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quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Estória da amizade entre um oleiro e o seu barbeiro, na Vila de Redondo, no ano de 1941


Borracha. F.R.C., oleiro. Redondo, 1941.

Ao meu amigo Dr. António Carmelo Aires,
seguramente o maior coleccionador
e investigador da cerâmica de Redondo


Antelóquio
Recentemente, ao fim da tarde, localizei à venda na Internet, uma peça olárica de Redondo, a qual já lá estava há quatro horas. O meu interesse por ela foi “tiro e queda”, que é como quem diz “amor à primeira vista”. Instantes depois estava comprada e paga, “não fosse o diabo tecê-las”, o que a acontecer não seria a primeira vez e decerto também não seria a última. É que o tempo é uma variável muito importante a ter em conta, já que outros se podem antecipar. Vários foram os factores que contribuíram para a minha forte motivação em a comprar. O leitor irá perceber porquê.

Leitura da peça
O exemplar olárico de Redondo que é objecto do presente estudo, configura uma “borracha”, recipiente em couro para transporte de líquidos, em particular de vinho. O mesmo dispõe de uma abertura para entrada e saída de líquido, a qual pode ser vedada com uma rolha. Dispõe ainda de duas alças, uma, próximo da embocadura e outra, do lado oposto, junto ao fundo. Estas alças visam permitir prender a elas um cordão ou tira de couro, permitindo transportar a borracha a tiracolo. A borracha funciona assim como cantil.
O engobe exterior e interior da peça é numa tonalidade creme, a qual pretende imitar a cor do couro. A superfície da “borracha” foi esgrafitada e pintada em tricromia com as cores tradicionais da cerâmica de Redondo: verde, amarelo e ocre castanho.
A peça, de morfologia periforme, encontra-se decorada em cada uma das duas faces, por um grupo de ilustrações legendadas, que nos relatam uma estória.
Numa das faces, encontram-se ilustrados e identificados por um número, dez utensílios de barbeiro, de meados do séc. XX: 1 – taça da espuma, 2 – pincel da barba, 3 – cabaça do pó de talco, 4 – navalha da barba, 5 – assentador de navalhas, 6 – pente, 7 – tesoura, 8 – máquina de cortar cabelo, 9 – frasco de perfume, 10 – escova de tirar os cabelos. Por debaixo deste conjunto de ilustrações, uma inscrição em maiúsculas, distribuída por quatro linhas: “OFERECE F. R. Cte / A J. FALÉ / BARBEIRO / SM”. Desconheço o significado da sigla SM na última linha. Todavia, é possível concluir que estamos em presença de uma “borracha” em barro vidrado, oferecida e dedicada por um oleiro de Redondo (F. R. Cte) a um barbeiro (J. Falé), decerto o seu barbeiro, residente naquela Vila.
Na outra face da “borracha” encontram-se três ilustrações. Na parte de cima, um cacho de uvas com duas parras. Na parte debaixo e à direita, um homem (supostamente o barbeiro) de boné na cabeça e sentado numa cadeira, não se sabe se por já não ser capaz de se ter em pé. Com a mão direita leva um copo de vinho à boca, enquanto que com a mão esquerda segura uma garrafa de vinho parcialmente cheia, assente na sua perna esquerda. Esta ilustração tem à sua esquerda, logo abaixo do cacho de uvas com parras, uma outra ilustração. Trata-se de uma tripeça na qual assenta um barril, de cuja torneira escorre vinho que está a encher uma garrafa. A mensagem parece óbvia: O barbeiro é um grande bebedor, de tal modo que ainda não tendo despejado uma garrafa, já se encontra outra a encher, para não haver perda de tempo. Na parte debaixo e à esquerda, uma inscrição em maiúsculas, distribuída por quatro linhas: “VIVA / A PARÓDIA / VIVA / 9-5-1941”. As quatro linhas desta inscrição estão cobertas de ocre castanho, como que simulando que o oleiro tivesse entornado vinho quando confeccionava a peça. Nesse sentido, a peça materializa a auto-crítica do oleiro, que se assume igualmente como grande bebedor e amante da “paródia”, tal como o seu amigo barbeiro.

