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sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Brinquedos de louça de Estremoz


Fig. 1 - Pote com tampa. Finais do séc. XIX.

Algures em 2012 recebi um telefonema da barrista Maria Luísa da Conceição, minha vizinha e amiga, a qual me disse:
- “Por motivo de saúde, uma amiga minha vai passar a viver com a filha e está a desfazer-se de coisas pelas quais não tem interesse especial. É o caso de umas louçinhas de Estremoz, que talvez lhe possam interessar.”
Perguntei-lhe então:
- “Quem é a senhora?”
Resposta da barrista:
- “Você conhece. É a Isolete Correia que foi telefonista e colega da senhora sua mãe”.
Nessa altura o meu coração deu um baque. É que eu sabia que a senhora herdara a colecção de Bonecos de Estremoz do Tenente-coronel Pinto Tavares, a qual vendeu a um comerciante do Mercado das Velharias, que por sua vez a vendeu ao pintor Armando Alves. É uma colecção extraordinária que foi adquirida pelo Armando e me escapou das mãos porque eu cheguei ao Mercado às 8 horas e ele tinha chegado mais cedo. Acreditem ou não, andei doente uma semana por causa dessa perda. Valeu-me a abertura do Armando que me franqueou as portas da sua casa, a fim de fotografar os bonecos, para estudar posteriormente. Tive que recorrer ao Luís Mariano Guimarães, já que eu e as máquinas fotográficas não nos damos lá muito bem. No conjunto fotografado havia três loucinhas, ou seja, três “Brinquedos de louça de Estremoz”. Pressenti então que a senhora podia ter ficado ainda com alguns desses brinquedos. Depois da barrista Maria Luísa da Conceição me ter dado o número de telefone da senhora e eu ter combinado com ela a hora de ir a sua casa, lá fui. O meu pressentimento estava certo. Comprei-lhe então aqueles brinquedos, o que me deu imensa satisfação.
Os “Brinquedos de louça de Estremoz” que ilustram este texto são uns do Armando e outros meus. Pertenceram todos à colecção do Tenente-coronel Pinto Tavares e passo a apresentá-los: Pote com tampa (Fig. 1), Panela com tampa (Fig. 2), Cântaro com tampa (Fig. 3), Bilha (Fig. 4), Bule (Fig. 5), Bule (Fig. 6), Fogareiro (Fig. 7), Apito de água (Rouxinol) (Fig. 8), todos dos finais do séc. XIX.
De “Brinquedos de Louça de Estremoz” nos fala Virgílio Correia (1)-pág. 80: “Na feira de S. Tiago — a grande feira estremozense — do ano que passou, apareceram á venda, ao lado dos bonequinhos de barro pintado e dos usuaes pucarinhos e rouxinoes para creanças, uns brinquedos de tipo especial, fortemente policromados, que, segundo afirmava a sua única vendedora, não vinham ao mercado havia muitos anos.
Fora o caso que um seu parente, oleiro, preso nas cadeias da vila, mandara ir para a sala onde temporariamente pousava, uma porção de reduções de utensílios, de uso infantil, e entretivera-se enchendo os pequeninos bojos e tampas de pinturas de gosto antiquado. Sobre a chacota, pintara ramos e linhas cruzadas, empregando o branco, o azul brando e o azul carregado, o verde, o vermelho e o côr de vinho, as mesmas cores adotadas no colorido dos bonecos. A ideia, porém,não era dele; lembrara-se de que, anos atraz, em Estremoz, este tipo de decoração era ainda corrente...”
E mais adiante (1): “Tive, dias depois da feira, ocasião de ver a oficina onde pintavam os brinquedos. Sentada numa cadeirinha baixa, deante de uma daquelas minúsculas mezinhas onde o alentejano come, sob a chaminé, rodeada de tijelinhas, a artista — era uma mulher que então trabalhava — ia colorindo, riscando, pontuando e borrando a chacota avermelhada dos brinquedos.
No meio de todas aquelas conchas de cores diferentes, lembrava um iluminador, preparando
uma capitular, ou uma cercadura naturalista.”
O tema dos “Brinquedos de Louça de Estremoz” viria a ser retomado mais tarde por Virgílio Correia (2)-pág.105, que dá a conhecer a imagem de nove desses brinquedos com diferentes morfologias e decorações.

BIBLIOGRAFIA
1 - CORREIA, Virgílio. Brinquedos de Louça de Estremoz in Revista Terra Portuguesa - Revista Ilustrada de Arqueologia Artística e Etnografia,, nº 3, Abril de 1916. Lisboa, 1916 (pág.80).
2 - CORREIA, Virgílio. Brinquedos de Louça de Estremoz in Revista Terra Portuguesa - Revista Ilustrada de Arqueologia Artística e Etnografia, nº 10 e 11, Novembro e Dezembro de 1916 (pág. 105).

 Fig. 2 - Panela com tampa. Finais do séc. XIX.

 Fig. 3 - Cântaro com tampa. Finais do séc. XIX.

 Fig. 4 - Bilha. Finais do séc. XIX.
Colecção Armando Alves.

 Fig. 5 - Bule. Finais do séc. XIX.
Colecção Armando Alves.

 Fig. 6 - Bule. Finais do séc. XIX.
Colecção Armando Alves.

 Fig. 7 - Fogareiro. Finais do séc. XIX.

Fig. 8 - Apito de água (Rouxinol). Finais do séc. XIX.

terça-feira, 11 de junho de 2019

Estremoz - Surpresas do Mercado das Velharias - 02


Mercado das Velharias, em Estremoz. Fotografia de autor desconhecido.

Fiel frequentador do Mercado das Velharias em Estremoz, reincido em ir ali todos os sábados, como peregrino que vai cumprir uma promessa. Trata-se do compromisso assumido de por ali deambular à procura de registos do passado, que me permitam não só deleitar o espírito, como saciar a minha avidez de contar estórias. É que os objectos encerram em si estórias que se torna imperativo decifrar, para que possam ser transmitidas à comunidade. Daí que aqui dê conta de três exemplares de arte pastoril alentejana ali recentemente adquiridos.

