poeta do barro,
que diz com
as mãos,
o que eu não consigo
modelar com palavras.
Intróito
Desde o séc. XII que Estremoz foi palco de
actividades das ordens religiosas que por aqui proliferaram, conforme nos é
revelado pela arquitectura religiosa citadina, que inclui 6 complexos
arquitectónicos: o Convento de S. Francisco (séc. XIII), o Convento de S. João
da Penitência, da Ordem de Malta (séc. XVI), o Convento dos Agostinhos de N.ª
S.ª da Consolação (séc. XVII), o Convento de Santo António dos Capuchos (séc.
XVII), o Convento de N.ª S.ª da Conceição dos Congregados do Oratório de S.
Filipe Néri (séc. XVII) e o Convento de S. João de Deus (séc. XVIII) (6). Cada
uma destas ordens tinha a sua própria missão, a sua área de implantação, poder
económico e social, bem como capacidade de influência política.
Entre os Conventos foi-se definindo e consolidando
a malha urbana, espécie de palco por onde transitavam os múltiplos actores da
farsa humana: Clero, Nobreza e Povo, cada um deles desempenhando o seu próprio
papel, nem sempre bem visto pelos outros.
O jurisconsulto francês Charles Loiseaux (1566-1627)
no seu “Traite des Ordres et Simples Dignitez” (5), referindo-se a cada uma
daquelas classes e por aquela sequência considera que: "Uns dedicam-se
especialmente ao serviço de Deus, outros a defender o Estado pelas armas,
outros a alimentá-lo e mantê-lo pelo exercício da paz."
A Literatura de Tradição Oral
No caso particular dos frades e para além da sua
vida pública, havia também a sua vida privada intramuros dos Conventos e longe
dos olhares da plebe. O desconhecimento dessa vida privada estará decerto na
origem da fértil imaginação popular associar a figura dos frades a comezainas e
libações frequentes ou seja aquilo que no conceito popular constitui a “boa
vida”.
Os frades e a sua suposta vida integram há muito e
com alguma abundância os registos dos múltiplos domínios da literatura de
tradição oral: cancioneiro, lendas, narrativas, lengalengas, adivinhário,
toponímia, alcunhas, gíria e adagiário. No caso deste último, são conhecidos
adágios que reflectem a suposta boa vida dos frades: “Comer que nem um abade”,
“A ordem é rica e os frades são poucos” e “Migalhas de frade, muitas vezes
sabem bem”. Estes alguns dos registos fradescos que no decorrer dos séculos têm
sido transmitidos de geração em geração, por tradição oral. Tais registos
integram há muito e por direito próprio a Mitologia Popular Portuguesa.
Face ao exposto não é de estranhar que a barrística
popular de Estremoz tenha perpetuado no barro uma figura que se crê remontar ao
séc. XIX (7) e que representa um Frade a Cavalo.
Morfologia e cromática do Frade a Cavalo
A figura mede cerca de 20 cm e representa um Frade a Cavalo, muito
direito, olhando em frente e segurando nas mãos um odre de vinho, negro com
costura zarcão e tampa amarelada, configurando madeira. O frade enverga o
tradicional hábito castanho com capucho. Curiosamente, as mangas do hábito
apresentam orla e tripla abotoadura amarela, cor que também se observa listada no
capuz. A abertura superior do hábito apresenta listas castanhas e zarcão,
dispostas alternadamente. As vestes integram ainda um cordão amarelo, atado à
cintura, com duas pontas pendentes para o lado esquerdo do cavaleiro.
Na cabeça, dois pontos negros representam os olhos,
encimados por dois traços castanhos que figuram as pestanas e as sobrancelhas.
