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domingo, 13 de setembro de 2020

Imagens devocionais e inovação


Menino Jesus Salvador do Mundo – Jorge da Conceição (1963-  ).

Introdução
É vasta e diversificada a galeria dos Bonecos de Estremoz. Numa tentativa de sistematização é habitual agrupá-los em dois grandes grupos: “Bonecos das Tradição” e “Bonecos da Inovação”.
Bonecos da Tradição
Os “Bonecos da Tradição” são as figuras que se começaram a modelar na sequência da recuperação da produção de Bonecos de Estremoz, extinta desde 1921. Essa recuperação foi concretizada em 1935, graças à acção do escultor José Maria de Sá Lemos (1892-1971), que para o efeito recorreu primeiro à velha barrista Ana das Peles (1869-1945) e depois ao mestre oleiro Mariano da Conceição (1903-1959). Foram eles que concretizaram no barro os conceitos estéticos de Sá Lemos (modo de representação, dimensões, proporções e cromatismo).
Tais conceitos foram sendo interpretados e reinventados pelos barristas desde então para cá, já que os barristas gostam de deixar marcas pessoais naquilo que é obra sua.
No decurso do tempo, os barristas mais perfeccionistas aprofundaram a modelação, tornando-a mais rigorosa na representação, a qual passou a incluir mais pormenores.
Simultaneamente a decoração das figuras vai-se tornando mais rica, não só pela utilização de múltiplas harmonias cromáticas como pelo aumento de pormenores da decoração.
Bonecos da Inovação
Não existem só “Bonecos da Tradição”. Por sua própria iniciativa, fruto de encomenda ou por sugestão de alguém, os barristas são levados a criar novas figuras que até então ninguém fizera. São aquilo que podemos designar por “Bonecos da Inovação”, os quais, apesar da designação, respeitam o ancestral processo de fabrico dos Bonecos de Estremoz.
Tipos de inovação
A inovação refere-se não só à criação de novos modelos, como também ao aprofundamento da modelação pela inclusão de mais pormenores na representação, assim como ao enriquecimento da decoração.
Por vezes a manufactura de figuras mais complexas e de execução mais morosa está na génese de uma mudança de paradigma na nossa barrística, o que a leva a atingir um patamar mais elevado da sua expressão. Verifica-se sobretudo nas Irmãs Flores, Ricardo Fonseca e Jorge da Conceição.
Eu inovador, me confesso
A Tradição tem os seus acólitos e a Inovação tem os seus seguidores.
Os acólitos da Tradição entendem ser precisos mais barristas a produzir “Bonecos da Tradição” e querem menos Inovação.
Os seguidores da Inovação não têm nada contra a produção de Bonecos da Tradição, mas entendem que a barrística tal como a arte em geral, tende naturalmente a inovar, não só em termos de temas, como em termos de execução.
Trata-se de dois tipos de pontos de vista antagónicos dificilmente conciliáveis, face aos pressupostos em que assentam.
Pela minha parte e na qualidade de seguidor da Inovação, vou procurar mostrar em textos como este e naqueles que se lhe seguirão, a riqueza resultante da Inovação. Começarei pela inovação temática e mais precisamente no domínio das imagens devocionais. 
Imagens Devocionais e Inovação
Nos anos 40 do séc. XX existiam 10 imagens devocionais na barrística popular de Estremoz: Fuga para o Egipto, Menino Jesus no Berço, Nossa Senhora Ajoelhada, São José Ajoelhado, Nossa Senhora em Pé, São José em Pé, Santo António, São João Baptista, Senhor dos Passos e Senhoras das Dores.
Actualmente existem pelo menos mais 51 imagens devocionais: Menino Jesus Salvador do Mundo, Nossa Senhora Auxiliadora, Nossa Senhora da Alegria, Nossa Senhora da Aparecida, Nossa Senhora da Ascensão, Nossa senhora da Conceição, Nossa Senhora da Guia, Nossa Senhora da Redenção, Nossa Senhora das Graças, Nossa Senhora das Misericórdias, Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora de Guadalupe, Nossa Senhora Desatadora de Nós, Nossa Senhora do Campo, Nossa Senhora do Cardal, Nossa Senhora do Carmo, Nossa Senhora do Ó, Pietá, Princesa Santa Joana, Santa Ana, Rainha Santa Isabel, Santa Apolónia, Santa Bárbara, Santa Catarina de Alexandria, Santa Cecília, Santa Emília, Santa Filomena, Santa Inês, Santa Iria, Santa Justa, Santa Luzia, Santa Madalena, Santa Margarida, Santa Rita de Cássia, Santa Rita do Menino Jesus, Santo Aleixo, Santo André, Santo Antão, Santo Isidro, Santo Ivo, Santos Pastorinhos de Fátima, São Bento, São Fernando, São Francisco de Assis, São Jorge,  São Lourenço, São Nuno de Santa Maria, São Pedro, São Roque, São Tiago Maior, São Vicente.
Algumas destas imagens devocionais têm inúmeras variantes: Santo António, São João Baptista, São Pedro, São José, Nossa Senhora da Conceição e Rainha Santa Isabel. A estas imagens devocionais há que acrescentar ainda inúmeras imagens devocionais correspondentes a cenas da Paixão de Cristo ou Milagres de Santo António.
Balanço Final
Creio ter ficado demonstrado duma forma cabal, a importância de que se revestiu a “Inovação” como factor de enriquecimento e valorização do domínio das “Imagens Devocionais”

Publicado inicialmente em 13 de Setembro de 2020

Menino Jesus (Lâmina) - Isabel Pires (1955-  ).