Con­­sagração eucarística
A imagem mostra um invulgar exemplar de arte pastoril em madeira, representando o cálice, vaso sagrado onde, na Missa, se consagra o vinho no Sangue de Jesus Cristo. Vê-se ainda a hóstia circular, que se torna no seu Corpo às palavras da consagração.
O artefacto em madeira simboliza a Con­­sagração Eucarística, mo­men­to culminante da Missa em que, às pa­lavras de Jesus Cristo na Última Ceia, proferidas em sua me­mória pelo sacerdote celebrante, o pão e o vinho se transubstanciam no Corpo e no Sangue de Jesus Cristo.


Consagração eucarística.

Forca de fazer cordão
Trata-se de uma alfaia em madeira usada em tecnologia têxtil rural na manufactura de cordão e cuja origem remonta ao período viking (01) e medieval (02). O seu uso terá diminuído depois do séc. XII (02) e renascido no séc. XVII (04), para diminuir novamente no início do séc. XIX (3). Era usada no fabrico de cordão para utilizar no vestuário ou para pendurar objectos do cinto.
A forca de fazer cordão tem sempre uma extremidade em forma de lira, na qual se manufactura o cordão e, na extremidade oposta uma alça pela qual a forca se segura na mão que não está a ser utilizada na produção de cordão. No caso presente, a alça da forca é de forma circular e assemelha-se à cabeça de uma cágueda (fecho de coleira de gado com chocalho suspenso). Está dividida em duas partes: um circulo central e uma coroa circular que lhe é circundante, ambos lavrados. O círculo central simula uma flor com pétalas irradiando do centro e ligeiramente encurvadas para a direita do observador. A coroa, à excepção da sua parte inferior está decorada com um padrão de zig-zag. A inscrição “ANTONIO” gravada no verso da forca, perpetua na madeira o antropónimo do artista popular que a concebeu e executou.
  
Forca de fazer cordão.

Descamisador
O descamisador (ou sovino) era uma alfaia agrícola, outrora utilizada nas descamisadas, para retirar as folhas que envolvem as maçarocas de milho após a respectiva colheita, de modo a prepará-las para a debulha. O descamisador era muitas vezes em madeira, consistindo de um pau pontiagudo, mais ou menos trabalhado. Com uma mão segurava-se uma maçaroca e com a outra empunhava-se o descamisador, cuja ponta era feita incidir longitudinalmente sobre a maçaroca, de modo a cortar as folhas sobrepostas, que depois eram separadas dela. A descamisada era um trabalho colectivo nocturno, de entreajuda e de convívio da comunidade vicinal.

Descamisador.

BIBLIOGRAFIA
(01) PETTERSSON, Kerstin.  En gotländsk kvinnas dräkt. Kring ett textilfynd från vikingatiden, Tor 12. Societas Archaeologica Upsaliensis. Uppsala, 1967-1968 (pág. 174- 200).
(02) - MACGREGOR, Arthur. Bone, Antler, Ivory and Horn: The Technology of Skeletal Materials since the Roman Period.  Croom Helm. London, 1985.
(03) - GROVES, Sylvia. The History of Needlework Tools and Accessories. Hamlyn Publishing. Middlesex, 1966.
 (04) - Oxford English Dictionary. Ver: “Lucets”.

domingo, 5 de maio de 2019

Estremoz - Surpresas do Mercado das Velharias - 01

O Mercado das Velharias em Estremoz continua a ser um pólo de atracção de turistas naturais e estrangeiros. Se uns o descobrem ocasionalmente, outros são seus frequentadores habituais, à procura de peças para integrar as suas colecções e que por vezes já pré-existiam no seu imaginário. Dou hoje conta de três espécimes que polarizaram a minha atenção e que por isso mesmo adquiri, visto assentarem como uma luva nas minhas colecções.

Prato raso de Estremoz, em barro vermelho vidrado, com 17, 5 cm de diâmetro. 
 Comemorativo das Festas à Exaltação da Santa Cruz de 1990. Decorado com motivos
florais e tendo no centro, em relevo, a imagem do Senhor Jesus dos Passos de Estremoz,
 obtida a partir do molde em gesso, utilizado pela Olaria Alfacinha nos anos 60 do
séc. XX, na produção de medalhas em barro, comemorativas daquelas Festas.

No parte posterior do prato, a marca manuscrita "Olaria / Alfacinha / Estremoz /
/ Portugal / Joana. De salientar que entre 1987 e 1995 (data do seu encerramento),
a Olaria Alfacinha que anteriormente era propriedade da firma Leonor das Neves da
Conceição Herdeiros, passou para a posse de Rui Barradas e sua mulher Cristina
Barradas. Aí Rui Barradas, barrista e azulejista, produziu louça vidrada de barro
vermelho que era comercializada numa loja de artesanato, propriedade do casal e
situada na Praça Luís de Camões, nº 11, em Estremoz. 

 Pisador em madeira, provavelmente manufactura de arte pastoril. Trata-se de uma
peça bi-funcional onde numa extremidade figura o pisador (pilão) e na outra uma
colher para retirar o pisado do gral. 16 cm de comprimento. 

Púcaro em barro de Estremoz com a particularidade de reunir em si, três tipos de
decoração: empedrado, riscado e picado. Dimensões em cm: 13, 5 (altura), 12 (largura),
5 (diâmetro da base), 5,7 (diâmetro exterior da boca). Embora não apresente marca de
oleiro, o picado (neste caso círculos), permite identificá-lo como exemplar da Olaria
Regional de Mário Lagartinho.

Hernâni Matos

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2017

Mercado das velharias



O sábado constitui um ponto alto na semana estremocense. Há mercado, o que se traduz em fluxos consideráveis de forasteiros que vêm até nós, o que tem reflexos muito positivos na economia local. Creio ser interessante analisar aqui alguns aspectos sociológicos do mercado das velharias.