O nariz em relevo, tem a forma de prisma triangular e a boca é interpretada por
uma linha vermelha. Em cada uma das faces é visível uma roseta alaranjada. O
cabelo é castanho-escuro, encobre as orelhas e está parcialmente coberto por um
chapéu (chapéu aguadeiro) negro, com copa semi-esférica, dobrada a meio e aba
circular, totalmente virada para cima. Da parte posterior da copa partem dois
ramos de uma fita amarela listada de vermelho e verde nas pontas, pendentes
para baixo.
O frade calça botas negras com esporas imitando
metal e fixadas às botas por aquilo que simula serem fivelas metálicas assentes
no peito da bota.
O frade está montado num cavalo cuja cor afigura pelagem
de cor creme, malhada de negro nas patas dianteiras e no topete (franja). A
crina e a rabada do quadrúpede apresentam uma série de incisões pintadas a
negro.
A cabeça do equídeo está levantada para cima e nela
são visíveis duas orelhas cónicas levantadas e viradas para trás, dois olhos
negros pintados em círculos brancos, uma linha incisa de cor vermelha que imita
a boca e dois pontos incisos que lhe são paralelos, arremedando as narinas bem
abertas.
As patas do bicho terminam naquilo que aparentam
ser cascos de cor negra.
Sobre o dorso da montada é visível uma manta creme
listada de vermelho e verde, na qual supostamente se apoia a sela onde o
cavaleiro está sentado. Sob o hábito, as pernas arqueadas do cavaleiro
acompanham a curvatura do dorso do animal e o seu contorno está destacado por
dois traços zarcão, um à frente e outro atrás de cada perna. Na parte posterior
do dorso é observável aquilo que aparenta ser uma manta de viagem, castanha, enrolada.
O arreio do animal é constituído por uma cabeçada
de cor castanha e rédeas da mesma cor que assentam no cachaço do bicho.
O binómio frade-cavalo assenta numa base prismática
rectangular de topo verde e orlada de zarcão.
As marcas identitárias de José Moreira
As figuras manufacturadas por José Moreira
ostentam marcas identitárias indeléveis que o permitem identificar como autor.
O olhar das figuras antropomórficas é definido por
sobrancelhas e pestanas paralelas, sendo estas últimas tangentes às meninas do
olho, que sendo maiores que noutras representações, tornam o olhar mais
expressivo.
Nas figuras zoomórficas e relativamente a outras
representações, os cavalos têm uma cabeça maior, um olhar mais vivo, as narinas
e a boca estão mais bem definidas e os focinhos estão arrebitados, como que
procurando afastar-se do pescoço.
Estando o equídeo a marchar para o lado esquerdo do
observador, a crina está totalmente virada para o lado do observador, o mesmo
se passando com a rabada, comprida e a roçar o chão.
A base em que assenta esta figura tem um topo integralmente
verde, ao contrário de outras representações que a têm pintalgada de branco,
amarelo e zarcão.
Leituras do Frade a Cavalo
É sabido que um cavalo se exprime não só por sons,
mas também através da linguagem corporal, transmitindo-nos sinais que são
inteligíveis. A meu ver, o barrista comunicou à peça alguns desses sinais, que
no seu conjunto nos relatam o contexto por ele retratado e perpetuado no
barro.
A cabeça do equídeo levantada significa que o animal
quer ver à distância, postura associada a uma situação de alarme, porque o
perigo sente-se à distância.
As orelhas levantadas e viradas para trás
significam que a montada está atenta a algo que se passa atrás que é a presença
do cavaleiro e traduzem submissão e obediência à voz de comando daquele.
As narinas dilatadas são indício de atenção.
A rabada inclinada para o lado do observador dá a
sensação de movimento. Bater com a rabada é um movimento que o quadrúpede
utiliza para afastar os insectos do corpo e que por isso é observável sempre que
o animal está insatisfeito.
Resumindo: o barrista quis representar um cavalo
atento, submisso à voz do cavaleiro, mas algo insatisfeito.