Nossa Senhora com o Menino, São João e Santo António – Irmãs Flores (1957,1958- ).

Nossa Senhora da Conceição – Afonso Ginja (1949-  ).

Nossa Senhora da Redenção. Jorge da Conceição (1963-  ).

Nossa Senhora das Graças - Irmãs Flores (1957, 1958-  ).

Nossa Senhora das Misericórdias - Irmãs Flores (1957,1958-  ).

Nossa Senhora Desatadora de Nós - Irmãs Flores (1957,1958-  ).

Nossa Senhora do Campo – Ricardo Fonseca (1986-  ).

Nossa Senhora do Cardal – Ricardo Fonseca (1986-  ).

Nossa Senhora do Ó – Jorge da Conceição (1963-  ).

Pietá - Isabel Pires (1955-  ).

Rainha Santa Isabel – Ricardo Fonseca (1986-  ).


Santa Apolónia - Maria Luísa da Conceição (1934-2015).

Santa Catarina de Alexandria – Maria Luísa da Conceição (1934-2015).

Santa Inês - Irmãs Flores (1957,1958-  ).


Santa Margarida - Maria Luísa da Conceição (1939-2015).

Santa Marta - Isabel Pires (1955-  ).

Santa Rita de Cássia – Jorge da Conceição (1963-  ).


Santa Teresinha do Menino Jesus – Jorge da Conceição (1963-  ).

Santo António (Lâmina) – Guilhermina Maldonado (1937-2019).


Santo António com capuz – Liberdade da Conceição (1915-1990).

Santo António, cónego regrante de Santo Agostinho – Maria Luísa da Conceição (1934-2015).

Santo Ivo - Jorge da Conceição (1963-  ).           

São Francisco de Assis com Presépio – Ricardo Fonseca (1986-  ).

São Jorge - Maria Luísa da Conceição (1934-2015).

São José - Maria Luísa da Conceição (1934-2015).

São Miguel – Ricardo Fonseca (1986-  ).

São Pedro – Afonso Ginja (1949-  ).

São Sebastião – Irmãos Ginja (1938-2018, 1949-  ).

São Vicente – Jorge da Conceição (1963-  ).

Última Ceia – Isabel Pires (1955-  ).

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Outros frades


Fig. 1 – Frade orando. José Moreira (1926-1991).


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Introdução
Em texto anterior, sob a epígrafe “Frade a cavalo”, fundamentei a presença do frade na barrística popular de Estremoz, cujas primeiras representações se crê remontarem ao séc. XIX.
A inexistência de frades em Estremoz nos séculos XX e XXI, não viria a ser impeditiva da sua presença na imagética popular modelada no barro em Estremoz. É o que iremos ver seguidamente.
Frade orando
Trata-se da imagem de um frade de mãos postas (Fig. 1), em atitude de oração. Enverga um hábito castanho, com capa e capucho. À cintura tem atado um cordão dourado com duas pontas a terminar em borla, pendentes para o lado esquerdo da figura.
A capa, o capucho e os punhos do hábito ostentam uma orla dourada, ao gosto barroco.
Na cabeça, o cabelo castanho foi tonsurado, revelando na cabeça do frade, uma “Coroa de Cristo” com o cabelo algo já crescido. No rosto, de feições muito simples, é visível um minúsculo nariz em relevo. Dois pontos negros simulam os olhos, rematados por dois traços castanhos que figuram as pestanas e as sobrancelhas, sendo o traço daquelas tangente ao ponto que representa a menina do olho.
A boca é representada por uma linha vermelha. Em cada uma das faces é perceptível uma roseta alaranjada.
O frade calça um par de sandálias que espreitam debaixo do hábito.
A figura não tem base e assenta à frente nas sandálias e atrás no hábito. Para isso, o hábito é mais curto à frente que atrás, tal como acontece nos vestidos das Senhoras de Pezinhos.
O exemplar tem cerca de 11 cm de altura e tanto pode constituir uma peça isolada, como ser elemento de uma composição mais vasta e que é desconhecida.


Fig. 2 – Frade passeando (gancho de meia). Luísa Batalha (1959-  ).

