola do mês de Agosto:
- À la Saint-Roch, grande chaleur prépare vin de couleur (Por São Roque, muito calor origina vinho de cor);
- À la Saint-Roch, les noisettes on croquet (Por São Roque comemos avelãs);
- Après la Saint-Roch, aiguise ton soc et chausse tes sabots (Depois de São Roque, afia a tua relha e calça os teus tamancos) - Diz-se aos lavradores, porque é chegado o momento de fazer os preparativos para as sementeiras de Outono;
- C'est saint Roch et son chien (É São Roque e o seu cão) – Diz-se de duas pessoas inseparáveis;
- La Saint-Roch annonce le temps d'automne (São Roque anuncia o Outono);
- Oncques pluye ne fict tord à la grand saint Roch en Retord (Nunca a chuva prejudicou o grande São Roque em Retord);
- Peigné comme saint Roch  (Pentado como São Roque) – Diz-se de alguém mal penteado;
- Qui aime saint Roch, aime son chien (Quem gosta de São Roque, gosta do seu cão) – Idem;
- Qui voit saint Roch, voit bientôt son chien (Quem vê São Roque, vê logo o seu cão) – Diz-se de duas pessoas que se seguem uma à outra;
-S'il pleu t à la Saint-Roch les truffes pousseront sur le roc (Se chover em São Roque, as trufas crescerão na rocha);
Não há adágios portugueses sobre São Roque, mas há adágios franceses. É caso para dizer:
- Quem não tem cão, caça com gato.



São Roque (1508). Iluminura do “Livre de prières de Madeleine d'Azay”, folha 27 r,
Manuscrito 355, Biblioteca- Mediateca de Nancy.

Cura de São Roque (15..). Iluminura do “ Livre d'heures à l'usage de Chalon”,
folha 108 v, manuscrito 6881, Biblioteca Municipal de Lyon.

domingo, 17 de maio de 2020

COVID - 19




Textos publicados no contexto da pandemia de COVID-19


Coronavírus COVID-19 (Blogue: 15 de Março de 2020)
Aos devotos de São Roque (Blogue: 19 de Março de 2020)
Bonecos de Estremoz e pandemia: São Roque (Blogue: 13 de Maio de 2020)
São Roque em Portugal (Blogue: 16 de Maio de 2020)
Adagiário de São Roque (Blogue: 19 de Maio de 2020)
Santo António e COVID-19 (Blogue: 26 de Maio de 2020)
Bonecos de Estremoz e Pandemia: Peralta e Sécia (Blogue: 28 de Maio de 2020)
Bonecos de Estremoz e pandemia: Ricardo Jorge (Blogue: 11 de Junho de 2020)
Auto do desconfinamento de Santo António (Blogue: 13 de Junho de 2020) 
-  Bonecos de Estremoz e pandemia (Blogue: 30 de Janeiro de 2021)


Hernâni Matos


sábado, 16 de maio de 2020

São Roque em Portugal


São Roque (séc. XVII). Escultura em madeira policromada. Igreja de São Roque, Lisboa.