Epítome
Do exposto se conclui que a peça em estudo constitui aquilo que se pode considerar uma ”Jóia da Coroa”. Com efeito, é de uma tipologia pouco vulgar, está datada, tem oitenta anos, é uma peça com dedicatória, falante e ilustrada, que conta com humor a estória de amizade entre um oleiro e o seu barbeiro na Vila de Redondo. Em suma: é uma peça única, pela qual fiquei desde logo apaixonado e mais confortado desde que a paguei. É com peças destas que vão crescendo e se vão edificando a pulso, passo a passo, colecções modestas como a minha e que assim se vão consolidando.

Hernâni Matos




 

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

É melhor comer filhoses



Cerâmica de Redondo. Homem vegetal. Experiência de decoração de Hernâni Matos, 1973.


Em 1973 (há 48 anos) tinha eu 27 anos e numa ida ao Redondo, deu-me para fazer a experiência de decorar 2 pratos. Um, era a ilustração dum poema meu e um dia deu-lhe para se fazer em fanicos e foi à vida. O outro nunca fanicou e hoje é quase um cinquentão. Chamei-lhe na época "Homem vegetal" e a designação é óbvia, tal como é obvio que a minha experiência, apesar de modernista, não me elevou. Na verdade, tenho mais vocação para outras coisas que o meu pai alfaiate não me talhou, mas me talhei a mim próprio, o que dá para perceber que decorar um prato não é o mesmo que comer filhoses.

quinta-feira, 19 de agosto de 2021

Imortalidade sempre! Aniversário nunca mais!





Todos sabemos que 1+2 dá 3 e que de igual maneira, 2+1 também dá 3. Os matemáticos chamam a isto, propriedade comutativa da adição de números. Porém, não generalize o leitor. Há operações que não gozam da propriedade comutativa. Assim, por exemplo, a operação “calçar o vestuário do pé” conduz a um resultado que é diferente, conforme se calçar primeiro a meia e depois o sapato ou, se pelo contrário, se calçar primeiro o sapato e só depois a meia.
Vem isto a propósito de eu fazer hoje 75 anos, número composto dos algarismos 7 e 5, que somados dão 12, noves fora 3. Ora, a imagem espelhada do número 75 é o número 57, composto igualmente pelos algarismos 5 e 7, que somados dão 12, noves fora 3. Apesar desta coincidência, a operação “ordenar números”, não goza da propriedade comutativa. Na verdade, pôr o 7 antes do 5, não é o mesmo que pôr o 5 antes do 7. Quer isto dizer, que com 75 anos estou mais velho que com 57. Ora eu não quero envelhecer. Que fazer então? Tenho que deixar de fazer anos, senão envelheço. Por isso, hoje vou deixar de fazer anos, para não ficar mais velho. Assim, torno-me imortal. Os amigos não precisam de ir ao meu velório, o que é bom para eles, já que me têm aturado quanto baste. Além disso, a família não gasta dinheiro nas exéquias, o que se traduz em poupança. Por outro lado, como não vou parar ao forno crematório, contribuo para a diminuição da poluição atmosférica.
Se eu ficasse mais velho, acabaria por morrer, o que me recuso determinantemente. Todavia, se for contrariado neste meu propósito, mesmo morto hei-de me mexer dentro do caixão, em sinal de protesto. E essa será, porventura, a melhor partida que um velho gaiteiro pode pregar aos gatos-pingados que lhe carregam o ataúde. Talvez se caguem todos de medo e larguem a urna para o chão. Nesta altura, soltar-se-á a tampa do féretro, eu aproveito para ressuscitar e de punho direito erguido, gritarei:
- IMORTALIDADE SEMPRE! ANIVERSÁRIO NUNCA MAIS!

sábado, 17 de julho de 2021

A República é uma bebedeira


Bêbado sentado numa pipa, com um odre de vinho nas mãos.
Oficinas de Estremoz dos finais do séc. XIX.