Frade a passear
Agora estamos em presença de um frade a passear (Fig. 2). Traja um hábito castanho, com capa e capucho. À cintura tem atado um cordão dourado com duas pontas pendentes para o lado direito da figura.
O clérigo tem cada uma das mãos enfiadas na manga do braço contrário.
A capa, o capucho, os punhos e a parte inferior do hábito ostentam uma orla dourada, ao jeito barroco.
Na cabeça, o cabelo castanho foi tonsurado, revelando na cabeça do frade, uma “Coroa de Cristo” integralmente desprovida de cabelo. No rosto, as feições são muito simples, sendo visível um minúsculo nariz em relevo. Dois pontos negros simulam os olhos, rematados por um traço negro que imita as sobrancelhas. A boca é representada por uma linha vermelha. Em cada uma das faces é perceptível uma roseta alaranjada.
A figura não tem base e assenta integralmente na orla do hábito.
O exemplar mede cerca de 5 cm de altura e tem a particular de ter uma funcionalidade, que é a de poder ser utilizado como gancho de meia. Para o efeito, a imagem possui dois ganchos de arame espetados no tronco do exemplar. Um à frente, virado para cima, para nele passar o fio, que do novelo pode ser redireccionado para as agulhas. O outro nas costas, virado para baixo, para pregar na blusa ou no vestido da mulher, na parte superior do peito, geralmente do lado esquerdo.
A terminar
Para além dos frades, existem outras figuras do clero presentes na barrística popular de Estremoz. São elas, o padre e o bispo que integram as procissões e o conjunto dos ganchos de meia. Nestes dois tipos de peças também aparece o sacristão. Por sua vez, a freira também está representada nos ganchos de meia.  

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Frade a Cavalo


Frade a Cavalo (a três quartos). José Moreira (1926-1991).

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Outros frades

Para Jorge da Conceição,
 poeta do barro,
que diz com as mãos,
 o que eu não consigo
 modelar com palavras.