Ainda as bancas estão a ser montadas e já se começam a fazer negócios. Os primeiros compradores são os próprios vendedores, que procuram peças para clientes seus. Por essa hora já por ali andam alguns frequentadores assíduos, como é o meu caso. Procuramos coisas que o imaginário que nos vai na alma nos incita a demandar.
No espaço do mercado das velharias coexistem três fraternidades: 1 - FRATERNIDADE DOS VENDEDORES - Engloba: antiquários, alfarrabistas, ourives, moedeiros, vendedores de roupa antiga, revendedores de recheios de casa, ferro-velhos, etc. Começam a conviver logo no mata-bicho, ainda antes de armarem as bancas. Alguns já se encontraram noutros locais, depois de sábado passado. De qualquer modo, começam logo ali a pôr a escrita em dia. Partem de seguida para a montagem e arrumação das bancas, o que alguns não fazem sozinhos ou porque têm sociedade ou trazem família. É vulgar ouvir exclamações do género: “Vamos lá ver o que é que isto hoje vai dar!”. Cada um deles à sua maneira, é mestre na técnica de vendas. Com ou sem regateio ou com atençõezinhas com os clientes, lá vão fazendo negócio. Cada um deles tem o seu tipo próprio de clientes, o qual procura fidelizar, já que lhe conhece os gostos. Aqueles que têm a melhor mercadoria costumam dizer: “Os meus clientes só aparecem a partir das 11 horas”. A meio da manhã vão todos molhar o bico e alguns continuam conversas interrompidas. Dali partem para dar o seu melhor até ao encerramento do mercado, lá pela uma da tarde. Então, depois de darem contas à vida, lá vão levantando as bancas e encaixotando a mercadoria. É uma tarefa cíclica que faz parte do ofício que uns sempre tiveram e outros tomaram como seu, para reforçarem as pensões de reforma. Alguns e até porque vão para longe, criaram o hábito de almoçar juntos, o que fazem num restaurante vizinho. Não sendo uma classe, os vendedores constituem uma fraternidade que se pode manifestar de maneiras inesperadas, como aconteceu recentemente no funeral dum vendedor em Évora, onde compareceram vendedores de todo o país. 2 - FRATERNIDADE DOS CLIENTES - Os compradores são dos mais diversos. Há aqueles que compram circunstancialmente algo de que gostaram e aqueles que são coleccionadores de objectos de determinada tipologia ou tema. Alguns são simples ajuntadores. Todavia, há aqueles que são recolectores e procuram reunir provas materiais ou imateriais de tempos idos, visando reconstruir essa época, o que muitas vezes conduz à publicação de estudos sobre o assunto. Daí que os coleccionadores constituam uma fonte de informação preciosa para os vendedores, dos quais recebem também ensinamentos. Os clientes constituem também uma fraternidade, pois partilham informação e dão conhecimento uns aos outros de peças que lhe possam interessar. Por vezes também convivem à mesa do café ou restaurante mais próximo. 3 - FRATERNIDADE DOS MIRONES - Há diversos tipos de mirones: - Os que vão visitar as bancas como quem visita um museu, ou não fosse o mercado de velharias um museu generalista desarrumado; - Os que passam pelas bancas para chamar a atenção de amigos ou familiares para determinados objectos. São vulgares conversas do tipo ”Lembras-te José, quando a gente tosquiava ovelhas com tesouras daquelas?” ou então “Sabes uma coisa neto? Quando eu era da tua idade não havia computadores. A gente escrevia numa lousa como aquela, com um lápis de pedra daqueles que ali estão. Era o que a gente tinha.”; - Aqueles que passam pelas bancas para perguntar o preço de determinado objecto, pois lá em casa têm um idêntico que poderão vender. Os vendedores já conhecem o estilo e geralmente respondem: “Esse objecto não tem preço. Não está à venda!”. Os mirones constituem igualmente uma fraternidade, caracterizada por não gastar um cêntimo e que ao serem muitos, podem dar a falsa impressão de o mercado estar forte, quando pode estar mesmo fraco em termos de compras e vendas. 

sexta-feira, 16 de janeiro de 2015

Uma cigarreira real?




Um artefacto votivo
Sou um velho frequentador da Feira das Velharias, em Estremoz. Tal condição não impede, todavia, que por vezes, me sinta maravilhado face à descoberta de uma peça que me fascina o olhar, extasia a alma e cativa o espírito. Dai que não me reste outra solução, que não seja adquiri-la para a estudar, falar com ela e descobrir o que ela tem para me dizer. Foi o que aconteceu com a bela cigarreira em madeira, recentemente obtida, cuja imagem reproduzo e que sem mais delongas passo a descrever.
Trata-se de uma cigarreira com a forma de um sólido regular oco, constituído por duas partes: o recipiente e a tampa que nele encaixa, qualquer deles de secção elíptica, com eixo maior de 6,3 cm e eixo menor de 2,8 cm. A altura da cigarreira é de 9,8 cm e o seu peso de 76 g. O fundo do recipiente e o topo da tampa são lisos.
É uma extraordinária peça de arte pastoril alentejana, em madeira, finamente lavrada em qualquer das faces. Uma delas está decorada com motivos vegetalistas e ostenta ao centro a coroa real, encimada por quatro trevos de quatro folhas. Tradicionalmente, o trevo de quatro folhas é considerado um poderoso amuleto. Incluir na decoração de um objecto, um trevo de quatro folhas, é formular ao seu proprietário, votos de prosperidade, saúde e fortuna. Há quem considere ainda que cada folha do trevo tem um significado próprio: Esperança, Fé, Amor, Sorte, bem como o número de folhas (4) - representa um ciclo completo, como as 4 Estações, as 4 fases da Lua ou os 4 elementos da Natureza: Ar, Fogo, Terra e Água, conforme a “Teoria dos 4 Elementos” de Aristóteles (384-322 a.C.).
Na outra face observa-se uma dupla cercadura, na qual estão inseridas de cima para baixo, as inscrições ALB (na tampa), 1875 (no recipiente), seguindo-se ainda neste, um sulco quadrangular, onde eventualmente poderá ter existido um embutido. Mais abaixo está aberto um malmequer.
A inscrição ALB corresponderá às iniciais do nome do proprietário e 1875 será o ano de manufactura da cigarreira. Quanto ao malmequer, simboliza em termos florais, o ouro, a prata e o dinheiro, pelo que reforça os votos de fortuna manifestados ao possuidor da cigarreira.

