sexta-feira, 19 de junho de 2020

Ana Catarina Grilo, uma barrista que veio para ficar


Fig. 1 - Ana Catarina Grilo (1974-   ), pintando no seu atelier.

À laia de introdução
O gosto pelos Bonecos de Estremoz está-me na massa do sangue. Daí que para além de coleccionador e investigador da História dos mesmos, seja um contador de estórias que procura modelar com palavras o que lhe vai na alma. Tal é fruto de observar e reflectir sobre criações, às quais a magia das mãos dos barristas, conferiram forma, cor, movimento e significado. E porque não vida? Vida que para mim passa também a ter mais sentido, já que os Bonecos me refrescam e revitalizam o ser.
Ana Catarina Grilo (1974-  ) (Fig. 1 e Fig. 5) é uma barrista que frequentou o Curso de Formação sobre Técnicas de Produção de Bonecos de Estremoz, que no ano transacto teve lugar em Estremoz, no Palácio dos Marqueses de Praia e Monforte.
“Senhora de pezinhos” (Fig. 2), São João Baptista menino (Fig. 3) e “Primavera de arco” (Fig. 4) são três figuras tradicionais da barrística popular estremocense, que a nova barrista recriou e a meu ver muito bem. Vou falar de cada uma delas em particular.

Fig. 2 - Senhora de pezinhos (2020). Ana Catarina Grilo.

Senhora de pézinhos
Se eu fosse repórter da moda diria:
Vestido comprido sem mangas, de aspecto sóbrio, em padrão xadrês, branco e negro. Decote generoso, ornamentado por folhos negros, tal como o cinto que apresenta atrás uma atadura em forma de laço.
A ausência de mangas e a generosidade do decote reforçam a sensualidade patente no rosto da figura. Os folhos encobrem os ombros, criando um clima de mistério associado à feminilidade que a figura transmite. O cinto sublinha a cintura fina e reforça a elegância que ressalta do modelo.
As mãos dispostas frontalmente nas pernas e abaixo da anca, conferem um aspecto descontraído e emancipado à figura. O leque em posição de descanso, diz-nos que não está calor, mas que já esteve ou pode vir a estar.
O lindo cabelo castanho, só está parcialmente coberto por um discreto chapéu negro, condizente com os folhos e o cinto do vestido. O chapéu, de aba pequena, apresenta uma chanfradura posterior que deixa o cabelo a descoberto. Está ornamentado com um laçarote azul petróleo do lado direito, o qual transmite à figura, tranquilidade, serenidade e harmonia.
Do lado esquerdo ostenta um feixe de quatro plumas matizadas de verde e amarelo. No seu conjunto, os ornamentos conferem vivacidade ao chapéu e este reforça a elegância de toda a figura.
O rosto, suave e delicado, tem forma oval, apresentando simetria entre a parte superior e inferior da face. Daí que todo o tipo de brincos lhe assente bem. Todavia, os brincos usados, de duplo pendente, aumentam a volumetria do maxilar. O serem de ouro, reforça a perfeição e a nobreza associadas à figura.
Os sapatos negros, de bico, rematam inferiormente toda a elegância do modelo.
PARABÉNS À ESTILISTA!

Fig. 3 - São João Baptista em menino (2020). Ana Catarina Grilo.
São João Baptista menino
Inspira muita ternura e revela as fortes marcas identitárias da barrista. Apesar de muito belo, é uma imagem sóbria, o que estará a meu ver em consonância com aquilo que creio ser a maneira de estar, ser e comunicar da barrista. O facto de se tratar de uma representação que prescindiu do uso da peanha, reforça ainda mais a sobriedade da modelação, retirando austeridade e distanciamento ao Santo, que fica assim mais terra a terra com o observador que o mira e remira para deleite de espírito. É uma figura tão inspiradora de ternura que lhe apetece dar um beijinho.
Parabéns Ana Catarina Grilo, por sabiamente ter sabido comunicar ternura na meninice daquele que tendo sido profeta e mártir, é simultaneamente uma figura inescapável no adagiário e no cancioneiro popular, já que entrou no coração do povo, que o comemora por altura da sua festa litúrgica, em 24 de Junho.

Fig. 4 - Primavera de arco (2020). Ana Catarina Grilo.