Intróito
Desde o séc. XII que Estremoz foi palco de actividades das ordens religiosas que por aqui proliferaram, conforme nos é revelado pela arquitectura religiosa citadina, que inclui 6 complexos arquitectónicos: o Convento de S. Francisco (séc. XIII), o Convento de S. João da Penitência, da Ordem de Malta (séc. XVI), o Convento dos Agostinhos de N.ª S.ª da Consolação (séc. XVII), o Convento de Santo António dos Capuchos (séc. XVII), o Convento de N.ª S.ª da Conceição dos Congregados do Oratório de S. Filipe Néri (séc. XVII) e o Convento de S. João de Deus (séc. XVIII) (6). Cada uma destas ordens tinha a sua própria missão, a sua área de implantação, poder económico e social, bem como capacidade de influência política.
Entre os Conventos foi-se definindo e consolidando a malha urbana, espécie de palco por onde transitavam os múltiplos actores da farsa humana: Clero, Nobreza e Povo, cada um deles desempenhando o seu próprio papel, nem sempre bem visto pelos outros.
O jurisconsulto francês Charles Loiseaux (1566-1627) no seu “Traite des Ordres et Simples Dignitez” (5), referindo-se a cada uma daquelas classes e por aquela sequência considera que: "Uns dedicam-se especialmente ao serviço de Deus, outros a defender o Estado pelas armas, outros a alimentá-lo e mantê-lo pelo exercício da paz."
A Literatura de Tradição Oral
No caso particular dos frades e para além da sua vida pública, havia também a sua vida privada intramuros dos Conventos e longe dos olhares da plebe. O desconhecimento dessa vida privada estará decerto na origem da fértil imaginação popular associar a figura dos frades a comezainas e libações frequentes ou seja aquilo que no conceito popular constitui a “boa vida”.
Os frades e a sua suposta vida integram há muito e com alguma abundância os registos dos múltiplos domínios da literatura de tradição oral: cancioneiro, lendas, narrativas, lengalengas, adivinhário, toponímia, alcunhas, gíria e adagiário. No caso deste último, são conhecidos adágios que reflectem a suposta boa vida dos frades: “Comer que nem um abade”, “A ordem é rica e os frades são poucos” e “Migalhas de frade, muitas vezes sabem bem”. Estes alguns dos registos fradescos que no decorrer dos séculos têm sido transmitidos de geração em geração, por tradição oral. Tais registos integram há muito e por direito próprio a Mitologia Popular Portuguesa.
Face ao exposto não é de estranhar que a barrística popular de Estremoz tenha perpetuado no barro uma figura que se crê remontar ao séc. XIX (7) e que representa um Frade a Cavalo.
Morfologia e cromática do Frade a Cavalo          
A figura mede cerca de 20 cm e representa um Frade a Cavalo, muito direito, olhando em frente e segurando nas mãos um odre de vinho, negro com costura zarcão e tampa amarelada, configurando madeira. O frade enverga o tradicional hábito castanho com capucho. Curiosamente, as mangas do hábito apresentam orla e tripla abotoadura amarela, cor que também se observa listada no capuz. A abertura superior do hábito apresenta listas castanhas e zarcão, dispostas alternadamente. As vestes integram ainda um cordão amarelo, atado à cintura, com duas pontas pendentes para o lado esquerdo do cavaleiro.
Na cabeça, dois pontos negros representam os olhos, encimados por dois traços castanhos que figuram as pestanas e as sobrancelhas. O nariz em relevo, tem a forma de prisma triangular e a boca é interpretada por uma linha vermelha. Em cada uma das faces é visível uma roseta alaranjada. O cabelo é castanho-escuro, encobre as orelhas e está parcialmente coberto por um chapéu (chapéu aguadeiro) negro, com copa semi-esférica, dobrada a meio e aba circular, totalmente virada para cima. Da parte posterior da copa partem dois ramos de uma fita amarela listada de vermelho e verde nas pontas, pendentes para baixo.
O frade calça botas negras com esporas imitando metal e fixadas às botas por aquilo que simula serem fivelas metálicas assentes no peito da bota.
O frade está montado num cavalo cuja cor afigura pelagem de cor creme, malhada de negro nas patas dianteiras e no topete (franja). A crina e a rabada do quadrúpede apresentam uma série de incisões pintadas a negro.
A cabeça do equídeo está levantada para cima e nela são visíveis duas orelhas cónicas levantadas e viradas para trás, dois olhos negros pintados em círculos brancos, uma linha incisa de cor vermelha que imita a boca e dois pontos incisos que lhe são paralelos, arremedando as narinas bem abertas.
As patas do bicho terminam naquilo que aparentam ser cascos de cor negra.
Sobre o dorso da montada é visível uma manta creme listada de vermelho e verde, na qual supostamente se apoia a sela onde o cavaleiro está sentado. Sob o hábito, as pernas arqueadas do cavaleiro acompanham a curvatura do dorso do animal e o seu contorno está destacado por dois traços zarcão, um à frente e outro atrás de cada perna. Na parte posterior do dorso é observável aquilo que aparenta ser uma manta de viagem, castanha, enrolada. 
O arreio do animal é constituído por uma cabeçada de cor castanha e rédeas da mesma cor que assentam no cachaço do bicho.
O binómio frade-cavalo assenta numa base prismática rectangular de topo verde e orlada de zarcão.
As marcas identitárias de José Moreira
As figuras manufacturadas por José Moreira ostentam marcas identitárias indeléveis que o permitem identificar como autor.
O olhar das figuras antropomórficas é definido por sobrancelhas e pestanas paralelas, sendo estas últimas tangentes às meninas do olho, que sendo maiores que noutras representações, tornam o olhar mais expressivo.
Nas figuras zoomórficas e relativamente a outras representações, os cavalos têm uma cabeça maior, um olhar mais vivo, as narinas e a boca estão mais bem definidas e os focinhos estão arrebitados, como que procurando afastar-se do pescoço.
Estando o equídeo a marchar para o lado esquerdo do observador, a crina está totalmente virada para o lado do observador, o mesmo se passando com a rabada, comprida e a roçar o chão.
A base em que assenta esta figura tem um topo integralmente verde, ao contrário de outras representações que a têm pintalgada de branco, amarelo e zarcão.
Leituras do Frade a Cavalo
É sabido que um cavalo se exprime não só por sons, mas também através da linguagem corporal, transmitindo-nos sinais que são inteligíveis. A meu ver, o barrista comunicou à peça alguns desses sinais, que no seu conjunto nos relatam o contexto por ele retratado e perpetuado no barro.  
A cabeça do equídeo levantada significa que o animal quer ver à distância, postura associada a uma situação de alarme, porque o perigo sente-se à distância.
As orelhas levantadas e viradas para trás significam que a montada está atenta a algo que se passa atrás que é a presença do cavaleiro e traduzem submissão e obediência à voz de comando daquele.
As narinas dilatadas são indício de atenção.
A rabada inclinada para o lado do observador dá a sensação de movimento. Bater com a rabada é um movimento que o quadrúpede utiliza para afastar os insectos do corpo e que por isso é observável sempre que o animal está insatisfeito.
Resumindo: o barrista quis representar um cavalo atento, submisso à voz do cavaleiro, mas algo insatisfeito.
Por sua vez, o cavaleiro revela inteira confiança na montada, uma vez que não empunha as rédeas, as quais estão apoiadas no cachaço do bicho. Toda a destreza do frade, supostamente em viagem, parece estar concentrada em segurar nas mãos um odre de vinho para as suas necessidades, configurando os mesmos cuidados com que durante a liturgia o celebrante segura o ostensório.
O que dizem os estudiosos
Para Hugo Guerreiro (4) “Neste conjunto, o Frade a Cavalo agarrado ao odre do vinho, sobressai como expressão de anticlericalismo, comum à época no universo republicano e que teve grande expressão no Figurado produzido por Bordalo Pinheiro. Foi usado para ridicularizar e assim desacreditar o clero.”
Já para Joaquim Vermelho (7), “A figura está tratada de forma naturalista sem denodar qualquer sentido crítico ou caricaturial, não seguindo o figurino da época do frade “gordo e anafado, bem comido e bem bebido”.        
Revejo-me inteiramente na interpretação de Joaquim Vermelho e discordo inteiramente da interpretação de Hugo Guerreiro. Na verdade, na figura em estudo cuja origem remonta ao séc. XIX, não consigo vislumbrar qualquer expressão de anticlericalismo de pendor republicano. Apenas consigo observar a perpetuação no barro de uma das múltiplas componentes da mitologia popular sobre frades: a boa vida.  

