sábado, 18 de março de 2023

Muros de pedra seca

 

Algures na freguesia de Beirã, concelho de Marvão. Fotografia de Manuela Mendes.

À Manuel Mendes, a quem agradeço
a gentileza de me ter autorizado a utilizar
esta excelente imagem por si captada,
algures no norte alentejano
e que esteve na origem do presente texto.

Que vejo eu?

Uma estrada que já conheceu melhores dias. Que vai dar não sei para onde. Talvez para o cú de Judas!

Árvores que se tocam e se beijam nas copas.

Valetas que já o foram, atapetadas por ervas que ali, ciclicamente se agigantam e depois perecem com o ciclo inescapável das estações.

Nuvens que não chegam para toldar um céu que se quer azul e se associa simbolicamente à serenidade, à harmonia e à espiritualidade. Céu onde nos ensinaram estar Deus, Todos-os-Santos e os Anjos.

Muros de pedra seca, votados ao abandono e que ladeiam a estrada como se fossem condenados. Muros que se tivessem mãos, as ergueriam para o céu e pensando nos edis, clamariam:

- PERDOAI-LHES PAI, QUE ELES NÃO SABEM O QUE FAZEM!

quarta-feira, 15 de março de 2023

Casa do Largo do Outeiro n.ºs 24 e 25, em Estremoz, classificada como de interesse municipal


Fachada da casa com os números 24 e 25 do Largo do Outeiro, em Estremoz, 
patenteando esgrafito na fachada.

Extrapolação do esgrafito. Interpretação do professor Hernâni Matos
e grafismo do  designer Miguel Belfo.

Fotografia e design gráfico
de Miguel Belfo

Na reunião ordinária da Câmara Municipal de Estremoz do passado dia 8 de Março de 2023 foi aprovada por unanimidade uma proposta de “Classificação como imóvel de interesse municipal do imóvel sito no Largo do Outeiro nºs 24 e 25, em Estremoz – Fachada com Esgrafito”, elaborada por Rita Laranjo, arqueóloga do Município. A proposta foi elaborada na sequência da descoberta dos esgrafitos por pintores a trabalhar no edifício, que a comunicaram ao co-proprietário senhor Nuno Ramalho, que além de mandar interromper a pintura, me contactou, visando a interpretação dos esgrafitos. A interpretação foi por mim feita e divulgada no jornal E, sob a forma de dois textos:
No trabalho de interpretação e divulgação dos esgrafitos, foi importante o trabalho do designer gráfico Miguel Belfo, o qual tirou no local, fotografias de elevada qualidade e resolução e que posteriormente, seguindo indicações minhas, extrapolou a parte residual do esgrafito, de modo a reconstitui-lo naquele que, porventura, terá sido o seu aspecto primitivo.
Porque creio ter sido importante para a classificação agora aprovada, o trabalho por nós realizado e o acolhimento dado ao mesmo pelo jornal E, reproduzo aqui, na íntegra, o segundo daqueles textos.


Da pintura à arqueologia
No princípio do mês de Outubro, o meu amigo Nuno Ramalho mandou pintar a fachada da casa dos seus pais, localizada nos números 24 e 25 do Largo do Outeiro, em Estremoz. Os pintores começaram por limpar a parede com jacto de água. Qual não foi o espanto, quanto aquele jacto revela a existência daquilo que configurava ser uma pintura anterior à existência da janela do 1º andar esquerdo e que terá sido sacrificada para rasgar aquela janela. Significa isto que primitivamente a casa só teria a janela do 1º andar direito, a qual seria mais pequena que actualmente, uma vez que as ombreiras foram acrescentadas na parte superior, para a janela ficar com a mesma altura da janela que então foi aberta no lado esquerdo da fachada.
Qualquer das janelas ostenta sobre as ombreiras, padieiras em alvenaria, características do séc. XVIII, ornamentadas com florões em estuque.
Comparando a tipologia da fachada com a das casas limítrofes, constata-se que falta ali uma chaminé, a qual terá sido sacrificada em benefício da abertura de uma janela, tendo a chaminé sido edificada noutra zona da casa. Trata-se de uma conclusão importante na medida em que a decoração da fachada posta agora a descoberto, era uma decoração da chaminé abatida.