Um rei fumador
Em 1875 ocupava o trono português, Sua Majestade Real El-Rei D. Luís I, O Popular, filho segundo de D. Maria II (1819-1853), A Educadora e de D. Fernando II (1816-1885), O Rei-Artista. Primorosamente educado, D. Luís I tinha temperamento de literato e de artista. O seu reinado notabilizou-se materialmente pelo progresso, socialmente pela paz e pelos sentimentos de convivência, politicamente pelo respeito pelas liberdades públicas, intelectualmente por uma geração notável (Adolfo Coelho, Antero de Quental, Eça de Queirós, Oliveira Martins, Manuel Arriaga, Teófilo Braga, etc.).
D. Luís I, que era fumador, diz em carta de 1862 dirigida a sua esposa a Rainha Dona Maria Pia de Sabóia (1847-1911), A Mãe dos Pobres:
Quando se esteve no mar, quando se viu a morte à frente dos olhos, quando se julga que nunca mais veremos os nossos, o cigarro faz as vezes de amigo e de companheiro, fazendo voar os pensamentos tristes, da mesma maneira que o fumo se agita ao vento. Eu viajei bastante servindo na marinha, da qual encontrarás em mim o carácter bastante desenvolvido. Mas se o marinheiro gosta de fazer viagens, quem ele mais ama é quem o conduz à felicidade. Fui marinheiro e no fundo da minha alma continuo a sê-lo e aprendi que a seguir à tempestade vem o bom tempo, a seguir às infelicidades, a felicidade. A minha única felicidade és tu.
Por essa época, Eça de Queirós (1845-1900), que apelidava D. Luís I, de O Bom, proclamava:
Pensar e fumar são duas operações idênticas que consistem em atirar pequenas nuvens ao vento.
Por sua vez, Cesário Verde (1855-1876), que viria a morrer tuberculoso, inicia o poema “Contrariedades”, confessando:

Eu hoje estou cruel, frenético, exigente; 
Nem posso tolerar os livros mais bizarros. 
Incrível! Já fumei três maços de cigarros 
Consecutivamente.



Também António Nobre (1867-1900), igualmente vítima da tuberculose pulmonar, se refere ao acto de fumar, no poema “O meu cachimbo”, onde na segunda quadra se interroga:

Fumo? E occorre-me á lembrança
Todo esse tempo que lá vae,
Quando fumava, ainda criança,
Ás escondidas do meu Pae. 

O tabaco na literatura oral
O adagiário português reprova o uso do tabaco seja sob que forma for:

- Isto é birra: quem toma tabaco, espirra.
- Quem sabe tomar tabaco não suja os dedos.
- Tabaco e aguardentes, transformam os sãos em doentes.
- Vinho, mulheres e tabaco, põem o homem fraco.

O cancioneiro popular alentejano é, contudo, mais benevolente:

O regalo do ganhão
É comer em prato cheio,
Beber vinho, se lho dão,
Fumar do tabaco alheio. (1)

Epílogo
A terminar, não quero deixar de sublinhar que apesar de não estarmos em presença de uma cigarreira real, estamos perante uma cigarreira digna de um rei, dada a riqueza e a beleza dos seus finos lavores.

BIBLIOGRAFIA
(1) - PIRES, A. Tomaz. Cantos Populares Portuguezes. Vol. IV. Typographia e Stereotipía Progresso. Elvas, 1910. 
Publicado inicialmente em 16 de Janeiro de 2015