Adquiri recentemente um belo e curioso exemplar de barrística popular produzido numa das Oficinas de Estremoz dos finais do séc. XIX, tematicamente situado no domínio satírico, o que me é particularmente grato.
Representa um homem trajando à moda da época, sentado numa pipa, com um odre de vinho nas mãos. As notórias rosetas que ostenta nas faces, indiciam tratar-se de um bêbado. Este, apresenta a cabeça coberta por um barrete frígio vermelho, símbolo da Revolução Francesa (1789) e desde então adoptado como inequívoco símbolo do regime republicano, que em 1910 seria implantado em Portugal.
O Partido Republicano Português foi fundado em 1876, iria crescer e a propaganda republicana iria suscitar adesão popular às suas propostas, que abalavam fortemente a monarquia no poder desde o início do reinado de D. Afonso Henriques (1143).
Naturalmente que a batalha ideológica entre monárquicos e republicanos seria intensa e cada um dos lados tinha os seus apoiantes e os seus detractores. Essa batalha ideológica teria repercussões em vários domínios: na literatura, na imprensa, na ilustração e é claro na arte popular, acabando os autores por serem partidários duma facção ou da outra.
A meu ver, o presente exemplar de barrística popular estremocense é uma sátira monárquica à República, já que o bêbado usa barrete frígio vermelho. A mensagem anti-republicana implícita parece ser evidente: “A República é uma bebedeira”.
De salientar a decoração da base octogonal (quadrangular com as pontas cortadas em bisel), sarapintada com manchas brancas, verdes e pretas, que configuram um tecido camuflado.

segunda-feira, 17 de maio de 2021

As Manas Perliquitetes de Vera Magalhães


 
Manas Perliquitetes. Recriação da barrista Vera Magalhães (1966-   ) de figuras
do séc. XIX, existentes no Museu Municipal de Estremoz.

À bonequeira Vera Magalhães dedico o presente texto,
construído com base no facto de no léxico português, 
“perliquitete” ser sinónimo de “afectado”
 e “que se veste com esmero”.
 O BONEQUEIRO DAS PALAVRAS

Não conheciam as Manas Perliquitetes? Eu apresento-as. Da direita para a esquerda, são respectivamente: a DUPONDINA VERMELHUSCA e a DUPONTINA VERDASCA. Nelas, o vestido, a capa e a touca, substitui as calças, o paletó e o coco de Dupond e Dupont, os polícias patuscos criados por Hergé. Trata-se de duas manas cuscas, abelhudas, que tinham por hábito meter o nariz onde não eram chamadas, dar fé de tudo, para depois como boas linguareiras, mexericar até dizer basta. Eram puritanas no vestir e trajavam com esmero à moda dos finais do séc. XIX. Afectadas, andavam por aí, armadas em guardiãs dos bons costumes. Ai de quem caísse na alçada do olho e da língua delas. Estava perdido. Não bastava mudar de freguesia. Tinha que mudar pelo menos de concelho. Qualquer um evitava cruzar-se com elas sem lhes fazer uma grande vénia, acompanhada dum proverbial cumprimento:
- Os meus respeitos, minhas senhoras!
E mesmo assim estava sujeito a que se desviassem dele, empinassem o pescoço e arrebitassem o nariz. Quem tivesse a coragem de olhar para trás, após se cruzar com elas, veria que estavam a fazer o mesmo. Com os seus olhos cuscos, estavam a captar imagens que para memória futura iriam registar na base de dados da sua mioleira. Querem um conselho? Se alguma vez as virem, fujam delas a sete pés. E se estiverem a sonhar, acordem e depois fujam. Lá diz o rifão. “Homem prevenido vale por dois!”

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Auto dos ganchos de meia

 
Ganchos de meia (Da esquerda para a direita e de cima para baixo): Padre, Sacristão,
Senhora de Pezinhos, Peralta, Sargento, Palhaço, Frade, Freira, Nossa Senhora, Galo.
Ana Catarina Grilo (1974-  ).