O esmiuçar da “pintura”
A análise minuciosa da decoração conseguida com fotografias de pormenor de elevada resolução, revelou que a técnica usada na decoração da fachada foi uma técnica mista, a qual combinou o esgrafito com a pintura do mesmo com almagre, o qual também foi utilizado na pintura de zonas delimitadas por esgrafito. A maioria das zonas pintadas perdeu a coloração conferida pelo almagre e ostenta apenas a coloração devida à cor da argamassa usada no revestimento da chaminé. Apenas dois símbolos conhecidos por “9 pontos rodeados” que se encontram na parte inferior da decoração, exibem a cor do almagre.
O facto de a decoração ter sido efectuada numa chaminé, permite concluir estar-se em presença de uma decoração apotropaica, efectuada com símbolos apotropaicos, isto é, símbolos em relação aos quais existia a crença de possuírem poder para afastar espíritos perversos ou danosos, tais como as bruxas ou o mau olhado. É que existia a crença de que embora as portas e as janelas estivessem bem fechadas, os espíritos malignos poderiam entrar pela chaminé.
O facto de a parte inferior da decoração ser simétrica em relação ao eixo central e vertical, leva a admitir que a composição da decoração seria toda ela simétrica em relação a esse mesmo eixo. A grande incógnita parece ser a parte central da decoração. Todavia são visíveis 2 sectores semicirculares a castanho avermelhado e um outro incompleto, situado num plano superior aos outros dois. Este conjunto parece procurar representar um amontado de pedras, o qual poderá corresponder a uma representação do Calvário, ou seja, da colina onde Jesus foi crucificado. A parte desaparecida da representação incluiria assim na sua parte central, uma cruz latina disposta segundo a vertical. A cruz latina é o símbolo principal do cristianismo. Para os cristãos representa não só a crucificação, como evoca a ressurreição e a esperança de vida eterna.
Incluindo a parte desaparecida da decoração apotropaica, o conjunto incluiria 4 símbolos conhecidos por “nove pontos rodeados”, um no centro duma roda e oito distribuídos à volta da mesma. Cada símbolo “9 pontos rodeados” está inscrito noutra roda, a qual reforça o poder do símbolo. A roda é um símbolo de libertação do lugar e do estado espiritual que lhe está associado.
Vejamos qual o simbolismo dos “9 pontos rodeados”. Desses 9 pontos, 1 está no centro da roda central e os outros 8 distribuem-se regularmente ao longo dessa roda. Numa perspectiva cristã, o ponto central corresponde a 1 e representa Deus, o Único, o Princípio de tudo. Os outros 8 pontos correspondem ao oitavo dia, que sucede aos 6 da criação e ao sabat (dia sagrado e de descanso no judaísmo) e é o símbolo da ressurreição, da transfiguração, anúncio da vida eterna. Sintetizando: os “9 pontos rodeados” simbolizam a criação do mundo por Deus, tal como é referida no Genesis e como tal a crença no poder de Deus sobre todas as coisas. A existência de 4 conjuntos de “9 pontos rodeados”, dispostos na decoração apotropaica em quadrangulação em simetria, resulta de o número quatro se comportar na Bíblia Sagrada como aquele que apresenta a criação de Deus e a totalidade das coisas.
A decoração apotropaica incluiria ainda, aquilo que me parecem ser dois vasos com flores, dispostos de cada um dos lados da cruz latina. Como o simbolismo da decoração apotropaica agora descoberta é de natureza cristã, sou levado a admitir que o vaso com flores possa ser um vaso com açucenas brancas. O vaso é símbolo do princípio feminino e as açucenas simbolizam a pureza, a castidade, a feminilidade e a virgindade da Virgem Maria. Resumindo: o vaso com açucenas é uma representação simbólica da Virgem Maria e um atributo presente em representações da anunciação. A existência de dois vasos com açucenas, um de cada lado da cruz latina, é justificado porque a Virgem Maria como Mãe de Jesus, tem associado a ela o princípio feminino, ao qual era na antiguidade atribuído o número dois. Por outro lado, os dois corações em cada vaso simbolizam a devoção ao Sagrado Coração de Jesus e ao Sagrado Coração de Maria, inseparáveis um do outro. A primeira destas devoções é dedicada a Jesus humano, misericordioso e sempre pronto a perdoar. A segunda destas devoções, atende ao sofrimento da Virgem Maria aos pés da cruz de Jesus e ao facto de ela guardar todas as palavras de Jesus no seu Coração.
Na decoração apotropaica objecto do presente estudo, aparecem representados simbolicamente: DEUS (“9 pontos rodeados”), JESUS (Calvário com cruz latina) e a VIRGEM MARIA (Vaso com açucenas). Significa isto que no seu conjunto, a decoração apotropaica visava invocar a protecção do Poder Divino de Deus para afastar espíritos perversos ou danosos e proteger aquela casa de todos os males. De salientar que para os cristãos, Jesus e Deus é um só, além que que é ilimitado o poder de intercessão da Virgem Maria junto de Jesus.
A decoração apotropaica está datada com um número que me parece ser 1668, número inscrito numa figura delimitada por quatro chavetas dispostas entre 4 pontos, como se formassem um losango. A figura aqui referida está ainda delimitada por dois óvulos a cheio, dispostos segundo a vertical, aos quais se juntam dois círculos a cheio, inscritos em duas circunferências dispostas segundo a horizontal. Tudo aponta para que esta seja a mais antiga decoração apotropaica do Alentejo.

