sábado, 28 de agosto de 2010

Os motores de combustão a palha


Carros de bois alentejanos com trigo para a eira. Cliché de bilhete-postal ilustrado do início do século XX
Edição de Faustino António Martins – Lisboa.

Na labuta diária das herdades alentejanas, os carros de tracção animal eram um equipamento indispensável ao lavrador, no transporte da carga de um lado para o outro. E o papel dos carros agigantava-se quando das grandes fainas agrícolas, como as ceifas ou a tiragem da cortiça. Eram carros puxados a bois ou a mulas, embora burros e cavalos também pudessem ser utilizados.
Para se transportar na herdade, o lavrador andava a cavalo ou de charrete, veículo que de resto utilizava quando ia à vila ou à cidade, tratar de assuntos do seu interesse.
Os camponeses com mais posses deslocavam-se em carroças com toldo (churriões) que os protegiam tanto da chuva como da torrina do sol.
Na cidade, os recoveiros usavam carroças puxadas a mulas, para transportar mercadorias entre a estação da CP ou da camionagem e os estabelecimentos comerciais.
O cancioneiro popular tem referências sobre almocreves e carreiros:

“A vida dum Almocreve
É uma vida arriscada,
Ao subir duma ladeira
E ao descer duma carrada.” [1]

“Sou almocreve de uma parelha,
Carreteio e faço lavoura:
Sou da freguesia da Amareleja,
Pertencente ao concelho de Moura.” [2]

“O meu amor é carreiro,
Traz arreatas na mão;
Também eu o trago a ele
Dentro do meu coração.” [3]

