sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Frade a Cavalo


Frade a Cavalo (a três quartos). José Moreira (1926-1991).

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Outros frades

Para Jorge da Conceição,
 poeta do barro,
que diz com as mãos,
 o que eu não consigo
 modelar com palavras.

Intróito
Desde o séc. XII que Estremoz foi palco de actividades das ordens religiosas que por aqui proliferaram, conforme nos é revelado pela arquitectura religiosa citadina, que inclui 6 complexos arquitectónicos: o Convento de S. Francisco (séc. XIII), o Convento de S. João da Penitência, da Ordem de Malta (séc. XVI), o Convento dos Agostinhos de N.ª S.ª da Consolação (séc. XVII), o Convento de Santo António dos Capuchos (séc. XVII), o Convento de N.ª S.ª da Conceição dos Congregados do Oratório de S. Filipe Néri (séc. XVII) e o Convento de S. João de Deus (séc. XVIII) (6). Cada uma destas ordens tinha a sua própria missão, a sua área de implantação, poder económico e social, bem como capacidade de influência política.
Entre os Conventos foi-se definindo e consolidando a malha urbana, espécie de palco por onde transitavam os múltiplos actores da farsa humana: Clero, Nobreza e Povo, cada um deles desempenhando o seu próprio papel, nem sempre bem visto pelos outros.
O jurisconsulto francês Charles Loiseaux (1566-1627) no seu “Traite des Ordres et Simples Dignitez” (5), referindo-se a cada uma daquelas classes e por aquela sequência considera que: "Uns dedicam-se especialmente ao serviço de Deus, outros a defender o Estado pelas armas, outros a alimentá-lo e mantê-lo pelo exercício da paz."
A Literatura de Tradição Oral
No caso particular dos frades e para além da sua vida pública, havia também a sua vida privada intramuros dos Conventos e longe dos olhares da plebe. O desconhecimento dessa vida privada estará decerto na origem da fértil imaginação popular associar a figura dos frades a comezainas e libações frequentes ou seja aquilo que no conceito popular constitui a “boa vida”.
Os frades e a sua suposta vida integram há muito e com alguma abundância os registos dos múltiplos domínios da literatura de tradição oral: cancioneiro, lendas, narrativas, lengalengas, adivinhário, toponímia, alcunhas, gíria e adagiário. No caso deste último, são conhecidos adágios que reflectem a suposta boa vida dos frades: “Comer que nem um abade”, “A ordem é rica e os frades são poucos” e “Migalhas de frade, muitas vezes sabem bem”. Estes alguns dos registos fradescos que no decorrer dos séculos têm sido transmitidos de geração em geração, por tradição oral. Tais registos integram há muito e por direito próprio a Mitologia Popular Portuguesa.
Face ao exposto não é de estranhar que a barrística popular de Estremoz tenha perpetuado no barro uma figura que se crê remontar ao séc. XIX (7) e que representa um Frade a Cavalo.
Morfologia e cromática do Frade a Cavalo          
A figura mede cerca de 20 cm e representa um Frade a Cavalo, muito direito, olhando em frente e segurando nas mãos um odre de vinho, negro com costura zarcão e tampa amarelada, configurando madeira. O frade enverga o tradicional hábito castanho com capucho. Curiosamente, as mangas do hábito apresentam orla e tripla abotoadura amarela, cor que também se observa listada no capuz. A abertura superior do hábito apresenta listas castanhas e zarcão, dispostas alternadamente. As vestes integram ainda um cordão amarelo, atado à cintura, com duas pontas pendentes para o lado esquerdo do cavaleiro.
Na cabeça, dois pontos negros representam os olhos, encimados por dois traços castanhos que figuram as pestanas e as sobrancelhas. O nariz em relevo, tem a forma de prisma triangular e a boca é interpretada por uma linha vermelha. Em cada uma das faces é visível uma roseta alaranjada. O cabelo é castanho-escuro, encobre as orelhas e está parcialmente coberto por um chapéu (chapéu aguadeiro) negro, com copa semi-esférica, dobrada a meio e aba circular, totalmente virada para cima. Da parte posterior da copa partem dois ramos de uma fita amarela listada de vermelho e verde nas pontas, pendentes para baixo.
O frade calça botas negras com esporas imitando metal e fixadas às botas por aquilo que simula serem fivelas metálicas assentes no peito da bota.
O frade está montado num cavalo cuja cor afigura pelagem de cor creme, malhada de negro nas patas dianteiras e no topete (franja). A crina e a rabada do quadrúpede apresentam uma série de incisões pintadas a negro.
A cabeça do equídeo está levantada para cima e nela são visíveis duas orelhas cónicas levantadas e viradas para trás, dois olhos negros pintados em círculos brancos, uma linha incisa de cor vermelha que imita a boca e dois pontos incisos que lhe são paralelos, arremedando as narinas bem abertas.
As patas do bicho terminam naquilo que aparentam ser cascos de cor negra.
Sobre o dorso da montada é visível uma manta creme listada de vermelho e verde, na qual supostamente se apoia a sela onde o cavaleiro está sentado. Sob o hábito, as pernas arqueadas do cavaleiro acompanham a curvatura do dorso do animal e o seu contorno está destacado por dois traços zarcão, um à frente e outro atrás de cada perna. Na parte posterior do dorso é observável aquilo que aparenta ser uma manta de viagem, castanha, enrolada. 
O arreio do animal é constituído por uma cabeçada de cor castanha e rédeas da mesma cor que assentam no cachaço do bicho.
O binómio frade-cavalo assenta numa base prismática rectangular de topo verde e orlada de zarcão.
As marcas identitárias de José Moreira
As figuras manufacturadas por José Moreira ostentam marcas identitárias indeléveis que o permitem identificar como autor.
O olhar das figuras antropomórficas é definido por sobrancelhas e pestanas paralelas, sendo estas últimas tangentes às meninas do olho, que sendo maiores que noutras representações, tornam o olhar mais expressivo.
Nas figuras zoomórficas e relativamente a outras representações, os cavalos têm uma cabeça maior, um olhar mais vivo, as narinas e a boca estão mais bem definidas e os focinhos estão arrebitados, como que procurando afastar-se do pescoço.
Estando o equídeo a marchar para o lado esquerdo do observador, a crina está totalmente virada para o lado do observador, o mesmo se passando com a rabada, comprida e a roçar o chão.
A base em que assenta esta figura tem um topo integralmente verde, ao contrário de outras representações que a têm pintalgada de branco, amarelo e zarcão.
Leituras do Frade a Cavalo
É sabido que um cavalo se exprime não só por sons, mas também através da linguagem corporal, transmitindo-nos sinais que são inteligíveis. A meu ver, o barrista comunicou à peça alguns desses sinais, que no seu conjunto nos relatam o contexto por ele retratado e perpetuado no barro.  
A cabeça do equídeo levantada significa que o animal quer ver à distância, postura associada a uma situação de alarme, porque o perigo sente-se à distância.
As orelhas levantadas e viradas para trás significam que a montada está atenta a algo que se passa atrás que é a presença do cavaleiro e traduzem submissão e obediência à voz de comando daquele.
As narinas dilatadas são indício de atenção.
A rabada inclinada para o lado do observador dá a sensação de movimento. Bater com a rabada é um movimento que o quadrúpede utiliza para afastar os insectos do corpo e que por isso é observável sempre que o animal está insatisfeito.
Resumindo: o barrista quis representar um cavalo atento, submisso à voz do cavaleiro, mas algo insatisfeito.
Por sua vez, o cavaleiro revela inteira confiança na montada, uma vez que não empunha as rédeas, as quais estão apoiadas no cachaço do bicho. Toda a destreza do frade, supostamente em viagem, parece estar concentrada em segurar nas mãos um odre de vinho para as suas necessidades, configurando os mesmos cuidados com que durante a liturgia o celebrante segura o ostensório.
O que dizem os estudiosos
Para Hugo Guerreiro (4) “Neste conjunto, o Frade a Cavalo agarrado ao odre do vinho, sobressai como expressão de anticlericalismo, comum à época no universo republicano e que teve grande expressão no Figurado produzido por Bordalo Pinheiro. Foi usado para ridicularizar e assim desacreditar o clero.”
Já para Joaquim Vermelho (7), “A figura está tratada de forma naturalista sem denodar qualquer sentido crítico ou caricaturial, não seguindo o figurino da época do frade “gordo e anafado, bem comido e bem bebido”.        
Revejo-me inteiramente na interpretação de Joaquim Vermelho e discordo inteiramente da interpretação de Hugo Guerreiro. Na verdade, na figura em estudo cuja origem remonta ao séc. XIX, não consigo vislumbrar qualquer expressão de anticlericalismo de pendor republicano. Apenas consigo observar a perpetuação no barro de uma das múltiplas componentes da mitologia popular sobre frades: a boa vida.  