Extrapolação da decoração apotropaica residual
A decoração apotropaica agora posta a descoberto é uma jóia preciosa do nosso património cultural imaterial local do séc. XVII. Na verdade, ela testemunha a existência naquela época de uma crença popular no poder protector dos símbolos apotropaicos, que no seu conjunto atestam a fé no Poder Divino de Deus.
A importância da descoberta e a interpretação da mesma por mim efectuada, exigiam que a mesma fosse divulgada junto do público em geral. Para tal, havia que criar uma imagem gráfica que desse conta de como seria a decoração apotropaica inicial, antes de ter sido mutilada. Tal foi feito com recurso a uma extrapolação da decoração apotropaica residual, tendo em conta a minha interpretação. Essa extrapolação foi executada magistralmente pelo designer gráfico Miguel Belfo, meu companheiro de estrada nesta loucura mansa de “dar à luz” o jornal E, de 15 em 15 dias. Nessa extrapolação tiveram-se em conta os seguintes procedimentos:
1 - A parte residual da representação apotropaica primitiva está representada a castanho e a parte extrapolada está representada a azul;
2 - A partir das porções existentes da moldura rectangular na qual se insere a decoração, foram extrapoladas as partes em falta;
3 - A parte superior do Calvário foi extrapolada a partir da parte inferior, tendo em conta as representações habituais do mesmo;
4 - A cruz latina foi extrapolada a partir da visualização do símbolo do Calvário;
5 - Teve-se em conta que o Calvário com cruz latina definia um eixo de simetria na composição decorativa;
6 - Os “9 pontos rodeados” do canto superior esquerdo foram extrapolados a partir dos correspondentes do canto superior direito e do canto inferior esquerdo;
7 - O contorno lateral direito do vaso do lado esquerdo foi extrapolado a partir do contorno lateral esquerdo;
8 - A decoração (coração) do lado direito do vaso do lado direito, foi extrapolada a partir da decoração do lado esquerdo do mesmo vaso;
9 - No vaso do lado direito, a parte omissa das flores no lado esquerdo do vaso foi extrapolada a partir das flores no lado direito do mesmo vaso;
10 - O vaso de flores à esquerda da cruz latina foi extrapolado a partir do vaso situado à direita da mesma cruz;
11 - A data de 1668 foi extrapolada a partir da observação da data 16?8 patente na decoração, a partir de fotografia de elevada resolução obtida por Miguel Belfo;
12 - Foram eliminadas da imagem final extrapolada, todos os pormenores existentes e visíveis na decoração primitiva residual, tais como defeitos no reboco do fundo que se soltaram, bem como porções mais brancas do fundo, devidas a intervenções posteriores que por ali ocorreram. Ali chegaram a estar cravados um suporte em ferro de fios condutores da EDP, bem como um candeeiro de iluminação pública cravado na parede. Estes, após remoção, deram origem a rebocos que acabaram por ficar pintados numa coloração branca superficial mais nítida.
13 - Onde houve mais dificuldade na extrapolação foi nas flores do vaso direito, já que para além do traçado visível, há reboco em falta distribuído desorganizadamente. Optou-se então por fazer uma extrapolação conjunta do traçado e do reboco em falta.