Primavera de arco
Dos ombros do vestido amarelo brota um arco no qual se vê pintada uma dupla hélice verde-amarela, configurando os pés verdes das papoilas entrelaçadas num arame pintado de amarelo, como se fossem caules de papoilas emaranhados numa cana arqueada.
O amarelo do vestido evoca uma seara de trigo donde brotam as papoilas que anunciam a Primavera e que são emolduradas superiormente pelo azul do céu, evocado pelo chapéu dessa cor.
As papoilas contribuem para contextualizar no Alentejo, a figura universal da Primavera. Papoilas que integram o molho de espigas que se vão colher aos campos na Quinta-Feira da Ascensão. Lá diz o cancioneiro popular alentejano:

Tudo vai colher ao campo
Quinta-feira d'Ascensão,
trigo, papoila, oliveira.
p'ra que Deus dê paz e pão.(2)

O ramo tem um valor simbólico, pois ainda perdura a crença popular de que funciona como um poderoso amuleto que traz diversos benefícios ao lar de quem o colheu e manteve pendurado durante um ano numa das paredes de casa. Nesse ramo, a papoila simboliza a vida e o amor. Amor que é tema do soneto “Mocidade” do livro “Charneca em Flor” de Florbela Espanca, onde esta confessa num terceto:

No meu sangue rubis correm dispersos:
- Chamas subindo ao alto nos meus versos,
Papoilas nos meus lábios a florir! (1)

A figura emblemática da Primavera é potenciada pela Ana Catarina Grilo, através das cores sabiamente escolhidas e que reforçam o simbolismo da alegoria.
PARABÉNS, ANA CATARINA GRILO!
Epílogo
O trabalho de Ana Catarina Grilo já não me surpreende (Ah! Ah! Ah! – grandessíssima mentira). Como barrista creio que veio para ficar, para deleite de espírito de todos nós.


BIBLIOGRAFIA
(1) - ESPANCA, Florbela. Charneca em flor. Livraria Gonçalves. Coimbra, 1931.
(2) - SANTOS, Vítor. Cancioneiro Alentejano - Poesia Popular. Livraria Portugal. Lisboa, 1959.


 
Fig. 5 - Ana Catarina Grilo (1974-   ), a modelar no seu atelier.

terça-feira, 16 de junho de 2020

Ganchos de meia e sua recuperação


Ganchos de meia. Liberdade da Conceição (1913-1990). 

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Qualquer artefacto de Arte Popular suscita uma problemática própria, que lhe é intrínseca. É o que se passa com os Bonecos de Estremoz e muito em particular com essas figurinhas de cerca de 5 cm de altura, conhecidas por “ganchos de meia”, aos quais já me referi, bem como ao respectivo modo de utilização.
Trata-se de objectos funcionais, cuja utilização visa “orientar” e facilitar a utilização de fio no decurso da execução de determinados lavores com aquele material.
Os que apresento na figura, foram modelados pela barrista Liberdade da Conceição (1913-1990). Da esquerda para a direita e de cima para baixo, são sucessivamente: Nossa Senhora, Freira de Malta, Senhora de pezinhos, Peralta e Sargento.
Como exemplares de Arte Popular é possível reconhecer neles um denominador comum: a simplicidade da sua execução. Há dois tipos de figuras: masculinas e femininas. As masculinas, distinguem-se pela pintura, mas em termo de modelação, apenas por aquilo que usam na cabeça. As femininas, em termos de ponto de partida, são modeladas como “Senhora de pezinhos”. Além da pintura, a “Freira de Malta” e a “Senhora de pezinhos”, só se distinguem por aquilo com que protegem a cabeça. Já “Nossa Senhora” distingue-se da “Freira de Malta” pela pintura e porque tem as mãos postas em atitude de oração. Em qualquer das figurinhas, botões, golas e punhos de roupa são pintados e não modelados.
A execução de ganchos de meia é um desafio com que se deparam os barristas que pretendam recuperar artefactos caídos em desuso. Creio que na modelação de qualquer destas figuras ou de outras que venham a criar, deverão resistir a várias tentações: - Não executar ganchos de meia, de maiores dimensões, pois a partir de certo tamanho, se a modelação é facilitada, as dimensões do artefacto carecem de sentido; - Não fazer exemplares com saliências pronunciadas, que retirarão a funcionalidade que deve ser atributo dos ganchos de meia, pelo que passarão a ser meros objectos decorativos.
A Arte Popular tem os seus cânones próprios. No caso dos ganchos de meia, destacam-se dois: simplicidade e funcionalidade. Modelar exemplares muito vistosos, muito rebuscados, com muitos pormenores e desprovidos de funcionalidade, será outra coisa, mas Arte Popular não é concerteza.

sábado, 13 de junho de 2020

Auto do desconfinamento de Santo António


Santo António. Mariano da Conceição (1903-1959).