À barrista Ana Catarina Grilo


O enredo desenrola-se na actualidade, na rua de Santo André da chamada Cidade Branca. O perfil dos personagens pode ser descrito assim:
- PESSOA QUE EU CÁ SEI: Coleccionador apaixonado de tudo o que tem a ver com a identidade cultural alentejana. Escritor, Jornalista e Blogger, o seu mais recente livro é um livro de amor aos Bonecos de Estremoz.
- MULHER: casada com a pessoa que eu cá sei, a quem interpela com frequência acerca dos Bonecos que leva para casa.
No desenrolar da acção serão simplesmente designados por CÁ SEI e MULHER.
CÁ SEI acabara de comprar uma série de ganchos de meia à barrista Ana Catarina Grilo. Já perto de casa é surpreendido pela MULHER, que acabara de sair à rua. Vendo-o com um saco na mão, decide questioná-lo, o que dá origem ao seguinte diálogo:  
MULHER - Oh homem! O que levas no saco?
CÁ SEI - São ganchos, mulher. São ganchos. São ganchos de meia.
MULHER - Mostra lá.
CÁ SEI - Podes ver à vontade.
MULHER - O que é isto? Um Padre com um arame na braguilha?
CÁ SEI - Sim. E um Padre que organizou um retiro espiritual no Convento de Nossa Senhora das Graças.
MULHER - Retiro espiritual?
CÁ SEI - Retiro espiritual, sim. Para purificar a alma a pecadores.
MULHER - E para que é este Sacristão?
CÁ SEI - É para ajudar o Padre sempre que for preciso.
MULHER - E esta Senhora de Pezinhos com o chapéu às três pancadas?
CÁ SEI -  Bom. Essa é uma pecadora. Basta olhar para ela.
MULHER - Pecadora porquê?
CÁ SEI - Queres que te diga mesmo?
MULHER - É melhor não.
CÁ SEI - Tu é que sabes.
MULHER -  E este Peralta com ar de fadista?
CÁ SEI - Esse também é pecador. Não se vê logo? Queres que te diga porquê?
MULHER - É melhor não.
CÁ SEI - Tu lá sabes.
MULHER - E este Sargento?
CÁ SEI - Também é pecador.
MULHER - Pecador por quê?
CÁ SEI - Olha, mulher. Decerto que não foi por deixar enferrujar a espada.
MULHER - E este Palhaço?
CÁ SEI -  Igualmente é pecador.
MULHER - Pecador, porquê?
CÁ SEI -  Por dizer graças que não devia.
MULHER - E o que faz aqui Nossa Senhora? Não me venhas agora dizer que também é pecadora.
CÁ SEI – Credo! Não, mulher. Nossa Senhora é Imaculada.
MULHER - Então o que faz aqui?
CÁ SEI - É que o Padre organizou o retiro por inspiração de Nossa Senhora.
MULHER - E o Frade? Qual é o papel do Frade?
CÁ SEI - O Frade é o supervisor da cozinha. É ele quem escolhe as carnes, os peixes e os vinhos.
MULHER - Então o retiro vai meter comezaina?
CÁ SEI - Eu não me atreveria a dizer isso. Mas lá que têm de comer, isso têm.
MULHER - E a Freira, que faz aqui a Freira?
CÁ SEI - A Freira tem à a sua responsabilidade os doces conventuais.
MULHER - Há assim tantos que precisem de alguém que se encarregue deles?
CÁ SEI - Nunca os contei, mas posso-te indicar alguns, tais como: Barrigas de Freira, Biscoitos do Cardeal, Bolo do Diabo, Cavacas de Santa Clara, Coalhada do Convento, Creme da Madre Joaquina, Delícias de Frei João, Hóstias de amêndoa….
MULHER – Mas há assim tantos doces conventuais?
CÁ SEI - Ainda a procissão vai no adro. Queres saber de mais? Olha, aqui tens: Marmelada Branca de Odivelas, Mexericos de Freiras, Orelhas de Abade, Pitos de Santa Luzia, Queijinhos do Céu, Sopapo do Convento, Suspiros de Braga, Toucinho do Céu…
MULHER - Basta homem, que já estou enjoada com tanto doce!
CÁ SEI - Está bem, mas fica a saber que ainda havia muitos mais.
MULHER - E o Galo. O que faz aqui o Galo?
CÁ SEI -  O Galo é para a canja do almoço.
Nesta altura, a mulher já farta do relambório do marido, grita:
- Tu estás é maluco da cabeça e a família não sabe!
O marido vê-se então obrigado a invocar o auxílio do céu e implora:
- Valham-te Santa Justa e Santa Rufina [1] juntas!
 