Agradecimentos
A interpretação e divulgação do significado profundo da decoração apotropaica da casa do Largo do Outeiro, só foi possível graças a uma sequência de boas vontades:
1º) A descoberta da decoração pelos pintores que a comunicaram ao senhor Nuno Ramalho;
2º) A decisão deste último no sentido da pintura da fachada não cobrir a decoração então descoberta, seguida da decisão de me contactar, visando interpretar tudo aquilo;
3º) A disponibilidade mostrada pelo designer gráfico Miguel Belfo que tirou no local, fotografias de elevada qualidade e resolução e que posteriormente, seguindo indicações minhas, extrapolou a parte residual da decoração apotropaica primitiva, de modo a reconstitui-la com o aspecto que ela teria primitivamente;
4º) A benevolência revelada pela directora do jornal E, Ivone Carapeto, face a texto meus, por vezes mais compridos que a légua da Póvoa.

Tem a palavra o Município de Estremoz
A decoração apotropaica agora descoberta, é seguramente a mais antiga do Alentejo, pelo que pode constituir um pólo de atracção turística, desde que devidamente divulgada. É um papel que cabe ao Turismo Municipal.
Ficamos à espera.

 Texto publicado no jornal E nº 299, de 10 de Novembro de 2022

terça-feira, 14 de março de 2023

MERCADO TRADICIONAL DE ESTREMOZ / Bom filho à casa torna




Fotografias de
 Maria Miguéns



Primeira etapa
No passado dia 11 de Março, o tradicional Mercado de Sábado começou a regressar ao local anterior, uma vez que foram dadas por concluídas as obras de requalificação do espaço público do Rossio, iniciadas em Março do ano passado. A execução das obras tinha exigido a deslocalização das diversas componentes do Mercado de Sábado, que se espraiaram e diluíram ao longo dos 4 lados do quadrilátero que é o Rossio.
No passado sábado, os vendedores de produtos hortícolas, frutas, plantas, doçaria, queijos, enchidos e artesanato, voltaram a localizar-se na zona primitiva, ainda que não necessariamente no mesmo local, uma vez que houve necessidade de fazer ajustamentos que se impunham e justificavam.
A reinstalação dos vendedores teve lugar na sequência de um inquérito realizado no mês de Janeiro e de uma reunião com os mesmos no passado dia 6 de Março. Cada vendedor ocupa agora um lugar numerado, que consta de uma planta elaborada e da qual foi dado conhecimento prévio.

Segunda etapa
O regresso dos vendedores ao local anterior teve de se processar duma forma faseada, visando assegurar a logística necessária, bem como o apoio da equipa que acompanha o processo. Após a mudança ocorrida no passado sábado, terá lugar a mudança do Mercado das Velharias, a realizar no sábado, dia 25 de Março.

A cereja em cima do bolo
A reinstalação das várias componentes do Mercado de Sábado aponta para um retoque final perfeito, que é a aprovação em sede própria do Projecto de Regulamento Municipal de Mercados, Feiras e Venda Ambulante e Actividade de Restauração ou de Bebidas não Sedentária do Município de Estremoz, cuja discussão pública está a decorrer.
Há muito que se fazia sentir a necessidade de um novo Regulamento, uma vez que o anterior estava desactualizado. Vai, pois, haver um novo Regulamento que define e regula a organização, funcionamento, disciplina, limpeza e segurança interior do Mercado Tradicional de Sábado. De acordo com art.º 50 do Regulamento (Competência) no seu ponto 1.: A fiscalização do funcionamento das feiras e dos mercados municipais, bem como da venda ambulante e da actividade de restauração ou de bebidas não sedentária, incumbe aos serviços de fiscalização da Câmara Municipal e, nos termos definidos pela lei, às autoridades policiais, fiscais e sanitárias.
Vivemos num Estado de direito e em democracia. Significa isto que o Regulamento é para ser cumprido por todos, o que deve ser assegurado permanentemente e de uma forma activa pelas entidades e autoridades acima referidas. Faço votos para que cada uma cumpra a sua missão e o Regulamento não venha a ser letra morta, a que toda a gente fecha os olhos.