BIBLIOGRAFIA
(1) - Como entender os sinais e o comportamento dos cavalos. [Em linha]. [Editado em 12 de Novembro de 2019]. Disponível em: http://www.sanoldog.com.br/como-entender-os-sinais-e-o-comportamento-dos-cavalos/ .  [Consultado em 27 de Agosto de 2020]
(2) - DIAS DA CUNHA, Sandra. A comunicação do cavalo. [Em linha]. [Editado em 16 de Novembro de 2018]. Disponível em: http://www.equitacao.com/artigos/2176/10/a-comunicacao-do-cavalo/ . [Consultado em 27 de Agosto de 2020]
(3) - Formas de expressão e sinais da comunicação dos cavalos. [Em linha]. [Editado em 21 de Junho de 2019]. Disponível em: https://www.comprerural.com/formas-de-expressao-e-sinais-da-comunicacao-dos-cavalos-eles-sao-muito-sensitivos/ . [Consultado em 27 de Agosto de 2020]
(4) - GUERREIRO, Hugo. Figurado de Estremoz : produção património imaterial da humanidade. Afrontamento. Porto, 2018 (pág. 95). 
(5) ~ LOISEAUX, Charles. Traite des Ordres et Simples Dignitez. Abel l’Angeler. Paris, 1610 (pág. 74).
(6) - MATOS, Hernâni. Bonecos de Estremoz. Afrontamento. Estremoz / Póvoa de Varzim, 2018 (pág. 68).
(7) - VERMELHO, Joaquim. Sobre as cerâmicas de Estremoz – Arquivos da Memória. Edições Colibri/Câmara Municipal de Estremoz. Lisboa, 2005 (pág. 104).

Hernâni Matos


Frade a Cavalo (de frente). José Moreira (1926-1991).

 
Frade a Cavalo (de trás). José Moreira (1926-1991).

2 comentários:

  1. Muito obrigado Professor Hernâni! Cada um com as suas habilidades... Mais uma vez um texto de qualidade que analisa uma das figuras menos conhecidas da nossa barristica e que hoje já praticamente não se produz. Quem sabe com este seu texto o mercado volta a "despertar" para esta figura? Um forte abraço

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