sábado, 28 de dezembro de 2013

Terrina de Estremoz


A barrística popular estremocense causa-nos surpresas a todo o momento. No nosso caso, que não somos propriamente virgens nestas andanças, para além dos “brincos” (brinquedos), conhecíamos apenas uma tríade de peças de grandes dimensões, modeladas na roda e decoradas com as cores garridas dos bonecos de Estremoz. Eram elas: a cantarinha, o pucarinho e o candelabro, nos seus três formatos: pequeno, médio e grande. Todavia a tríade, transformar-se-ia em quaterno, graças à aquisição recente no Mercado das Velharias, em Estremoz, de uma peça com tipologia similar.  Trata-se de uma terrina com tampa e assente num prato. Quer o interior da terrina, quer o da tampa ou o fundo do prato não se encontram pintados, revelando que o conjunto é todo ele, de barro vermelho. Sob o ponto de vista do material, podemos dizer assim que se trata de uma peça de barro vermelho, decorada no exterior. Tecnicamente é uma peça manufacturada no torno e posteriormente submetida a secagem, seguida de decoração com pigmentos minerais, completada por envernizamento. A terrina não se destina assim a desempenhar a usual função de uma terrina, que é a de levar a sopa ou o caldo á mesa da refeição. Trata-se de uma terrina com funções meramente decorativas, a expor numa vitrina, num aparador ou num centro de mesa.
Em termos dimensionais (cm), a peça tem as características que passo a quantificar. Começando pela terrina: altura total – 28,5; altura sem tampa – 17; altura da tampa – 15; diâmetro do fundo – 17,8; diâmetro do bojo – 22,5; diâmetro exterior da abertura – 14; diâmetro interior da abertura – 12,5; diâmetro exterior da tampa – 15. Quanto ao prato: diâmetro exterior da aba – 27; diâmetro do fundo – 18.
No que respeita a peso (g), a peça tem as características seguintes: terrina – 1277g; tampa – 756 g; prato – 1206 g.
Em termos descritivos, trata-se de uma terrina de secção circular com pegas laterais relevadas. Bojo saliente com plissado entre as pegas.  Pé recuado, de inflexão para o exterior. Tampa de encaixe com plissado no bordo, encimada por tufo de folhas donde emergem quatro flores com caule de arame, à semelhança do que acontece nas tampas das cantarinhas e dos pucarinhos. Terrina assente num prato de forma circular, raso, de covo pouco acentuado. 
Quanto à decoração, a parte superior do bojo ostenta fundo azul-turquesa, decorado com motivos florais estilizados, utilizando zarcão, verde bandeira e amarelo. Já a parte inferior do bojo e as asas têm fundo zarcão. Na zona de inflexão do pé, a decoração é vegetalista, estilizada, a verde bandeira. O bojo apresenta um plissado tricolor, semelhante ao das cantarinhas e dos pucarinhos, com fundo amarelo no qual se dispõem paralela e alternadamente, faixas em zarcão e em verde bandeira. A tampa pompeia fundo azul-turquesa, decorado com motivos florais estilizados, utilizando zarcão, verde bandeira e amarelo. O bordo é em zarcão, encimado por plissado semelhante ao do bojo. O tufo de folhas é em verde bandeira. As flores apresentam quatro pétalas em cores diferentes: amarelo, zarcão, azul e verde, qualquer delas pintalgadas. O prato tem fundo azul-turquesa, ornamentado na orla do rebaixo com um filete simples, em zarcão. 
No verso da terrina, encontra-se gravada a marca OLARIA ALFACINHA / ESTREMOZ / PORTUGAL, com o texto distribuído por três linhas, com as dimensões de 2,5 cm x 4,5 cm. A mesma marca aparece estampada duas vezes no fundo do prato em que se apoia a terrina. Esta marca permite-nos concluir que se trata de uma peça da barrística popular estremocense, manufacturada na Olaria Alfacinha. A nosso ver, aquela marca, de dimensões razoáveis, era usada exclusivamente nas peças de olaria decoradas com as mesmas cores garridas dos bonecos de Estremoz e que como tal não foi contemplada no estudo “Bonecos de Estremoz / Marcas de Autor da Família Alfacinha / 1934-2012”, da autoria de Hugo Guerreiro e dada à estampa nos “Cadernos de Estremoz nº 3, editados pelo Município, em 2012.  
O historial da peça é singelo. Segundo Maria Inácia Fonseca Mateus, uma das Irmãs Flores, estas peças eram fabricadas na Olaria Alfacinha nos anos 60 do século XX e eram decoradas por Maria José Cartaxo, mulher de Caetano da Conceição. Segundo ela não terão sido produzidas muitas peças e lembra-se de ter havido encomendas da Embaixada Inglesa, em Lisboa. Trata-se assim de uma peça decorativa, mais rara que a cantarinha, o pucarinho e o candelabro. Uma peça que dá para arregalar a vista e aquecer o coração.




sábado, 8 de setembro de 2012

Conversa de sexta-feira



Um alentejano que se preze tem que ter um churrião.
Só assim conseguirá dar resposta às suas tradicionais responsabilidades.  


À laia de peregrino que procura conforto para a sua alma desinquieta, sou caminhante das redes sociais, onde propago a minha doutrina. Ontem deu-me para desabafar no Facebook:
- Eu que sou sabadeiro, esta noite não durmo...
E acrescentei logo de seguida:
- Vocês perguntarão: Porquê? Ao que eu responderei: Está-me na massa do sangue.É como sonhar com uma bela mulher que nos desinquieta os sentidos.
As reacções não se fizeram esperar e por ali apareceram os comentários mais diversos de amigas e amigos como Mariarita Balancho, Alice Correia, Carmem Movilha, Jeremias Moura, Manuel Falardo e Maria Isabel Marques. Cada um deles disse o que lhe deu na real gana. Fui então levado a replicar:
- Eu tenho faro. Aquilo que se convencionou chamar o sexto sentido das mulheres. Como predador nato, acho que amanhã é dia de caça grossa. Sinto isso no ar.Depois da caçada, falaremos.
E como estava com a adrenalina toda, continuei:
- Talvez amanhã consiga comprar um churrião para ir ao São Mateus que há-de vir. Há uns anos atrás tinha os vinte contos que o Quintino de Bencatel, que já lá está, me pediu. Não tinha era o sítio para meter a despesa dos vinte contos.
Hoje com um bom arranjinho, tudo se resolve. E já tenho o livrete do churrião que há-de vir. As alimárias virão depois. Decerto que havia de fazer umas belas romarias, com paragens obrigatórias de vez em quando, a fim de eu e as alimárias, bebermos cada um de nós, os respectivos líquidos regeneradores. Satisfeitos, cada um de nós relincharia à sua maneira, que isso é que é a essência da verdadeira democracia. Depois, naturalmente, seguiríamos caminho.
Seguidamente fiz um apelo:
- Dão-se alvíssaras a quem descobrir um churrião disponível no mercado de tracção animal. Se for mulher, a retribuição será um sonoro e repimpado beijo. Se for homem, paga-se com um abraço camarada, seguido de um copo de três, com direito a repetição.
Vejam lá se me ajudam e se não se esquecem de mim!
E terminei com um reconhecido:
- Bem hajam!
Hoje, terminado que é o mercado de sábado, estou inconsolável, porque o meu faro falhou. Constipação ou alergia? Não sei. Apenas sei que não vi nada que me tirasse o fastio. E quanto ao churrião, nem cheiro. Apenas a impertinência acutilante do meu irmão gémeo:
- Hernâni, quem é que te manda a ti, ter adrenalina a mais?

sábado, 11 de agosto de 2012

O primeiro milho é dos pardais

Ganchos de meia em madeira, exemplares de arte pastoril alentejana
(Séc. XX). Da esquerda para a direita: Gancho articulado com uma bolota,
numa peça única (7,1 cm). Gancho articulado com um cesto, igualmente
numa peça única (5,2cm);  Colecção do autor.