A importância do regresso às origens
Como cidadão responsável, é meu entendimento que o Município fez muito bem ao fazer regressar o Mercado Tradicional ao espaço primitivo. É esse o espaço inicial e tradicional, consignado pelo tempo e pela frequência de sucessivas gerações. É o espaço que herdámos dos nossos antepassados e que devemos valorizar, preservar e legar ás novas gerações. É fácil de perceber porquê.
A importância e a força do Mercado Tradicional resultam em primeiro lugar da sua situação privilegiada no centro da cidade, onde é fácil o acesso de mercadorias e o fluxo de pessoas. Resultam em segundo lugar da elevada concentração humana no espaço em que funciona. Tudo isso conjugado, contribui para que o espaço primitivo do Mercado Tradicional, seja um espaço nobre, um espaço de excelência, de proximidade e de partilha que urge preservar.
Dispersar o Mercado Tradicional ao longo do Rossio, tal como aconteceu transitoriamente, seria descaracterizá-lo pela sua fragmentação, quebrando os elos simbióticos entretecidos entre as suas diversas componentes. Uma tal segmentação enfraqueceria as dinâmicas inter partes, o que equivaleria a condená-lo á morte.
Bem-haja, pois, o Município de Estremoz por manter o Mercado Tradicional no espaço que há muito é seu e o tornaram num ex-líbris da nossa cidade.

Publicado no jornal E, n.º 308, de 16 de Março de 2023







segunda-feira, 27 de fevereiro de 2023

Esquilo em madeira, possível artefacto de arte pastoril

 


Brinquedos populares
Desde os anos 80 do século XX que me interessei por brinquedos populares em madeira, folha de flandres e barro, os quais colecciono. Todos eles exercem em mim um fascínio que tem a ver com intensas e diversificadas memórias de infância, as quais ocupam um lugar privilegiado nas gavetas e baús do registo das memórias do tempo em que fui menino.
Recentemente comprei a um vendedor do Mercado das Velharias em Estremoz, um brinquedo popular cuja descrição passo a fazer de imediato.

Esquilo em madeira
O brinquedo popular que é objecto do presente estudo é uma escultura em madeira, representando um esquilo assente nas patas de trás e empunhando nas patas da frente um martelo, com o qual percute aquilo que configura ser uma noz assente num cepo.
Tanto as patas superiores como as inferiores constituem um bloco único, em cujas extremidades, sulcos definem os dedos. As orelhas formam igualmente um bloco único. No rosto, os olhos, as narinas e a boca encontram-se definidos por incisões efectuadas nas posições correspondentes. A cauda arrebitada apresenta sulcos, configurando pêlos, o mesmo se verificando na cabeça.
A escultura assenta numa base paralelepipédica de 12,2x3,4x2,4 cm, esquinada nas arestas e com duas “beliscadelas” junto às extremidades das arestas superiores e direccionadas segundo a maior dimensão do paralelepípedo. Das “beliscadelas” partem incisões paralelas que se dirigem em direcção às arestas inferiores.
A base tem um orifício situado no centro do topo da face de menores dimensões, situado do mesmo lado da cauda do esquilo. O orifício conduz a uma galeria cilíndrica, ao longo da qual se pode deslocar um cilindro maciço, segundo a direcção da maior dimensão da base.
Quando se comprime o cilindro, este actua numa articulação existente nos pés do esquilo, fazendo-o oscilar para trás. Quando cessa a compressão, o esquilo oscila para a frente, arrastando com ele o martelo, o qual percute a noz.

O esquilo em Portugal
Por falta de habitat, os esquilos foram durante centenas de anos, dados como extintos em Portugal. Todavia, nos anos 80 de séc. XX, começaram a atravessar a fronteira pelo Minho, tendo até hoje sido registada a sua presença nas áreas protegidas do Parque Nacional da Peneda-Gerês, do Parque Natural de Montesinho, do Parque Natural da Serra de São Mamede e do Parque Natural do Vale do Guadiana. A expansão dos esquilos pelo território nacional não será estranha à transformação da agricultura portuguesa em monoculturas florestais.