BIBLIOGRAFIA
(1) - Como entender os sinais e o comportamento dos cavalos. [Em linha]. [Editado em 12 de Novembro de 2019]. Disponível em: http://www.sanoldog.com.br/como-entender-os-sinais-e-o-comportamento-dos-cavalos/ .  [Consultado em 27 de Agosto de 2020]
(2) - DIAS DA CUNHA, Sandra. A comunicação do cavalo. [Em linha]. [Editado em 16 de Novembro de 2018]. Disponível em: http://www.equitacao.com/artigos/2176/10/a-comunicacao-do-cavalo/ . [Consultado em 27 de Agosto de 2020]
(3) - Formas de expressão e sinais da comunicação dos cavalos. [Em linha]. [Editado em 21 de Junho de 2019]. Disponível em: https://www.comprerural.com/formas-de-expressao-e-sinais-da-comunicacao-dos-cavalos-eles-sao-muito-sensitivos/ . [Consultado em 27 de Agosto de 2020]
(4) - GUERREIRO, Hugo. Figurado de Estremoz : produção património imaterial da humanidade. Afrontamento. Porto, 2018 (pág. 95). 
(5) ~ LOISEAUX, Charles. Traite des Ordres et Simples Dignitez. Abel l’Angeler. Paris, 1610 (pág. 74).
(6) - MATOS, Hernâni. Bonecos de Estremoz. Afrontamento. Estremoz / Póvoa de Varzim, 2018 (pág. 68).
(7) - VERMELHO, Joaquim. Sobre as cerâmicas de Estremoz – Arquivos da Memória. Edições Colibri/Câmara Municipal de Estremoz. Lisboa, 2005 (pág. 104).

Hernâni Matos


Frade a Cavalo (de frente). José Moreira (1926-1991).

 
Frade a Cavalo (de trás). José Moreira (1926-1991).

sábado, 13 de junho de 2020

Auto do desconfinamento de Santo António


Santo António. Mariano da Conceição (1903-1959).


Ao Alexandre Correia, grande devoto de Santo António,
profundo conhecedor da vida e obra do Santo,
porventura o maior coleccionador de temática antonina,
que com bom gosto, engenho e arte,
tem edificado uma valiosa e polifacetada colecção,
que a tornam num Museu Antonino sem igual.

Brilhou Alexandre
lá na Antiguidade.
Há outro e Grande
em Lisboa cidade.