O Mercado das Velharias em Estremoz é um dos ex-líbris desta cidade transtagana. Mesmo em períodos sazonais mais fracos, como é caso do mês de Agosto, surpreende-nos pela positiva. E eu que o diga.
Hoje, ainda a manhã era uma menina, pelas sete e vinte nove, recebo no meu computador, uma mensagem enviada via telemóvel, pelo meu amigo Charles. A mensagem tinha dois anexos. Um de imagem, mostrando um curioso exemplar de arte pastoril, mais precisamente uma colher. O outro de texto, com a seguinte mensagem: - Bom dia de compras....hoje valeu a pena.....
- Então vocês não querem lá ver? O Charles queria-me atazanar, porque partiu de manhã cedo para Lisboa, mas antes passou pelo Mercado das Velharias e comprou a colher, porque eu não tinha ainda passado por ali.
Se a minha prima Hifigénia fosse viva, decerto que do cimo da sua cátedra popular, diria ao Charles:
- O primeiro milho é dos pardais.
E eu creio que essa seja uma verdade inescapável. À hora da recepção da mensagem, já eu tinha nas linhas dos meus dedos, quase duas horas de teclado de computador, a minha forma de dedilhar a guitarra portuguesa que me vai na alma. Muitas vezes sou dos primeiros a chegar ao Mercado das Velharias. Hoje não aconteceu assim, porque outros valores mais altos se alevantaram. Eu tinha de escrever, porque se um homem não escreve, acaba por rebentar. Foi assim que fui para o Mercado, já a manhã era uma jovem promissora. E por ali deambulei como sempre, qual alquimista que demanda a pedra filosofal transmuteadora. Por ali sou conhecido e faço parte da mobília. Creio que até sou respeitado e tido como um entendido em várias áreas. Por vezes sou até mesmo consultado e emito opiniões e forneço pistas que se revelam benévolas para vendedores, os quais mais tarde me agradecem a disponibilidade revelada pelo franqueamento desinteressado do vasto arsenal da minha memória de elefante, da minha abastada biblioteca ou das minhas vastas referências bibliográficas. Daí que não seja de estranhar que alguns sejam gentis para comigo, tal como eu sou para com eles. O amor às velharias é isso mesmo: é feito de cumplicidades, de partilha de informação e de emoções que por vezes nos caem fundo na “cacha do pêto”.
Hoje aconteceu que alguém, que eu mentalmente já registara como vendedor de rara sensibilidade, me disse no momento exacto em que cheguei à sua banca:
- Professor, tenho aqui umas peças que decerto serão do seu agrado.
Mostrou-mas e eu perguntei:
- Quanto é?
- Faça o Professor o preço! – Respondeu o vendedor.
- Nem pense nisso! As peças são suas. O Senhor é que tem de lhe atribuir um valor. – Repliquei eu.
- Assim seja. – Respondeu o vendedor, que me propôs um preço mais que razoável. E lá fechámos negócio e decerto reforçámos a nossa amizade, porque prestámos mutuamente um serviço um ao outro. Ele vendeu e eu comprei. Foi um acto de partilha em torno de peças, das quais ambos sabemos o significado, o contexto e a temporalidade, mas perante as quais temos posturas diferentes. Exactamente porque um é vendedor e o outro é comprador.
É chegada a altura de dizer o que comprei. Tratou-se de dois belos ganchos de meia em madeira, exemplares de arte pastoril alentejana (Séc. XX). A sua beleza e delicadeza suplantam a da colher comprada pelo meu madrugador amigo Charles. Parafraseando a minha prima Hifigénia, é caso para lhe dizer:
- O primeiro milho é dos pardais!


sábado, 4 de agosto de 2012

Palavras, para quê?




À Catarina, minha filha

Primeiras
Agosto não será, porventura, o mês mais propício à escrita ou à leitura de textos extensos e muito menos pretensamente doutrinários ou intelectuais. Nesta época do ano, criadores e receptores de mensagens, jibóiam como podem e sabem, chegando a exsudar copiosamente. Todavia, a calorina não é impeditiva que alguém como eu, prisioneiro dos encantos da arte pastoril, frequente o Mercado das Velharias em Estremoz. Ali me dirijo ciclicamente em expedições cirúrgicas e precisas, com olhos de ver a minha alma e tudo aquilo que a sustenta, em demanda de objectos-emoções, que aguardam para serem possuídos e amados. Então cresço e sou maior do que eu. Tenho o destino marcado, diria um poeta do fado.
É nestas circunstâncias que procuram a minha companhia, espécimenes aparentemente ininteligíveis, mas que eu acabo por decifrar.

Segundas
A filigrana incisiva da ponta da navalha é o reflexo perfeito e real dos requebros de alma, de quem com a gesta anímica do saber falar das mãos, resolveu transmitir à conversada, através da perpetuação na madeira, a mensagem sincera do mais profundo do seu âmago.
Sabido que o 9 caracteriza o tempo de gestação humana, a rosácea nonalobada que culmina o crescimento através de folhas e espigos alicerçados numa base cordiforme, símbolo do amor, traduz a assunção da disponibilidade de constituir família e ser pai. Essa a mensagem bem portuguesa subscrita nas cores verde rubra da bandeira pátria, por um pegureiro da região de Estremoz.

Publicado inicialmente a 4 de Agosto de 2012

terça-feira, 22 de maio de 2012

O professor


O professor (2012). Irmãs Flores e Ricardo Fonseca. Colecção particular.