Início do culto a São Roque em Portugal
As primeiras notícias sobre os milagres de Santo Roque chegadas a Portugal remontam ao final do reinado de D. João II e ao início do de D. Manuel I. A devoção a São Roque expandiu-se através da fundação duma confraria que contava com a família real e a nobreza entre os seus membros. Desde então que a Irmandade de São Roque de Lisboa tem mantido vivo o culto a São Roque.
Em 1506 teve início a construção da Ermida de São Roque no exterior da Cerca Fernandina, perto do adro onde se sepultavam as vítimas da peste. A ermida foi consagrada pelo bispo em 1515 e nela se depositaram as Relíquias de São Roque cedidas ao rei D. Manuel I pelas autoridades venezianas. O adro foi consagrado em 1527. A ermida transformou-se num importante local de peregrinação, aonde acorriam peregrinos para cumprir as suas promessas.
Em 1553 a Companhia de Jesus tomou posse da Ermida e em 1556 decidiu avançar com a construção da Igreja de São Roque no local da Ermida.
A Irmandade de São Roque conseguiu subsistir à expulsão da Companhia de Jesus em 1759. Em 1990 transformou-se em Irmandade da Misericórdia e de São Roque de Lisboa e em 2011 fundiu-se com a Real Irmandade do Glorioso São Roque dos Carpinteiros de Machado.
Padroeiro de localidades
- VILAS: São Roque do Pico (Pico – Açores); - ALDEIAS: Gens – Foz do Sousa (Gondomar), Vilarinho de São Roque (Albergaria a Velha); - FREGUESIAS: Abrigada (Alenquer), Altares (Angra do Heroísmo), Cortes do Meio (Covilhã), Romarigães (Paredes de Coura), São Roque (Funchal), São Roque (Oliveira de Azeméis), São Roque (Ponta Delgada – Açores), São Roque do Faial (Santana – Madeira).
Padroeiro de profissões
São Roque é padroeiro de cirurgiões e deficientes, dermatólogos, padeiros, tratadores e treinadores de cães, curtidores de peles, cardadores, agricultores, viticultores e trabalhadores da pedra (canteiros, calceteiros e carreiros).
Protector
São Roque é invocado como protector: - Contra epidemias de peste, cólera, tifo, gripe espanhola, sida, etc. - Contra a silicose de canteiros, calceteiros e carreiros. - Contra doenças de animais (febre aftosa) e da videira (filoxera). – De cães.
Arquitectura
São Roque é um nome muito usado na designação de construções pertencentes aos vários tipos de arquitectura: - ARQUITECTURA CIVIL – Existem três Pontes ditas de São Roque: a que atravessa a Ribeira de Ovar, a que une as margens do rio Coa entre as freguesias de Castelo Bom e Mido e a que liga as duas margens do rio Tâmega em Chaves; - ARQUITECTURA MILITAR – Existe Forte de São Roque em Castelo de Vide e em Lagos (Meia Praia); - ARQUITECTURA RELIGIOSA – Tendo por orago São Roque existem: Ermidas (1), Capelas (59) e Igrejas (4). Destas últimas a mais importante é, sem dúvida, a Igreja de São Roque, em Lisboa.
Arte
São Roque tem conhecido entre nós e através dos séculos, múltiplas representações iconográficas: escultura em pedra ou madeira policromada, pintura, azulejaria e gravura.
Festas em Honra de São Roque
Têm lugar em 71 locais diferentes do país, com datas de realização e componentes profanas e religiosas igualmente variáveis de local para local. Pela importância de que se revestem são de referir aqui os festejos realizados em Lisboa.
Actualmente, a Irmandade da Misericórdia e de São Roque de Lisboa celebra o seu Orago no primeiro Domingo de Outubro. As Festas em Honra de São Roque compreendem dois períodos: um de natureza cultural que ocorre no sábado e outro, de natureza espiritual, que sucede no Domingo.
Os festejos de Domingo iniciam-se com a Eucaristia na Igreja de São Roque, no decurso da qual está exposta a Relíquia do Santo Patrono. Durante a Missa são entoados os cânticos e o Hino de São Roque, e lido o texto do nono e último dia da Novena de São Roque.
A Eucaristia termina com a Bênção com a Relíquia, a distribuição do Pão de São Roque “que simboliza o alimento e o amparo da comunidade humana” e a entrega da Pagela, que todos os anos é editada para esta celebração e que, de forma iconográfica, recorda a figura do Santo e os seus atributos.
Ainda no primeiro domingo de Outubro, tem lugar a Procissão solene com a Relíquia de São Roque e a imagem do Santo Patrono, a qual sai da Igreja de São Roque, caminha pelas ruas do Chiado e dirige-se à Capela da Irmandade do Glorioso São Roque dos Carpinteiros de Machado, no Arsenal da Marinha. De acordo com a Irmandade promotora, trata-se de “um acto de manifestação pública de fé, de peregrinação e de testemunho, mantendo vivo o culto a São Roque e divulgando as singulares obras de caridade e de misericórdia…”
Divisão Administrativa
O nome de São Roque figura na designação de concelhos, vilas, aldeias e freguesias: - CONCELHOS (1): São Roque do Pico (Pico); - VILAS (1): São Roque do Pico (Pico). – ALDEIAS (1): Vilarinho de São Roque (Albergaria a Velha); - Freguesias (4): São Roque (Funchal), São Roque do Faial (Santana), São Roque (Oliveira de Azeméis), São Roque (Ponta Delgada).
Toponímia
O nome de São Roque marca presença na toponímia portuguesa tanto a nível urbano como a nível rural: - A NÍVEL URBANO: altos (1), arraiais (1), avenidas (3), bairros (4), calçadas (2), caminhos (5), casais (1), corredouras (1), estradas (1), ilhéus (1), largos (14), loteamentos (1), miradouros (1) pracetas (1), quelhos (1), quintas (1), rampas (2), rotundas (1), ruas (70), terreiros (1), travessas (35), urbanizações (1) e vielas (1). - A NÍVEL RURAL: lugares (18).
Hidrografia
O nome de São Roque surge no âmbito da hidrografia para designar ribeiras e canais: - RIBEIRAS (3): Ribeira de São Roque (Angra do Heroísmo, Loures e São Roque do Pico). - CANAIS (1): Canal de São Roque (Aveiro).
Heráldica
A imagem de São Roque acompanhado pelo cão integra o brasão de armas das freguesias de São Roque do Faial (Santana) e Vila Chã de São Roque (Oliveira de Azeméis). O bordão de peregrino de São Roque com uma cabaça atada faz parte do brasão da freguesia de São Roque (Funchal).