Estas e muitas outras quadras, direi mesmo um rosário infindo de quadras, foram trauteadas pelo meu irmão gémeo em noite de Santo António. A cantilena prolongou-se até altas horas da noite.
António Pedro, assim se chama o meu irmão gémeo, é diametralmente oposto a mim próprio. Nasceu com veia poética e quando bebe uns copos é vê-lo versejar. Nada de versos alexandrinos que isso é para intelectuais, apenas e sempre o mais castiço fado vadio.
As sardinhas assadas sabiam a manjar de Deuses e o vinho tinto não destoaria no Olimpo. O consumo deste último levou o António a libertar a alma residente no seu arcaboiço de ferrabrás e a sua voz subiu aos céus como se fosse um balão de Santo António.
Estávamos na varanda para onde a família foi seroar em honra de Santo António e para glória das nossas barrigas. Não estávamos sós, tínhamos levado connosco uma imagem de Santo António em barro de Estremoz. Bem antiga por sinal, saída das mãos de mestre Mariano da Conceição, do clã dos Alfacinhas. Cá em casa somos todos antoninos e eu próprio sou António, ainda que Hernâni.
Na varanda onde erguêramos o nosso arraial de trazer por casa, havia um pequeno nicho onde acomodámos o Santo. Perdão, a imagem do Santo. Não foi tarefa fácil, já que houve um certo reboliço cá em casa. É que a imagem de Santo António de Mariano da Conceição, apesar de muito senhora do seu nariz, não é a única que temos. Coabita com as imagens homónimas de Sabina da Conceição, José Moreira, Liberdade da Conceição, Maria Luísa da Conceição, Fátima Estróia, Irmãs Flores e Ricardo Fonseca.
Numa atitude pouco católica, as várias imagens do Santo puseram-se em pé de guerra e empinaram-se umas às outras. Todas queriam marcar presença no nicho que naquela noite iria desempenhar funções antoninas. Foi o bom e o bonito. Cheguei a pensar em mergulhá-las todas no poço, de cabeça para baixo, para ver se refrescavam as ideias. Porém, tal não foi necessário. O Santo António de Mariano da Conceição puxou dos galões – o Mariano também foi tropa  - e com a voz tonitruante que era apanágio do Mariano, vociferou:
- Então vocês não vêem que são maçaricos comparados comigo? Eu tenho mais tempo de serviço que vocês, ouviram? Cresçam e apareçam!    
Foi assim que as outras imagens do Santo meteram o rabo entre as pernas e ordeiramente se dirigiram para o lugar que eu lhes tinha destinado e de onde nunca deveriam ter saído.
Nesta altura, alguns que andam a leste das andanças antoninas, interrogar-se-ão sobre o modo como conheci o Alexandre. Vou contar. Dei conta da sua notoriedade nas redes sociais e conheci-o pessoalmente no lançamento do meu livro “Bonecos de Estremoz”. Se porventura ainda não éramos amigos, ficámos a sê-lo a partir de então, por comungar-mos paixões comuns que nos levam frequentemente a falar ao telefone ou a trocarmos mensagens por email ou Facebook.
No passado dia 30 de Maio publiquei no meu blogue “Do Tempo da Outra Senhora”, um texto intitulado “Joana Oliveira, uma barrista que se afirma”, onde com o bisturi da minha análise, dissequei o trabalho da barrista. A génese deste texto remonta a um comentário que fiz a uma postagem do Alexandre no grupo “Bonecos de Estremoz” do Facebook, datada de 21 de Maio passado e que é acompanhada de duas criações da barrista, na qual teci quatro comentários acerca das mesmas.
O texto que a 30 de Maio publiquei no meu blogue, foi na mesma data objecto de divulgação através de uma postagem minha no grupo de Facebook já referido. O Alexandre produziu então o seguinte comentário:
- Hernâni, se me permite deixe-me relembrar que se comemora hoje os 788 anos da canonização de Santo António. O Santo António foi canonizado a 30 de maio de 1232, na Catedral de Espoleto, pelo Papa Gregório IX. Conta a tradição que nessa hora em Lisboa os sinos de todas as igrejas tocaram espontaneamente e uma estranha alegria se espalhou pela população que saiu à rua, atónita.
A este comentário respondi, dizendo:
- Obrigado, Alexandre. Eu sabia que era em Maio, mas não me lembrava da data, o que é imperdoável para um antonino.
O Alexandre não desarmou e replicou:
- Hernâni Matos , meu caro, não foi mero acaso escrever hoje sobre o Santo.
Correndo o risco de me tornar um escritor antonino, lá tive que responder:
- Um António lembrou a outro António, que era dia de falar sobre ele. E como são íntimos, o António de Lisboa e o Hernâni António de Estremoz, o de Lisboa (que é Santo) disse ao de Estremoz (que não o é, nem pouco mais ou menos), num tom coloquial:
- "Caro amigo: sei que és alentejano e que está uma grande calorina, pelo que tens direito à sesta. Porém, em nome da nossa amizade, és nomeado ex-aequo, como meu assessor de imprensa. Por isso, tens que dar ao dedo e falar sobre mim, que é dia disso. Confio em ti e no que disseres e para não falhares a missão, vou-te tirar o sono".
Foi assim que para gáudio do Alexandre Correia, perdi a sesta e ando com os sonos atrasados. É caso para dizer:
- "Valha-me Santo António!"
A conversa entre nós ficou por ali e o tempo foi passando. O facto de estarmos submetidos a um estado de desconfinamento, forçou-nos a honrar a Memória do Santo mais perto do céu, na varanda da nossa casa, rodeada de telhados, onde de dia pousa e chilreia a passarada. E foi o trinar da voz do António Pedro, o meu irmão gémeo, que deu origem a este escrito. Há dias que andava a pensar escrever sobre o Alexandre e cheguei a confessar aos meus botões:
- Digam-me lá por onde devo começar?
Hoje, dia 13 de Junho, não sei se devido a ressaca de ontem à noite, julguei ouvir Santo António dizer-me:
- Hernâni António, não penses mais nisso, senão ainda gastas os botões. Tu és uma picareta escrevente e decerto saberás o que hás-de escrever e como escrever.
Como não via alternativa possível, acreditei naquilo que julgo que o Santo me terá dito. Meti mãos à obra e o resultado está à vista. Já estou a ver o Alexandre a dizer:
- Hernâni António, foi o Santo que inspirou este escrito.
E eu responder-lhe-ei:
- Se calhar o Santo viu que eu estava em risco de rebentar com os botões da camisa, do casaco e da braguilha, o que seria impróprio para um antonino como eu.
E acrescentarei:
- É certo que o Santo tem atado um cordão à cintura e é avesso a botões. Mas francamente, picareta escrevente, eu?
Hernâni Matos
Publicado inicialmente a 13 de Junho de 2020

sábado, 30 de maio de 2020

Joana Oliveira, uma barrista que se afirma


Fig. 1 – Passeio de Santo António com o Menino Jesus (2020). Joana Oliveira (1978).
Colecção de Alexandre Correia.