O PROFESSOR - Figura masculina, bem encabelada e de bigode. De pé, segurando na mão esquerda uma cantarinha de Estremoz, enquanto a direita parece acompanhar a conversação. Veste fato cinzento -escuro, com casaco de jaquetão. Usa camisa branca e gravata às listas brancas, vermelhas e azuis. Os sapatos são pretos. A figura assenta sobre base quadrangular de fundo verde - escuro. Os cantos da base estão cortados em bisel. Dimensões (cm): altura: 24; base: 6,8 x 6,8.
Boneco da autoria das irmãs Flores e de Ricardo Fonseca, seu sobrinho, confeccionado segundo a técnica tradicional dos bonecos de Estremoz.
Trata-se duma peça que foi oferecida ao autor num almoço-convívio de amigos, realizado no passado dia 6 de Maio, no restaurante Cadeia Quinhentista, em Estremoz e em que participaram entre outros: Hugo Guerreiro (director de Museu), Joaquim Rolo (artesão da madeira, chifre e cortiça), Irmãs Flores e Ricardo Fonseca (artesãos do barro), Guilhermina Maldonado (arte conventual), António Moreira (artesão do ferro), José Cartaxo (fotógrafo), Mateus Maçaneiro (poeta), Augusto Fitas e Francisca Matos (professores). O almoço tratou-se de um testemunho de amizade com o autor, como reflexo de actividades conjuntas que têm sido desenvolvidas, bem como de cumplicidades que têm partilhado.

O PROFESSOR

Desde os longínquos tempos do bibe e do pião que é recolector de objectos materiais que fazem vibrar as tensas cordas de violino da sua alma. Nessa conjuntura se tornou filatelista, cartofilista, bibliófilo, ex-librista e seareiro nos terrenos da arte popular, muito em especial a arte pastoril e a barrística popular de Estremoz.
Respigador nato, cão pisteiro, farejador de coisas velhas, o seu olhar cirúrgico procede sistemática e metodicamente ao varrimento de scanner no mercado das velharias em Estremoz, no qual é presença habitual e onde recolecta objectos que duma forma virtual, pré-existiam no seu pensamento.
O fascínio da ruralidade e o culto da tradição oral, levam-no a procurar o convívio de camponeses, artesãos e poetas populares, com os quais procura aprender e partilhar saberes.
A arte pastoril, um dos traços mais marcantes da identidade cultural alentejana, integra as suas memórias materiais de recolector. Para além do acto da colheita e mais que o fascínio da posse, importa-lhe a possibilidade de dissecação de cada peça recolhida e a cumplicidade com o autor no próprio acto de criação, constituindo um registo para memória futura e uma afirmação vigorosa da identidade cultural transtagana.
Perfilha há muito a ideia de que é necessário estabelecer pontes de entendimento entre as pessoas, já que a partilha cúmplice de ideias e valores comuns, viabiliza a edificação conjunta de arquitecturas, facto que induzirá e consolidará laços de união entre os intervenientes.
Uma das muitas coisas que partilha com os outros é a escrita, instrumento de libertação do Homem. Filho de alfaiate, aprendeu a alinhavar palavras, que permitem cerzir ideias com que se propagam doutrinas. Esse o sentido da sua intervenção cultural e cívica. É isso que gosta de fazer. O seu posto é aí. Por isso, não se quer reformar da vida.
Houve um poeta que leu na sua juventude e que falava de alguém com pena de morrer na cama, embrulhado em pus e algodão em rama. Pela sua parte, ainda que seja difícil a escolha da morte, gostaria de morrer em combate, isto é fazendo aquilo que gosta de fazer: a defesa, preservação e fomento da cultura popular. Por isso, não se pode reformar. Como combatente não se pode render, ou seja, tal como diz no seu blogue “Um homem nunca se rede, mesmo de fato e gravata”.
Escritor, jornalista e blogger intervém em domínios como a História Postal, a História Popular de Estremoz, a Etnografia e a Cultura Popular Alentejana, publicando textos, apresentando comunicações e montando exposições temáticas e iconográficas. Furiosamente independente, incisivo e cáustico quanto baste, mas sempre preciso. Procura levar tudo às últimas consequências e como franco-atirador do pensamento e da acção, busca fazer o varrimento da transversalidade dos saberes. Depois disso, a síntese dialéctica é um ovo de Colombo nascido no cu da galinha da sua cabeça.

Texto publicado inicialmente em 22 de Maio de 2012   

terça-feira, 22 de novembro de 2011

A persistência do amor


Prato ratinho em faiança policroma com 30 cm de diâmetro.

Seguramente que aí pelos meus dez anos dos tempos de bibe e de pião, eu já coleccionava postais, selos, copos e pratos lindos, que empenhadamente pedia às mulheres da minha família e de famílias alheias. E que haviam elas de fazer senão dar-mos, quando o pedido brotava vigoroso e convincente da voz cristalina dum puto com cara de anjo e caracóis de querubim?
Foi assim que arranjei as minhas primeiras peças de colecção. Alguns dirão que pelintra e pedinchão com artes de sedutor, era o que eu era. Decerto que estão no seu direito de pensar assim. Todavia, para mim não era nada disso. Era um impulso incontido de possuir tudo aquilo que considerava belo.
Pela mesma época tive os meus primeiros desgostos de amor, quando por vezes, os objectos amados e venerados pela posse, se libertavam das minhas pequenas mãos e se transformavam em cacos. Aí, eu, nem padre nem cangalheiro, demorava anos até ser capaz de fazer o funeral das vítimas da minha falta de coordenação motora. Eram tragédias de sofrimento incontido que me marcavam profundamente, das quais ainda hoje me recordo com profunda tristeza, sempre que mentalmente regresso ao tempo e aos territórios da minha infância.
Hoje, mais de cinquenta anos volvidos, poucas coisas mudaram no essencial. Persistente e imutável permanece o meu amor desinteressado à beleza, apenas aprofundado pela experiência, pela sabedoria e pela “patine” que o tempo confere ao nosso saber fazer. O amor, esse continua mais forte do que nunca.

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Estremoz - Mercado das velharias (2ª edição)

Mercado de sábado. Estremoz, Agosto de 2006. Fotografia de José Cartaxo.