São Roque (1517-1551)]. António de Holanda. Iluminura. Pintura a têmpera e ouro
sobre pergaminho (14,2x10,8 cm). Fólio 274. Livro de Horas de D. Manuel I.
Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.

Aparição do anjo São Roque (1584). Gaspar Dias. Pintura a óleo sobre madeira
(350x300 cm). Igreja de São Roque, Lisboa.

Milagre de São Roque (1584). Francisco de Matos. Painel de azulejos (Fragmento).
Igreja de São Roque, Lisboa.

Gravura de São Roque datada de 1800, executada por Frei Mattheus da Assumpção
Brandão (1778-1837), com Impressão Régia de 1832 em Lisboa e que ilustra a
Novena do Glorioso S. Roque por occasião da Epidemia Cholera-Morbus no anno
de 1832. Offerecida, e celebrada pela Real Irmandade de S. Roque de Lisboa,
sendo seu Provedor Perpetuo El Rei Nosso Senhor: O senhor D. Miguel I”.

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Bonecos de Estremoz e pandemia: São Roque


Fig. 1 - São Roque (Março de 2020). Ricardo Fonseca (1986- ).

Introdução
No início de Março de 2020 alastrou em Portugal uma pandemia de COVID 19. A sua passagem ficou assinalada por marcas profundas, tanto na malha urbana como no mundo rural.
A necessidade de contenção sanitária da pandemia obrigou ao confinamento social, alterou as relações interpessoais e a vida comunitária, o que teve reflexo no estado psicológico, no comportamento social, no trabalho, no culto religioso, nas actividades lúdicas, culturais e desportivas, nos transportes, no turismo, no rendimento de cada um e na economia em geral. De futuro, nada será como dantes e nós próprios não seremos os mesmos. A tragédia colectiva que temos vivido, constituirá assim um marco de referência na História da Humanidade.
Os barristas de Estremoz têm as suas oficinas fechadas e sem escoamento de produção. Porém, continuam a modelar o barro, com esperança no amanhã que tarda, mas que crêem que há de vir.
Como coleccionador e investigador da barrística popular estremocense, surgiu-me na mente a ideia de que poderia e deveria ser modelado um Boneco que perpetuasse no barro, a pandemia que atravessamos. Pensei imediatamente na figura de São Roque, invocado pela comunidade católica, como Santo Protector contra as epidemias e que não figurava ainda na galeria das imagens devocionais produzidas pelos barristas de Estremoz.
Telefonicamente, lancei ao barrista Ricardo Fonseca o repto de modelar a figura daquele Santo, o que ele aceitou sem hesitações, como é seu timbre. Dado que eu já investigara os atributos iconográficos a que deve obedecer uma representação de São Roque, enumerei-lhe esses atributos, indiquei-lhe as dimensões pretendidas e discutimos pormenores e cores. Foi uma discussão importante, já que eu era conhecedor da humildade e da simplicidade que são apresentados como apanágio de vida do Santo, o que excluía à partida uma representação barroca do mesmo, a qual seria ostensiva, desajustada e como tal desaconselhada. 
Como fonte de inspiração documental, enviei por email ao barrista a imagem de uma gravura de São Roque datada de 1800 (Fig. 1), executada por Frei Mattheus da Assumpção Brandão (1778-1837), com Impressão Régia de 1832 em Lisboa e que ilustra a Novena do Glorioso S. Roque por occasião da Epidemia Cholera-Morbus no anno de 1832. Offerecida, e celebrada pela Real Irmandade de S. Roque de Lisboa sendo seu Provedor Perpetuo El Rei Nosso Senhor: O senhor D. Miguel I.”
Como é habitual no Ricardo, levou o seu tempo para satisfazer a encomenda. Lá diz o rifão: “Sem tempo nada se faz”. O resultado está à vista (Fig. 2). É caso para dizer: Missão cumprida!
Biografia