CAI O PANO

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 24 de Novembro de 2020 
 
 

[1] Santas Protectoras de todos aqueles que modelam o barro.

sábado, 13 de junho de 2020

Auto do desconfinamento de Santo António


Santo António. Mariano da Conceição (1903-1959).


Ao Alexandre Correia, grande devoto de Santo António,
profundo conhecedor da vida e obra do Santo,
porventura o maior coleccionador de temática antonina,
que com bom gosto, engenho e arte,
tem edificado uma valiosa e polifacetada colecção,
que a tornam num Museu Antonino sem igual.

Brilhou Alexandre
lá na Antiguidade.
Há outro e Grande
em Lisboa cidade.

Estas e muitas outras quadras, direi mesmo um rosário infindo de quadras, foram trauteadas pelo meu irmão gémeo em noite de Santo António. A cantilena prolongou-se até altas horas da noite.
António Pedro, assim se chama o meu irmão gémeo, é diametralmente oposto a mim próprio. Nasceu com veia poética e quando bebe uns copos é vê-lo versejar. Nada de versos alexandrinos que isso é para intelectuais, apenas e sempre o mais castiço fado vadio.
As sardinhas assadas sabiam a manjar de Deuses e o vinho tinto não destoaria no Olimpo. O consumo deste último levou o António a libertar a alma residente no seu arcaboiço de ferrabrás e a sua voz subiu aos céus como se fosse um balão de Santo António.
Estávamos na varanda para onde a família foi seroar em honra de Santo António e para glória das nossas barrigas. Não estávamos sós, tínhamos levado connosco uma imagem de Santo António em barro de Estremoz. Bem antiga por sinal, saída das mãos de mestre Mariano da Conceição, do clã dos Alfacinhas. Cá em casa somos todos antoninos e eu próprio sou António, ainda que Hernâni.
Na varanda onde erguêramos o nosso arraial de trazer por casa, havia um pequeno nicho onde acomodámos o Santo. Perdão, a imagem do Santo. Não foi tarefa fácil, já que houve um certo reboliço cá em casa. É que a imagem de Santo António de Mariano da Conceição, apesar de muito senhora do seu nariz, não é a única que temos. Coabita com as imagens homónimas de Sabina da Conceição, José Moreira, Liberdade da Conceição, Maria Luísa da Conceição, Fátima Estróia, Irmãs Flores e Ricardo Fonseca.
Numa atitude pouco católica, as várias imagens do Santo puseram-se em pé de guerra e empinaram-se umas às outras. Todas queriam marcar presença no nicho que naquela noite iria desempenhar funções antoninas. Foi o bom e o bonito. Cheguei a pensar em mergulhá-las todas no poço, de cabeça para baixo, para ver se refrescavam as ideias. Porém, tal não foi necessário. O Santo António de Mariano da Conceição puxou dos galões – o Mariano também foi tropa  - e com a voz tonitruante que era apanágio do Mariano, vociferou:
- Então vocês não vêem que são maçaricos comparados comigo? Eu tenho mais tempo de serviço que vocês, ouviram? Cresçam e apareçam!    
Foi assim que as outras imagens do Santo meteram o rabo entre as pernas e ordeiramente se dirigiram para o lugar que eu lhes tinha destinado e de onde nunca deveriam ter saído.
Nesta altura, alguns que andam a leste das andanças antoninas, interrogar-se-ão sobre o modo como conheci o Alexandre. Vou contar. Dei conta da sua notoriedade nas redes sociais e conheci-o pessoalmente no lançamento do meu livro “Bonecos de Estremoz”. Se porventura ainda não éramos amigos, ficámos a sê-lo a partir de então, por comungar-mos paixões comuns que nos levam frequentemente a falar ao telefone ou a trocarmos mensagens por email ou Facebook.