LER AINDA:

Santo António e Estremoz
Santo António de Lisboa é um Santo venerado pela Igreja Católica, seguramente o Santo que é objecto da mais intensa devoção popular. O seu culto foi incentivado em Estremoz pelos religiosos da Ordem de São Francisco de Assis, sediados no Convento de São Francisco, desde os primórdios da sua construção, no século XIII, em data imprecisa, balizada pelos reinados de D. Sancho II – D. Afonso III (1239-1255).
Daí não ser de admirar que a iconografia antonina inclua exemplares da barrística popular estremocense, desde os sécs. XVIII-XIX.
Iconografia de Santo António
A iconografia de Santo António representa-o correntemente a envergar o hábito castanho da ordem franciscana, com terço e cordão à cintura, acompanhado do Menino Jesus, o que simboliza a intimidade de Santo António com Cristo. Em geral, o Menino Jesus é mostrado de três modos diferentes: - SOBRE A BÍBLIA: Significa que Santo António anunciava Jesus Cristo através de inúmeras citações do Evangelho; - AO COLO DE SANTO ANTÓNIO: Traduz a profunda intimidade do Santo com Jesus, fonte da sabedoria e dos dons que nele se manifestavam; - MOSTRADO AO SANTO PELA VIRGEM MARIA: Revela a intensa devoção de Santo António pela Virgem.
Existem ainda iconografias antoninas muito específicas que têm a ver com os Milagres de Santo António. Tal é caso do Sermão de Santo António aos peixes, do qual irei falar a seguir.
Sermão de Santo António aos peixes
Alguma iconografia de Santo António representa o "Sermão de Santo António aos peixes". Vejamos o que nos diz o Padre António Vieira (1608-1694) no seu “Sermão de Santo António aos peixes” publicado pela primeira vez em 1682:
“Pregava Santo António em Itália, na cidade de Rimini [1], contra os hereges, que nela eram muitos; e como erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o Santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele, e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida. Que faria neste caso o ânimo generoso do grande António? Sacudiria o pó dos sapatos, como Cristo aconselha em outro lugar? Mas António, com os pés descalços, não podia fazer esta protestação; e uns pés, a que se não pegou nada de terra, não tinham que sacudir. Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a prudência ou a covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia naquele, não se rendeu a semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da sua doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: “Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes! Oh! maravilhas do Altíssimo! Oh! poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos; e, postos todos por sua ordem com as cabeças de fora da água, António pregava, e eles ouviam”.
É o próprio Camões (c. 1524-1580) que relata: “Com que os mudos peixes / saem ouvindo ao ar aberto.” [2]. De resto é bem conhecida a quadra popular: "Santo António Português,/Quando foi pregar ao mar,/Até os peixes na água,/Se puseram a escutar!" [3]     
Passeio de Santo António com o Menino Jesus
A temática antonina traz-me à mente os versos do “Passeio de Santo António”, de Augusto Gil (1873-1929), magistralmente declamados pelo saudoso actor João Villaret (1913-1961). Os versos incluídos no livro de poemas “Luar de Janeiro” (1909), mostram a dimensão humana e ingénua com que são tratados os personagens Santo António e Menino Jesus. Perante alguma impertinência do Menino Jesus, Santo António ameaça fazer queixas à Mãe: “Corado como as vestes dos cardeais, / Achou esta saída redentora: / - Se o Menino Jesus pergunta mais, / ... Queixo-me à sua mãe, Nossa Senhora!”. O poema é todo ele revelador da grande intimidade entre Santo António e o Menino Jesus.
Criações de Joana Oliveira
Alexandre Correia, porventura o maior coleccionador português de Santo António, facultou-me as imagens de duas criações da barrista Joana Oliveira, que frequentou o Curso de Formação sobre Técnicas de Produção de Bonecos de Estremoz, que no ano transacto teve lugar em Estremoz, no Palácio dos Marqueses de Praia e Monforte. Essas imagens são “Passeio de Santo António com o Menino Jesus”(Fig. 1) e Sermão de Santo António aos peixes” (Fig. 2). De cada uma delas vou falar em particular.
Passeio de Santo António com o Menino Jesus (Fig. 1)
A tonsura na cabeça de Santo António frisa a sua castidade. A auréola na cabeça de Santo António e do Menino Jesus, sublinha a santidade de ambos.
Santo António enverga o hábito franciscano castanho, com o cordão à cintura. Na mão direita segura uma Bíblia de capa castanha que comprime contra o peito. Parece ir dar a mão ao Menino Jesus, que veste túnica azul clara e que segura na mão esquerda três lírios amarelos (Porventura uma alegoria à Santíssima Trindade, já que o amarelo traduz a luz.). Qualquer deles calça sandálias castanhas com tiras.
Naturalmente que a cor das vestes tem um significado profundamente simbólico. O castanho de Santo António é a cor da terra e simboliza a humildade, a simplicidade e a pobreza que são apanágio dos franciscanos. O azul claro do Menino Jesus representa a espiritualidade, a eternidade, a paz, a pureza e o desapego da vida mundana.