Roque terá nascido cerca de 1350 na cidade francesa de Montpellier. De acordo com a lenda, a pele do peito ostentava um sinal cruciforme avermelhado que era presságio de que viria a ser Santo.
Originário de uma família nobre, o seu pai, Jean Roch de la Croix era senhor de vastos domínios e desempenhava funções governativas na cidade. Sua mãe, Libéria, era natural da Lombardia.
Baptizado no santuário de Notre Dame des Tables, a sua infância decorreu num ambiente profundamente cristão.
Órfão de pai e mãe muito jovem, a sua educação foi confiada a um tio. Provavelmente terá estudado com padres dominicanos antes de cursar medicina na universidade local, ainda que não concluísse os estudos.
Desde muito cedo levou uma vida ascética e praticou a caridade. Ao atingir a maioridade por volta dos 20 anos, repartiu os seus bens entre os pobres e confiou uma pequena parte ao tio. Ter-se-á juntado à Ordem Terceira de São Francisco, envergado o traje de peregrino e partido em direcção a Roma.
Provavelmente terá tomado a rota francesa em direcção a Roma e ao chegar à comuna de Acquapendente, próxima de Viterbo, encontrou-a minada pela peste. Ofereceu-se de imediato como voluntário na assistência aos doentes, pondo em prática a formação médica que recebera. Usando o bisturi associado ao sinal da cruz, terá operado curas milagrosas. Por lá terá permanecido três meses, visitando depois Cesena, Mântua, Modena, Parma e muitas outras cidades e aldeias, nas quais ajudou e curou os doentes.
Terá permanecido vários anos em Roma, onde terá rezado diariamente sobre o túmulo de São Pedro e curado vítimas da peste no Hospital do Espírito Santo, o que levou o Papa Urbano V a conceder-lhe a indulgência plenária.
No regresso a Montpellier e quando prosseguia a sua obra de assistência em Piacenza, foi ele próprio atingido pela praga. Para não contagiar ninguém, isolou-se numa floresta próxima, onde de acordo com a lenda, teria morrido de fome se um cão não lhe trouxesse diariamente um pão retirado da mesa do dono e se da terra não tivesse brotado uma fonte de água para saciar a sede.
Miraculosamente curado, regressou a Montpellier que na época se encontrava em guerra. Tomado por espião, foi detido e levado para a prisão, onde passou 5 anos até morrer a 16 de Agosto de 1379, ainda jovem, abandonado e esquecido por todos. De acordo com a lenda, só revelou a sua identidade a um padre, um dia antes da sua morte.
O primeiro milagre póstumo que lhe é outorgado foi a cura do seu carcereiro, o qual coxeava e cuja perna foi milagrosamente curada ao tocar com ela no corpo de Roque, para averiguar se estaria realmente morto.
Só após a morte foi reconhecido pela cruz marcada no peito e piedosamente sepultado por um tio, embora os seus restos mortais tenham sido transladados para Veneza em 1483. Devido à fama dos inúmeros milagres que operara durante a sua permanência em Itália, as suas relíquias foram distribuídas pelas cidades de Antuérpia, Arles e Lisboa.
Canonização de São Roque
Entre 1414 e 1418 decorreu em Constança, o 16.º Concílio Ecuménico da Igreja Católica, que tinha como principal objectivo acabar com o cisma papel, já que havia três papas rivais, clamando legitimidade (Bento XIII, João XXIII e Gregório XII). A peste ameaçava então a Europa, pelo que os bispos conciliares autorizaram preces e orações populares em honra de São Roque. Consta-se que terão sido atendidos e o contágio pelo flagelo cessou. São Roque passou a ser objecto de intensa devoção popular que conduziu à sua canonização, sem ocorrer decisão eclesiástica nesse sentido.
Festa litúrgica