Por sua vez, o cavaleiro revela inteira confiança na montada, uma vez que não empunha as rédeas, as quais estão apoiadas no cachaço do bicho. Toda a destreza do frade, supostamente em viagem, parece estar concentrada em segurar nas mãos um odre de vinho para as suas necessidades, configurando os mesmos cuidados com que durante a liturgia o celebrante segura o ostensório.
Por sua vez, o cavaleiro revela inteira confiança na montada, uma vez que não empunha as rédeas, as quais estão apoiadas no cachaço do bicho. Toda a destreza do frade, supostamente em viagem, parece estar concentrada em segurar nas mãos um odre de vinho para as suas necessidades, configurando os mesmos cuidados com que durante a liturgia o celebrante segura o ostensório.
O que dizem os estudiosos
Para Hugo Guerreiro (4) “Neste conjunto, o Frade a
Cavalo agarrado ao odre do vinho, sobressai como expressão de anticlericalismo,
comum à época no universo republicano e que teve grande expressão no Figurado
produzido por Bordalo Pinheiro. Foi usado para ridicularizar e assim
desacreditar o clero.”
Já para Joaquim Vermelho (7), “A figura está
tratada de forma naturalista sem denodar qualquer sentido crítico ou
caricaturial, não seguindo o figurino da época do frade “gordo e anafado, bem
comido e bem bebido”.
Revejo-me inteiramente na interpretação de Joaquim
Vermelho e discordo inteiramente da interpretação de Hugo Guerreiro. Na
verdade, na figura em estudo cuja origem remonta ao séc. XIX, não consigo
vislumbrar qualquer expressão de anticlericalismo de pendor republicano. Apenas
consigo observar a perpetuação no barro de uma das múltiplas componentes da
mitologia popular sobre frades: a boa vida.
BIBLIOGRAFIA
(1) - Como
entender os sinais e o comportamento dos cavalos. [Em linha]. [Editado em
12 de Novembro de 2019]. Disponível em:
http://www.sanoldog.com.br/como-entender-os-sinais-e-o-comportamento-dos-cavalos/
. [Consultado em 27 de Agosto de 2020]
(2) - DIAS DA CUNHA, Sandra. A comunicação do cavalo. [Em linha]. [Editado em 16 de Novembro de
2018]. Disponível em: http://www.equitacao.com/artigos/2176/10/a-comunicacao-do-cavalo/
. [Consultado em 27 de Agosto de 2020]
(3) - Formas
de expressão e sinais da comunicação dos cavalos. [Em linha]. [Editado em
21 de Junho de 2019]. Disponível em:
https://www.comprerural.com/formas-de-expressao-e-sinais-da-comunicacao-dos-cavalos-eles-sao-muito-sensitivos/
. [Consultado em 27 de Agosto de 2020]
(4) - GUERREIRO, Hugo. Figurado de Estremoz : produção património imaterial da humanidade.
Afrontamento. Porto, 2018 (pág. 95).
(5) ~ LOISEAUX, Charles. Traite des Ordres et Simples Dignitez. Abel l’Angeler. Paris, 1610
(pág. 74).
(6) - MATOS, Hernâni. Bonecos de Estremoz. Afrontamento. Estremoz / Póvoa de Varzim, 2018
(pág. 68).
(7) - VERMELHO, Joaquim. Sobre as cerâmicas de Estremoz – Arquivos da Memória. Edições
Colibri/Câmara Municipal de Estremoz. Lisboa, 2005 (pág. 104).
Frade a Cavalo (de frente). José Moreira (1926-1991).
Frade a Cavalo (de trás). José Moreira (1926-1991).
Muito obrigado Professor Hernâni! Cada um com as suas habilidades... Mais uma vez um texto de qualidade que analisa uma das figuras menos conhecidas da nossa barristica e que hoje já praticamente não se produz. Quem sabe com este seu texto o mercado volta a "despertar" para esta figura? Um forte abraço
ResponderEliminarObrigado, Jorge. Um grande abraço para si, também.
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