No passado dia 30 de Maio publiquei no meu blogue “Do Tempo da Outra Senhora”, um texto intitulado “Joana Oliveira, uma barrista que se afirma”, onde com o bisturi da minha análise, dissequei o trabalho da barrista. A génese deste texto remonta a um comentário que fiz a uma postagem do Alexandre no grupo “Bonecos de Estremoz” do Facebook, datada de 21 de Maio passado e que é acompanhada de duas criações da barrista, na qual teci quatro comentários acerca das mesmas.
O texto que a 30 de Maio publiquei no meu blogue, foi na mesma data objecto de divulgação através de uma postagem minha no grupo de Facebook já referido. O Alexandre produziu então o seguinte comentário:
- Hernâni, se me permite deixe-me relembrar que se comemora hoje os 788 anos da canonização de Santo António. O Santo António foi canonizado a 30 de maio de 1232, na Catedral de Espoleto, pelo Papa Gregório IX. Conta a tradição que nessa hora em Lisboa os sinos de todas as igrejas tocaram espontaneamente e uma estranha alegria se espalhou pela população que saiu à rua, atónita.
A este comentário respondi, dizendo:
- Obrigado, Alexandre. Eu sabia que era em Maio, mas não me lembrava da data, o que é imperdoável para um antonino.
O Alexandre não desarmou e replicou:
- Hernâni Matos , meu caro, não foi mero acaso escrever hoje sobre o Santo.
Correndo o risco de me tornar um escritor antonino, lá tive que responder:
- Um António lembrou a outro António, que era dia de falar sobre ele. E como são íntimos, o António de Lisboa e o Hernâni António de Estremoz, o de Lisboa (que é Santo) disse ao de Estremoz (que não o é, nem pouco mais ou menos), num tom coloquial:
- "Caro amigo: sei que és alentejano e que está uma grande calorina, pelo que tens direito à sesta. Porém, em nome da nossa amizade, és nomeado ex-aequo, como meu assessor de imprensa. Por isso, tens que dar ao dedo e falar sobre mim, que é dia disso. Confio em ti e no que disseres e para não falhares a missão, vou-te tirar o sono".
Foi assim que para gáudio do Alexandre Correia, perdi a sesta e ando com os sonos atrasados. É caso para dizer:
- "Valha-me Santo António!"
A conversa entre nós ficou por ali e o tempo foi passando. O facto de estarmos submetidos a um estado de desconfinamento, forçou-nos a honrar a Memória do Santo mais perto do céu, na varanda da nossa casa, rodeada de telhados, onde de dia pousa e chilreia a passarada. E foi o trinar da voz do António Pedro, o meu irmão gémeo, que deu origem a este escrito. Há dias que andava a pensar escrever sobre o Alexandre e cheguei a confessar aos meus botões:
- Digam-me lá por onde devo começar?
Hoje, dia 13 de Junho, não sei se devido a ressaca de ontem à noite, julguei ouvir Santo António dizer-me:
- Hernâni António, não penses mais nisso, senão ainda gastas os botões. Tu és uma picareta escrevente e decerto saberás o que hás-de escrever e como escrever.
Como não via alternativa possível, acreditei naquilo que julgo que o Santo me terá dito. Meti mãos à obra e o resultado está à vista. Já estou a ver o Alexandre a dizer:
- Hernâni António, foi o Santo que inspirou este escrito.
E eu responder-lhe-ei:
- Se calhar o Santo viu que eu estava em risco de rebentar com os botões da camisa, do casaco e da braguilha, o que seria impróprio para um antonino como eu.
E acrescentarei:
- É certo que o Santo tem atado um cordão à cintura e é avesso a botões. Mas francamente, picareta escrevente, eu?
Hernâni Matos
Publicado inicialmente a 13 de Junho de 2020