Arte pastoril?
A natureza artesanal da escultura em madeira que foi objecto do presente estudo, leva-me a admitir a possibilidade de estar em presença de um brinquedo popular, que seja um artefacto de arte pastoril alentejana. Será? Isso implicaria que um pastor alentejano tivesse avistado e observado um ou mais esquilos e tivesse registado mentalmente os contornos e os pormenores dos seus corpos. Tal não é impossível, já que o Parque Natural da Serra de São Mamede, por exemplo, é uma zona onde foram avistados esquilos e na qual existe pastorícia. De resto, a escultura em madeira pode ter sido manufacturada à maneira da arte pastoril, por um artesão que nunca tenha sido pastor.

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Chávena e pires enfeitados



Chávema e pires enfeitados (2023). Modelação de Carlos Alves e pintura de
Cristina Malaquias.

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A chávena e o pires enfeitados [i] aqui apresentados foram modelados pelo barrista Carlos Alves e decorados por Cristina Malaquias, mediante sugestão minha. Trata-se de uma recriação de um conjunto homólogo de finais do séc. XIX, pertencente à colecção do pintor Armando Alves (1935- ), que foi aluno de Mestre Mariano da Conceição (1903-1959) e que adquiriu em 2011 o grosso da colecção Pinto Tavares, já que o sobrante, constituído por brinquedos de louça de Estremoz, uns pintados e outros não, foi por mim adquirido em 2012.
O Tenente-coronel Pinto Tavares cedeu a título de empréstimo de dias, exemplares da sua colecção para servirem de modelo na revitalização da manufactura de bonecos de Estremoz empreendida com êxito em 1935, pelo escultor José Maria de Sá Lemos (1892-1971), director da Escola Industrial António Augusto Gonçalves e mais tarde vereador do Pelouro da Cultura da Câmara Municipal de Estremoz.
José Maria de Sá Lemos atribuíra a si próprio a missão de recuperação da antiga tradição de manufactura dos Bonecos de Estremoz, considerada extinta com a morte da barrista Gertrudes Rosa Marques (1840-1921).
Ana das Peles (1869-1945), velha bonequeira, foi o instrumento primordial dessa recuperação e Mestre Mariano da Conceição (O Alfacinha) foi o instrumento de continuidade dessa mesma recuperação.
A revitalização empreendida por Sá Lemos incidiu também na olaria enfeitada, para a qual foi determinante a valiosa e indispensável participação de Mestre Mariano da Conceição, que produziu esbeltos e coloridos exemplares que integram o acervo do Museu Rural de Estremoz, o que inclui pucarinhos, cantarinhas, candelabros, castiçais e palmatórias.
A chávena e o pires enfeitados, bem como os brinquedos de louça de Estremoz e outros que a seu tempo divulgarei, não foram objecto da recuperação impulsionada por Sá Lemos naquela época.
Daí a importância de que se reveste a recriação de Carlos Alves e Cristina Malaquias, que foi objecto do presente escrito. É um pontapé de saída no retomar da sua produção, para que não fique cativa das malhas do tempo e por direito próprio se apresente à luz do dia para usufruto e deleite do nosso espírito.

BIBLIOGRAFIA

Hernâni Matos



[i] A olaria enfeitada engloba exemplares oláricos de barro vermelho de Estremoz, enfeitados com motivos geralmente fitomórficos e geométricos, apostos por pintura ou por colagem com barbotina de elementos modelados com barro.

domingo, 19 de fevereiro de 2023

Oh que lindo arraial!

 

inspirados nos Bonecos de Estremoz,

A Boniqueira - Joana Santos Ceramista publicou ontem na sua página do Facebook, um texto associado à imagem acima, o qual reproduzo aqui na íntegra:

“Não foram a tempo do dia dos namorados mas ficaram prontinhas para o carnaval, o que, com a explosão de cores que delas emana, até é capaz de ser mais adequado.
É que bem vistas a coisas, o Amor é para ser celebrado todos os dias!
Agora, é vê-las a desfilar, pimponas e coloridas, na @gente.da.minha.terra , em Évora!
Feliz Entrudo!”