A representação é muito feliz. Sugere: Intimidade (Caminham juntos); - Confiança mútua (Santo António e o Menino vão praticamente de mão dadas, sem contudo se tocarem); - Cumplicidade (Olham um para o outro); - Comunicação (Parecem falar entre si); - Amor aos Evangelhos (Santo António comprime a Bíblia contra o peito); - Partilha (O Menino transporta os lírios, atributo de Santo António).
De registar que o conjunto não assenta numa peanha. Esta começou por ser usada pelos barristas populares de Estremoz, os quais utilizaram como modelo imagens devocionais de escultores eruditos em madeira, que eram objecto de culto nas nossas igrejas e conventos. Todavia libertaram-se dessa "canga". A peanha tem sido utilizada por quem o entende fazer, mas há barristas como José Moreira, Fátima Estróia e Maria Luísa da Conceição, que embora tenham modelado imagens devocionais com peanha, perceberam que esta era dispensável e são conhecidos trabalhos seus (eu próprio os tenho), em que as imagens de Santos não assentam nem em peanhas nem em andores. Nunca passou pela cabeça de ninguém, dizer que não são imagens devocionais ou que não possam ser considerados Bonecos de Estremoz. Tal é o caso, que aqui registo e saúdo.
As duas figuras assentam numa base quadrangular. Sendo o quadrado símbolo da perfeição e da estabilidade, a geometria da base poderá constituir uma alegoria aos quatro Evangelistas (Mateus, Marcos, Lucas e João). Por uma questão técnica, os vértices do quadrado foram cortados em bisel, para conferir mais solidez à base. Esta é de cor verde, cromatismo ligado à natureza, ao crescimento, à renovação, à esperança e à liberdade. A orla da base é castanha, cor do hábito do Santo. No seu conjunto, as cores verde e castanha da base reforçam a sobriedade do conjunto.
Voltando à peanha cujo uso é advogado por alguns, julgo não ser despropositado tecer algumas considerações suplementares. Na sua imponência ornamental, a peanha configura o afastamento do devoto em relação à imagem devocional. Pelo contrário, uma imagem devocional sem peanha traduz a aproximação do devoto em relação à imagem devocional, já que o Santo fica no plano térreo do devoto. Por outras palavras, trata-se de uma abordagem artística mais “terra a terra”, que a meu ver humaniza mais a iconografia, sem todavia a dessacralizar.
Sermão de Santo António aos peixes (Fig. 2)
Santo António enverga o hábito franciscano castanho com terço e cordão à cintura e calça sandálias castanhas com tiras. A tonsura na cabeça salienta a sua castidade, mas a cabeça não apresenta auréola por a representação se referir a um episódio da sua vida, antes de ter sido canonizado.
A figura do Santo está assente num plano mais elevado em relação ao nível do mar. Os pés pisam aquilo que configura ser rocha cinzenta, provável alegoria à dor sentida pelo Santo, por não ser escutado pelos homens e se ver forçado a pregar aos peixes. Junto aos pés, dois lírios branco e lilás, provável alegoria à inocência do Santo. Este, de boca aberta, prega aos peixes olhando para o céu como se recebesse a palavra de Deus. O seu sermão é acompanhado de linguagem gestual.
Aos pés do Santo rebentam as ondas do mar azul, repletas de espuma. Da água emergem peixes (em número de quatro), que parecem escutar as palavras do Santo. Será uma alegoria às quatro virtudes fundamentais (Sabedoria, Fortaleza, Temperança e Coragem), referidas por Platão (428/427 – 348/347 a.C.), na “República”?
Epílogo
Os trabalhos da Joana Oliveira são trabalhos expressivos, reveladores de forte personalidade, sensibilidade e bom gosto que se traduzem em marcas identitárias muito próprias, que a maioria das vezes só são conseguidas ao fim de muito tempo de traquejo, após os barristas se terem conseguido libertar da influência daqueles que os precederam e/ou ensinaram, deixando de imitar ou tentar imitar a sua produção, não o conseguindo muitas vezes. Com o trabalho da Joana Oliveira, a Barrística Popular de Estremoz está de parabéns e ela própria também. Pois claro!
O seu caminho deverá ser sempre uma procura, com prazer no caminho e na descoberta. E com tal procedimento é sempre possível manter uma estrita fidelidade ao modo de produção, consensualmente reconhecido como "sui generis" e de Estremoz.

[1] - Rimini, cidade do NE de Itália, na região de Emília, província de Forli, situada na costa do Adriático e na foz do Mareccha, a 44º 3’ 43" de latitude Norte. A cidade de Rimini teve origem na antiga Ariminum, fortaleza e posto de grande importância política e militar no período romano. Já na Idade Média, Rimini foi porto de importância e domínio dos Malatesta, senhores cruéis e requintados mecenas. Actualmente é uma das maiores e mais famosas estações balneares de Itália.
[2] - CAMÕES. Écogla 6.ª das Rimas Várias.
[3] - Quadra recolhida por Armando de Mattos (ver Bibliografia).

BIBLIOGRAFIA
- MATOS, Hernâni António Carmelo de. Bilhetes-Postais Comemorativos do VII Centenário do Nascimento de Santo António de Lisboa in Catálogo da Inteiromax - Eça de Queiroz 2000, Póvoa de Varzim, Agosto de 2000.
- MATTOS, Armando de. Santo António nas Tradições Populares. Porto, 1937.

Hernâni Matos

Fig. 2 - Sermão de Santo António aos peixes (2020). Joana Oliveira (1978).
Colecção de Alexandre Correia.