domingo, 17 de maio de 2020

COVID - 19




Textos publicados no contexto da pandemia de COVID-19


Coronavírus COVID-19 (Blogue: 15 de Março de 2020)
Aos devotos de São Roque (Blogue: 19 de Março de 2020)
Bonecos de Estremoz e pandemia: São Roque (Blogue: 13 de Maio de 2020)
São Roque em Portugal (Blogue: 16 de Maio de 2020)
Adagiário de São Roque (Blogue: 19 de Maio de 2020)
Santo António e COVID-19 (Blogue: 26 de Maio de 2020)
Bonecos de Estremoz e Pandemia: Peralta e Sécia (Blogue: 28 de Maio de 2020)
Bonecos de Estremoz e pandemia: Ricardo Jorge (Blogue: 11 de Junho de 2020)
Auto do desconfinamento de Santo António (Blogue: 13 de Junho de 2020) 
-  Bonecos de Estremoz e pandemia (Blogue: 30 de Janeiro de 2021)


Hernâni Matos


quarta-feira, 15 de abril de 2020

Bonecos de Estremoz: a Literatura de Tradição Oral


Assobios compostos: Sargento a cavalo, Amazona e Peralta a cavalo. Irmãs Flores.

O conjunto dos Bonecos da Tradição incorpora entre outros apitos, três figuras a cavalo: Amazona, Peralta a cavalo e Sargento a cavalo. Estas imagens têm base rectangular e o apito está localizado na cauda do cavalo. Um rolo de barro foi aí colado com barbotina e depois furado com um arame grosso da base exterior do rolo para o interior, até cerca de metade do comprimento. Na parte superior do rolo foi depois efectuado outro furo, até encontrar o primeiro. Esta particularidade da manufactura dos apitos induziu a que, no domínio dos ditos e apodos colectivos, aplicados aos estremocenses, se dissesse “Têm o apito no cú” [David de Morais (1)]. Daí que, quando alguém disparava um traque, acompanhado ou não de pestilenta semeadura de fedores fecais, se dissesse: “És como os de Estremoz: tens o apito no cú” (1). Outro dito e apodo colectivo aplicado aos estremocenses era o de “Bonecos” [Soeiro de Brito (5)], numa clara alusão à produção de figuras em barro de Estremoz. De acordo com este autor, quando faltava qualquer coisa, costumava dizer-se: “Então o que quer que lhe faça? Quer que o mande vir de Estremoz?” Por outro lado (2) “Há curiosidades dispersas nos dizeres da região, a respeito de perfeições físicas ou morais que se exigiam a uma pessoa: - olha “se queres mais perfeito, manda-o fazer de barro de Estremoz”, ou esta outra: - “Queres noiva como desejas, só no Outeiro de Estremoz. Pintam-se e são bôas de génio”. Também Portugal Dias (4) refere “…a fama proverbial dos Bonecos de Estremoz exaltada em ditos familiares quasi sempre alusão ás perfeições moraes de qualquer: - “Só feito de encomenda em Estremoz” – “Se queres melhor manda-o vir de Estremoz!”… - e ainda na intenção satírica da quadra: 

“Vergonha da minha cara
Se contigo tenho amores!
- Se quizesse amar bonecos…
Mandava-os vir de Estremores.”

Até na ironia da cantiga se contem a ideia de superioridade do boneco de barro que ao menos não tem falhas moraes. - Só feitos de encomenda, concerteza!” A nível de cancioneiro popular é conhecida a moda alentejana “Se eu quisesse amar bonecos”, recolhida em Reguengos de Monsaraz por Pombinho Júnior (3):

“Se eu quisesse amar bonecos,
Mandav’òs vir de ‘Stremôris,
Vergonha da minha cara
Se eu contigo tinha amôris.