Naturalmente que fiquei fascinado pela suas bonecas, o que longe de constituir um caso isolado, se tornou uma prática corrente: a minha admiração pelo binomio “criações – escritos que lhe estão associados”.
Não é, pois, de admirar que eu, que não sou dado a morrer de pasmo a olhar para aquilo que gosto, tenha resolvido dar publico conhecimento de que gosto e porque gosto. É esse texto que partilho aqui com o leitor:

“Oh que lindo arraial!
Que bebedeira de cores, de luz e de formas!
Figuras saídas das mãos da Joana, que com alma e com calma, lhes deu alma, como elas precisavam e nos revelam na plenitude da sua individualidade.
Em termos plásticos e estéticos são ao mesmo tempo manifestos primaveris e hinos à alegria. São um abrir Abril das portas que se estão abrindo. É o povo, neste caso as mulheres, em marcha. É o Tempo Novo!”

Hernâni Matos

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

“Perpétua Cegueira do Amor” de Maria Antónia Viana

 



É sobejamente conhecida a minha paixão pelos Bonecos de Estremoz, a qual sendo dominante, não é exclusiva, já que há outros bonecos capazes de fazer tanger as tensas cordas de violino da minha alma. Foi o que se passou recentemente com a figura “Perpétua Cegueira do Amor” da barrista estremocense Maria Antónia Viana. Daí que partilhe com os leitores, tudo aquilo que a imagem me disse e sugeriu.
Trata-se de uma figura alegórica com uma modelação simples, mas harmoniosa e expressiva, cujo fruto é uma figura esbelta, servida por um cromatismo de dominante quente, baseada no vermelho e no amarelo, simbolicamente associados à paixão carnal e à alegria, respectivamente.
O vermelho povoa lábios carnudos, prontos a beijar, bem como dedos que coroam mãos carentes de afagos.
O coração, omnipresente, transvaza as mãos e conquista o resto do corpo. As asas e o chapéu transmutaram-se em corações, eles próprios trespassados por setas, que na extremidade visível, terminam por corações de menores dimensões.
Os olhos estão tapados por um chapéu de plumas azuis com olhos laranja (que sugerem penas de pavão), o qual parece evocar os chapéus de plumas das sufragistas dos princípios de novecentos, como Ana de Castro Osório, Adelaide Cabete ou Carolina Beatriz Ângelo, pioneiras da luta pela igualdade de género em Portugal. O azul transmite a ideia de espiritualidade pautada por alegria e vitalidade, sugeridas pelos olhos cor de laranja. A utilização do azul e do laranja não terão sido ocasionais, já que são cores tradicionalmente usadas na decoração de Bonecos de Estremoz, muito em particular na figura do “Amor é cego”. Também a base na qual a figura assenta, parece querer dizer que a figura, não sendo Boneco de Estremoz, se inspirou nos Bonecos de Estremoz. Para tal, a barrista fez assentar a figura numa base de cor verde bandeira, orlada a zarcão e sarapintada de branco, amarelo e zarcão.
O coração sustentado pelas mãos e que ainda não foi atingido por nenhuma seta, apresenta uma decoração floral, que sugere a decoração das mobílias alentejanas, modo encontrado de referenciar a figura ao Alentejo.
A decoração da parte superior e inferior do vestido, integra corações que são pétalas vermelhas de flores, cujos caule verdes simbolizam no seu todo, a esperança num futuro que há de vir. Os folhos dos punhos e da gola do vestido, igualmente em verde, parecem configurar zonas de escape da quentura que do corpo dimana. Funciona como autodefesa de um corpo que não quer sofrer autocombustão.
Tendo em conta a designação ”Perpétua cegueira do amor” atribuída pela barrista á sua criação, sou levado a pensar que aquela denominação visa sugerir que há que tomar precauções. Se a ideia não for essa, que me perdoe a barrista, a quem agradeço e felicito vivamente pela oportunidade e felicidade deste seu trabalho. Bem haja.

Publicado inicialmente a 14 de Fevereiro de 2012