Os católicos crêem que todos aqueles que recorrem com fervor à intercessão de São Roque, são atendidos nas suas súplicas, daí que seja considerado um Santo Protector contra as epidemias. A sua memória litúrgica é celebrada a 16 de Agosto, dia da sua morte. Os ofícios eclesiásticos a serem recitados nesse dia, foram aprovados pelo papa Urbano VIII.
Expansão do culto de São Roque
O culto de São Roque inicia-se em Itália e dali estende-se à França e conquista a Europa através da Bélgica e dos Países Baixos. Atravessa o Oceano Atlântico e alcança as colónias portuguesas e espanholas na América do Sul, prolonga-se a África e propala-se aos EUA e ao Canadá.
O seu nome passa a integrar a divisão administrativa, a toponímia, a orografia, a hidrografia e a heráldica. É dado o seu nome a igrejas, capelas, ermidas e nichos. A sua memória é perpetuada em esculturas de pedra, madeira e outros materiais, pinturas, painéis de azulejos e vitrais. Através dos séculos é referido ou é objecto de inúmeras obras literárias. No romance “A peste” (1947), Albert Camus conta a história de trabalhadores que descobrem a solidariedade no meio da peste que assolava a cidade de Oran na Argélia. Aí, as autoridades eclesiásticas decidiram lutar contra a epidemia, organizando uma semana de preces colectivas a terminar num domingo com uma missa solene, sob a invocação de São Roque.
O culto de São Roque está ligado às suas virtudes miraculosas e exalta o Santo como figura carismática que transmite na actualidade uma mensagem universal de generosidade e de paz. O seu culto tem assim uma dimensão internacional e intercontinental.
Atributos iconográficos
Habitualmente é representado como jovem, envergando o traje característico dos peregrinos de Santiago, constituído por uma túnica e capa, ambas de cor castanhas. Na aba da capa ostenta uma ou mais vieiras. Usa um chapéu de abas largas. É portador de um bordão, do qual pende uma cabaça. Uma das pernas está desnudada para serem visíveis os ferimentos da peste. É acompanhado por um cão, muitas vezes com um pão na boca.
Simbolismo dos atributos
Para a comunidade católica, os atributos iconográficos de São Roque encerram em si um profundo simbolismo: - O TRAJE CASTANHO – É a cor da terra e simboliza a humildade, a simplicidade e a pobreza de São Roque, ao optar por distribuir os seus bens aos pobres e tornar-se peregrino e missionário. - O BORDÃO – Serve de apoio e dá segurança nas caminhadas. São Roque foi peregrino e missionário, pelo que é portador de um bordão que simboliza ainda a palavra e a presença de Deus, nas quais se apoiava. - A CABAÇA – Serve para transportar água numa caminhada e evoca a fonte e a água que São Roque bebeu até ficar curado. Simboliza também o dom de cura concedido pelo Espírito Santo que agia através de São Roque. - A FERIDA NA PERNA – Simboliza o sofrimento de São Roque no decurso da sua doença. Simboliza igualmente a doença, a dor e o sofrimento humano. - O CÃO AO LADO DE SÃO ROQUE - Lembra o cão usado por Deus para socorrer São Roque no decurso da doença. Expressa ainda a providência divina que pelos mais diferentes meios, concede o que é preciso. É igualmente um incentivo para que se confie na providência divina, que não abandona ninguém e está atenta às suas necessidades.

Estremoz, Março de 2020
(Jornal E nº 246, de 14-05-2020)

Fig. 2 - Gravura de São Roque datada de 1800, executada por Frei Mattheus da
Assumpção Brandão (1778-1837), com Impressão Régia de 1832 em Lisboa e que
ilustra a Novena do Glorioso S. Roque por occasião da Epidemia Cholera-Morbus
no anno de 1832. Offerecida, e celebrada pela Real Irmandade de S. Roque de Lisboa
sendo seu Provedor Perpetuo El Rei Nosso Senhor: O senhor D. Miguel I.” Imagem
recolhida com a devida vénia na Irmandade da Misericórdia e de São Roque, de Lisboa.