O rifonário popular tem referências a “carreiro”:
- “Muito fraco é o carreiro que tem um carro só”
Tem também referências a “carregar”:
- “Quem pega peso de graça é a balança.”
Tem ainda referências a “carga”.
- “A carga leve, ao longe pesa.”
- “Carrega o carro à traseira, andará à dianteira.”
- “Carrego caído, carrego vendido.”
- “Carro carregado pode com mais um rameiro.”
- “Grande carga leva a carreta, maior a leva o dono dela.”
- “Para a banda é que a carga cai.”
- “Quem não pode com a carga, arreia.”
Nos carros era indispensável a corna do sebo, usada no transporte de sebo com que se ensebavam os eixos dos carros de tracção animal, afim de evitar a infernal chiadeira que nos atazanava os ouvidos. As carroças carregavam normalmente esta corna na parte traseira, pendurada para o lado de fora dos varais ou então por debaixo do estrado. Lá diz o rifonário popular:
- “Pelo andar dos bois se conhece o peso da carroça”
- “Carro apertado é que canta”
- “O boi é que sofre, o carro é que geme”
- “Carro que chia quer untura”
- “Quem seu carro unta, seus bois ajuda”
- “Carro que canta, a seu dono avança”
- “Carro que não canta, não avisa chegada”
- “Carro parado não guincha”
Assim foi seguramente até aos anos sessenta do século passado, em que a tracção dos veículos era assegurada por bois, mulas, burros e cavalos. Animais estes que eu designo genericamente por motores de combustão a palha. Estes motores são do melhor que há. O lubrificante é água fresca, não poluem e produzem a afamada bosta portuguesa, que além de ser bio-degradável tem reconhecidas propriedades fertilizantes. Apetece-me assim proclamar:
- VIVA OS MOTORES DE COMBUSTÃO A PALHA!
- VIVA A BOSTA PORTUGUESA!
Na actualidade, o fertilizante expelido pelos motores de combustão a palha poderia ser alvo de intervenção da ASAE. E das duas uma: ou se purgavam os motores para não bostarem ou se purgava a ASAE. Inclino-me mais para a segunda solução, pois a primeira deixaria os motores enfraquecidos, o que faria baixar a sua potência e o seu rendimento. Haveria, pois, que purgar a ASAE.
Esta crónica está a crescer e sinto que há da vossa parte um certo mal-estar, por se estar a falar da comida de alguns (a palha) e estarmos todos de barriga vazia. E como "Barriga vazia não conhece alegrias", há que vos dar algo que comer.
Como se tem estado a falar de palha, já estou a ver que alguém que só vê em mim, ruins intenções, deve estar a pensar que eu o quero presentear com um "bife de 3 arames". Nada disso. A minha real intenção era oferecer a todos os intervenientes e seguidores desta discussão, uma caixinha de "palha de Abrantes". Porém, o meu irmão gémeo, que é mais prudente do que eu e que ao contrário de mim, é forreta, desaconselhou-me disso:
- “Eh pá, tira daí o sentido. Com a calorina que está, isso a seguir pelo correio, nem as moscas a queriam.”
E rematou:
- “Era como se estivesses a condenar os teus amigos a apanhar uma sultura!”
Então não querem lá ver que o ferrabrás do meu irmão gémeo é capaz de ter razão?
Só há uma solução, é dar-vos mesmo palha. Não a real palha que dá para encher a barriga. Por isso ireis continuar de barriga vazia. Mas podereis ficar alegres pela minha lembrança de vos enviar proverbial palha. Aqui vai uma carrada dela: 
 “A água de Janeiro traz azeite ao olival, vinho ao lagar e palha ao palheiro.“
- “A barriga de palha, a feno se enche.“
- “A majestade sem potência é gigante de palha.“
- “A palha no olho alheio e não trave no nosso.”
- “A palha, boa ou má, toda faz palheiro.”
- “Antes palha do que nada.”
- “Burro velho, palha nova.”
- “Com palha e milho, leva-se o burro ao trilho.”
- “Dia de S. Barnabé, seca-se a palha pelo pé.”
- “Em ano bom o grão é feno e no mau a palha é grão.”
- “Fogo de palha não dura.“
- “Inimigos nem de palha.“
- “Maio hortelão, muita palha, pouco pão.”
- “Melhor é palha que nada.”
- “Nem todos os doidos estão nas palhas.“
- “O que é palha, palheiro enche.”
- “O vento ajusta a palha e depois espalha.“
- “O vento suão cria palha e grão.“
- “Ofício de albardeiro, mete palha e tira dinheiro.”
- “Toda a palha faz palheiro.”
- “Todo o burro come palha, o ponto é saber-lha dar.”
- “Tudo o que é palha enche palheiro.”
- “Um homem de palha, vale uma mulher de ouro.“
Esta proverbial palha alimenta o espírito e pode ser consumida sem qualquer receio. Mesmo o da ASAE, porque a proverbial palha não se transforma em fertilizante orgânico daquele que serve para adubar as terras, mas antes em fertilizante espiritual, que podereis usar se assim o entenderdes, na adubação das vossas searas de escrita.
Lá está o meu irmão gémeo a atazanar-me o juízo outra vez:
- “Eh pá, acaba lá isso, que é só palha e para alguns é palha a mais.”
Será que tem razão, o implicante? É que o meu irmão gémeo, que é irritante como tudo, costuma dizer à tripa forra:
-" O que tu tens é palheta!"
Uma ração de palha quer-se farta, para maximizar a pujança do consumidor. Daí que eu agora vos alimente com uma boa dose de palha metafórica:
“A lume de palha = Rapidamente“
“A nome de palhas = De graça”
“Cor de palha = Cor amarelada“
“Fumo de palha = Coisa de pouco valor“
“Homem de palha = Homem preguiçoso“
“Meter palha na albarda = Iludir alguém com palavras enganadoras“
“Morrer nas palhas = Morrer pobre“
“Não mexer uma palha = Ser preguiçoso“
“Nascer nas palhas = Ser pobre de nascença“
“Por dá cá aquela palha = Por motivo fútil“
“Tirar palha a alguém = Gracejar“
“Tomar a palha a alguém = Exceder alguém“
“Travar palha com alguém = Gracejar“
“Vá para as palhas! = É doido!“
Como sobremesa da refeição, tendo em conta que o substantivo “palha” tem como diminutivo o substantivo “palhinha”, vou-vos presentear com uma pequena dose de palhinha metafórica:
“Tirar palhinha = Gracejar”
“Esconder a palhinha = Ser homosexual”
E pronto, a palheta chegou ao fim e com ela a presente crónica.