À minha amiga Manuela Mendes:

O mercado das velharias desenrola-se no Rossio Marquês de Pombal, paralelamente ao mercado de criação e já ocupa uma segunda “rua”, visto que uma se tornou insuficiente. A sua origem perde-se nos anos sessenta do século passado e é, sem dúvida, um dos melhores do país. Ali nasceu espontaneamente e cresceu. Por ali aparecem:
- Alfarrabistas que por vezes nos surpreendem com livros do século XVIII ou manuscritos do século XVII, primeiras edições e encadernações em inteira ou meia de pele, gravuras, postais antigos e registos de santo que nos fazem arregalar a vista;
- Antiquários com pratos, louças e vidros antigos, imagens religiosas em madeira, marfim, barro, mármore ou granito, bem como paramentos religiosos, pratas, quadros a óleo, gravuras antigas, registos, arte pastoril e peças da barrística popular de Estremoz ou das Caldas;
- Moedeiros que vendem moedas e notas, antigas e modernas, principalmente de Portugal e Colónias;
- Vendedores de toalhas, bordados e rendas antigas, que estiveram religiosamente guardadas e que sabe-se lá, porque artes mágicas ou fatalidades do destino, acabaram por surgir à luz do dia;
- Ourives com toda a parafernália de jóias em ouro e prata, que vão desde alianças e anéis, a pulseiras, fios e correntes, passando por símbolos de superstição popular como figas, cornichos e signo-saimões;
- Revendedores de recheios de casa, onde é possível encontrar de tudo: mobílias, loiças, vidros, electrodomésticos, quadros, livros e todo o género de bugigangas;
- Ferro-velhos com uma oferta variada, que vai de alfaias agrícolas caídas em desuso até ferramentas, passando pelos mais diversos tipos de ferragens de uso urbano, bem como objectos metálicos variados, em cobre, estanho, zinco, ferro ou latão.
- E há quem ofereça uma gama muito variada de objectos que passa por antiguidades, moedas e notas, gravuras, livros, postais, louças, vidros, etc., etc,
- Nalguns casos a variedade de objectos é de tal modo diversificada, que se torna difícil sistematizá-la.
- Por ali deambulo todos os sábados, qual peregrino que ali vai para homenagear o seu Santo Padroeiro. Bem vistas as coisas, o mercado das velharias é o meu Santiago de Compostela.
Dizem que eu sou um respigador nato, um cão pisteiro, um farejador de coisas velhas. Talvez seja algo de epidérmico, se não mesmo genético. E perante os meus olhos nascem coisas que parece que estavam ali circunspectas, à espera que eu me abeirasse delas e as resgatasse: objectos de arte pastoril, peças da barrística popular estremocense ou livros que me interessam pelos mais fundamentados motivos. Ali comprei recentemente uma "ANTOLOGIA DE FIALHO DE ALMEIDA", organizada por Manuel da Fonseca e com extensa dedicatória autografa, deste último. A minha biblioteca já incorporava outros livros com dedicatórias autógrafas de outros grandes escritores portugueses, nomeadamente alentejanos, como o Conde de Monsaraz ou António Sardinha, mas quanto ao Manuel da Fonseca, o nosso "Manel", estava às escuras.
Quando as minhas mãos nervosas, tactearam o livro descoberto pela cirurgia do meu olhar, senti uma espécie de calafrio na espinha, seguido dum deslumbramento como terão porventura sentido os nossos navegadores, quando aportarem ao novo mundo.
À semelhança do que acontecia com o meu vizinho Sebastião da Gama, que conheci ainda eu era uma criança, sábado é o dia mais belo da semana. Não troco por nada, a ida ao mercado de sábado.
Num dos seus poemas que relembro de memória, o Manel diz: "Domingo que vem vou fazer as coisas mais belas que um homem pode fazer na vida". Pois eu que sou "sabadeiro", digo para mim mesmo: "Sábado que vem vou comprar as coisas mais belas que um homem pode comprar na vida" e de sexta para sábado mal durmo, farto-me da dar voltas na cama, à espera que o dia nasça. Então ergo-me, de súpalo e com toda a adrenalina dos meus sessenta e cinco anos, ai vou eu, respigador nato, cão pisteiro, farejador de coisas velhas, em passo acelerado, a caminho do mercado de sábado, em Estremoz. E quando muito mais tarde, perto da hora de almoço, regresso a casa com o estômago vazio, a minha alma vai cheia. E aguenta-se uma semana, até ao sábado que vem.

domingo, 19 de junho de 2011

O meu churrião


Há cerca de 15 anos, o Quintino, negociante de velharias em Bencatel, quis vender-me um churrião, em estado impecável, por vinte contos. Eu tinha as vinte milenas para lhe dar, mas o pior, era o resto. É que moro numa casa com primeiro, segundo e terceiro andar, mas garagem, nem vê-la. Ainda se tivesse garagem, punha o automóvel ao sete-estrelo e transformava a garagem em cocheira. Arrumava lá o churrião e só tinha que arranjar um muar e uma boa provisão de palha. Sim, porque um muar é um motor de combustão a palha. Mas eu não tinha garagem e a única alternativa era alugar um guindaste para pôr o churrião na varanda, situada ao nível dum terceiro andar. Mas então ficaria sem estendal para a roupa e corria o risco de por vingança, as mulheres da casa, porem a roupa a secar no meu escritório. Vocês estão-me a imaginar a escrever à secretária, por entre ceroulas, soutiens e lenços de assoar? Até me dava uma coisa ruim…Bom, foi um dos maiores desgostos da minha vida. E eu que tenho fama de ser teimoso como uma porta e não gosto de desistir de nada, desta vez tive de me dar por vencido. E lá fiquei com as vinte milenas, à espera doutra oportunidade. Entretanto, descarreguei a frustração, escrevendo sobre churriões e motores de combustão a palha. Mas eis que surge um dado novo. No passado sábado, no mercado das velharias, em Estremoz, o meu amigo, alfarrabista António Oliveira, de Évora, ofereceu-me um livrete dum carro de tracção animal. Foi um para mim, um momento de rara felicidade e, desde então, começo novamente a vislumbrar uma luz ao fundo do túnel. Será que é desta vez que vou arranjar o churrião? Como não posso mudar de casa, aguardo desde já que qualquer alma caridosa, me possa facultar uma cocheira ou uma garagem, para não sofrer nova desilusão. A esperança essa nunca se perde…