Se eu contigo tinha amôris,
Se eu era o tê namorado,
Mandav’òs vir de ‘Stremôris,
Mandav’òs vir do Chiado!”

Os exemplos apontados mostram bem como os Bonecos de Estremoz estão perpetuados na literatura oral, um filão com potencial que urge explorar, para bem da Cultura Popular.

BIBLIOGRAFIA
(1) - DAVID DE MORAIS, J. A. Ditos e Apodos Colectivos. Colibri. Lisboa, 2006. (pág. 55)
(2) - Indústrias em Estremoz – mármores e barros in Brados do Alentejo nº 210, 3/2/1935. Estremoz, 1935 (pág. 17).
(3) - POMBINHO JÚNIOR, J.A. Cantigas Populares Alentejanas. Maranus, 1936.
(4) - PORTUGAL DIAS, Maria. A Vida Eterna das Cousas, Tradição e Arte I in Brados do Alentejo nº 8, 22/03/1931. Estremoz, 1931 (pág. 5).
(5) - SOEIRO DE BRITO, J.M. Ditados tópicos alentejanos. Tipografia Progresso. Elvas, 1938 (pág. 17).
Publicado inicialmente a 15 de Abril de 2020

quinta-feira, 19 de março de 2020

Aos devotos de São Roque


Gravura de São Roque mandada imprimir pela Irmandade. "S. Roque. Advogado
contra a peste q'se venera na sua Igr.ª e Caza da Miz.ª desta Corte. Anno 1800".
Água-forte, 1800. IMSRL.

Estou numa aflição. Não pela pandemia, mas pela sequela açambarcadora que lhe segue as pegadas.
Na terra onde vivo, o papel higiénico e o álcool sanitário desapareceram sem deixar rasto.
Resisto na minha trincheira, municiado apenas com quatro rolos de papel higiénico e um frasco com algumas pingas de álcool. Aqui reside a minha aflição. É que utilizo diariamente o álcool sanitário como remate do barbear matinal, bem como anti-séptico epidérmico em caso de corte ou picadela de insecto.
Decerto haverá alguém com excesso de álcool a rezar a São Roque para que este lhe conceda a graça de lhe arranjar papel higiénico que lhe permita assear-se após as obrigações fecais, ainda que tenha que abrir mão de parte do álcool que açambarcou.
São Roque decerto que ouvirá as suas preces, pelo que poderá informar que eu estou disponível para trocar um frasco de álcool sanitário por quatro rolos de papel higiénico. Assim poderei continuar a barbear-me diariamente sem correr o risco de ser confundido com um taliban. Poderei também continuar a assear-me após os alívios fecais, substituindo o papel higiénico por folhas de um jornal cujo nome não digo, já que é sobejamente conhecido.

Estremoz, 17 de Março de 2020


#coronavírus#covid-19

domingo, 15 de março de 2020

Coronavírus COVID-19



O surto da doença causada pelo coronavírus surgiu em 31 de Dezembro de 2019 na cidade de Wuhan na China, foi declarado pela OMS como Emergência de Saúde Pública em 30 de Janeiro de 2020 e como pandemia em 11 de Março de 2020.
Os maiores cartoonistas mundiais, cada um deles com o seu tipo próprio de sentido de humor e especial modo de o tratar graficamente, debruçou-se sobre os múltiplos aspectos suscitados pela pandemia. Os seus cartoons foram publicados na imprensa mundial e encontram-se disseminados pela Internet. Aí recolhi e seleccionei 40 desses cartoons, os quais revelam a preocupação dos seus autores com a transmissão do vírus, os comportamento pessoais a adoptar no seu combate, os oportunismos surgidos na sequência da pandemia e uma forte crítica à China e a Trump.
Os cartoons escolhidos foram em número de quarenta, número cuja escolha não foi acidental, já que é o número que corresponde à quantidade designada correntemente por “quarentena”, palavra que designa igualmente o período de isolamento a que devem ser submetidos, pessoas, animais ou mercadorias provenientes de um país onde grassa uma epidemia.