[1] - MOURA - Recolha de VASCONCELLOS, J. Leite de. Cancioneiro Popular Português. Volume II. Acta Universitatis Conimbrigensis. Coimbra,1979.
[2] - AMARELEJA (Concelho de Moura) - Recolha da Casa do Povo divulgada por Luís Chaves in Primeira Investida na Colheita Folclórica (Lírica) das Casas do Povo. Mensário das Casas do Povo, nº 225, Lisboa, 1965.
[3] - VEIROS- Concelho de Estremoz - Recolha de VASCONCELLOS, J. Leite de. Idem. Obra citada.

Carradas de cortiça na Herdade da Favela. Bilhete-postal ilustrado do início do século XX.
Edição de Faustino António Martins – Lisboa.

Churrião. Bilhete-postal ilustrado do início do século XX.
Edição de Faustino António Martins – Lisboa.
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Churrião junto ao Aqueduto – Elvas. Bilhete-postal ilustrado de meados do séc. XX.
Edição da Livraria e Papelaria Rego - Elvas.

11 comentários:

  1. Adorei!
    Gosto de visitar o seu blogue pois, através desta consulta, tenho aprendido muito da cultura Alentejana.
    Adoro o Alentejo e os Alentejanos.

    Parabéns por este seu blogue.

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  2. E assim vamos aprendendo e relembrando aquilo que muitos querem apagar da história. Apesar da rudeza do trabalho éramos um País rico e autosuficiente. Hoje, além de se irem perdendo todas as tradições temos um País que é um autêntico deserto. A Norte, os incêndios destruiram tudo, a Sul, o abandono da agriculura.
    Obrigado amigo pela lição de história.

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  3. Mais actual, mas não tão ecológico são os veículos movidos a aglomerados de biomassa, mais concretamente lenha. Durante a 2ª Guerra Mundial foram, devido à escassez dos combustíveis fosseis típicos para mover automóveis, alguns veículos foram adaptados com motores ligados a caldeiras. Apesar de muitas limitações técnicas é um modo de fazer mover veículos bastante curioso. Ver mais em (a informação apenas está disponível em inglês mas as imagens, para quem não domina o idioma, já dão uma ideia): http://www.lowtechmagazine.com/2010/01/wood-gas-cars.html

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  4. Obrigada Hernâni, por mais esta descritiva liçâo, que a meu ver (rica palha) no bom sentido e ricos adágios, que estão sempre presentes, em todos os artigos que nos apresenta. A nossa cultura é de facto muito completa e estamos sempre a aprender com os seus notáveis conhecimentos.
    Rosa Casquinha

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  5. Mais uma vez, OBRIGADO, Hernâni. É um urgente organizar e desenvolver todos este "SABERES" e divulgar mais... Bem. talvez esteja a exagerar!
    Afinal já tem um grande número de seguidores!!! Força. José Rabaça Gaspar

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  6. Colega Hernâni, aqui está mais uma crónica cheia de cultura, sentido de humor e com uma forma de escrever fantástica. Tem-me aqui como sua fã.Estes provérbios, ditos e expressões remetem-me sempre para as conversas de minha avó, senhora de grande cultura popular mas que, como a própria dizia, não conhecia uma letra do tamanho de um comboio. Ainda hoje uso muitas expressões que dela "herdei". Desta cultura ribatejana, há um provérbio que por vezes cito (normalmente em meios mais pessoais devido à linguagem utilizada)e que quase ninguém conhece mas que vou ter a liberdade de lho deixar. Avisa quanto ao rogar pragas a alguém:"As pragas andam de roda e entram no cú de quem as manda". Até ao próximo post!

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  7. A propósito de palha, há uma expressão engraçada que não mencionou: "Tás ca mosca ou cheira-te a palha?"

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  8. O Painel de azulejos é uma maravilha. Só mesmo o professôr para nos brindar, com estas imagens e todos estes proverbios interessantes. Pois no tempo dos Mercedes a palha, a vida era mais saudável e muito mais barata. Agora também há muita palha nos discursos, para enganar o Zé povinho. Obrigada professôr pelos seus postes.
    Rosa Casquinha

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  9. Vim cá hoje a convite de uma amiga.
    Fiquei cliente.

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