Ao Alexandre Correia, grande devoto de Santo António,
profundo conhecedor da vida e obra do Santo,
porventura o maior coleccionador de temática antonina,
que com bom gosto, engenho e arte,
tem edificado uma valiosa e polifacetada colecção,
que a tornam num Museu Antonino sem igual.

Brilhou Alexandre
lá na Antiguidade.
Há outro e Grande
em Lisboa cidade.

Estas e muitas outras quadras, direi mesmo um rosário infindo de quadras, foram trauteadas pelo meu irmão gémeo em noite de Santo António. A cantilena prolongou-se até altas horas da noite.
António Pedro, assim se chama o meu irmão gémeo, é diametralmente oposto a mim próprio. Nasceu com veia poética e quando bebe uns copos é vê-lo versejar. Nada de versos alexandrinos que isso é para intelectuais, apenas e sempre o mais castiço fado vadio.
As sardinhas assadas sabiam a manjar de Deuses e o vinho tinto não destoaria no Olimpo. O consumo deste último levou o António a libertar a alma residente no seu arcaboiço de ferrabrás e a sua voz subiu aos céus como se fosse um balão de Santo António.
Estávamos na varanda para onde a família foi seroar em honra de Santo António e para glória das nossas barrigas. Não estávamos sós, tínhamos levado connosco uma imagem de Santo António em barro de Estremoz. Bem antiga por sinal, saída das mãos de mestre Mariano da Conceição, do clã dos Alfacinhas. Cá em casa somos todos antoninos e eu próprio sou António, ainda que Hernâni.
Na varanda onde erguêramos o nosso arraial de trazer por casa, havia um pequeno nicho onde acomodámos o Santo. Perdão, a imagem do Santo. Não foi tarefa fácil, já que houve um certo reboliço cá em casa. É que a imagem de Santo António de Mariano da Conceição, apesar de muito senhora do seu nariz, não é a única que temos. Coabita com as imagens homónimas de Sabina da Conceição, José Moreira, Liberdade da Conceição, Maria Luísa da Conceição, Fátima Estróia, Irmãs Flores e Ricardo Fonseca.
Numa atitude pouco católica, as várias imagens do Santo puseram-se em pé de guerra e empinaram-se umas às outras. Todas queriam marcar presença no nicho que naquela noite iria desempenhar funções antoninas. Foi o bom e o bonito. Cheguei a pensar em mergulhá-las todas no poço, de cabeça para baixo, para ver se refrescavam as ideias. Porém, tal não foi necessário. O Santo António de Mariano da Conceição puxou dos galões – o Mariano também foi tropa  - e com a voz tonitruante que era apanágio do Mariano, vociferou:
- Então vocês não vêem que são maçaricos comparados comigo? Eu tenho mais tempo de serviço que vocês, ouviram? Cresçam e apareçam!    
Foi assim que as outras imagens do Santo meteram o rabo entre as pernas e ordeiramente se dirigiram para o lugar que eu lhes tinha destinado e de onde nunca deveriam ter saído.
Nesta altura, alguns que andam a leste das andanças antoninas, interrogar-se-ão sobre o modo como conheci o Alexandre. Vou contar. Dei conta da sua notoriedade nas redes sociais e conheci-o pessoalmente no lançamento do meu livro “Bonecos de Estremoz”. Se porventura ainda não éramos amigos, ficámos a sê-lo a partir de então, por comungar-mos paixões comuns que nos levam frequentemente a falar ao telefone ou a trocarmos mensagens por email ou Facebook.
No passado dia 30 de Maio publiquei no meu blogue “Do Tempo da Outra Senhora”, um texto intitulado “Joana Oliveira, uma barrista que se afirma”, onde com o bisturi da minha análise, dissequei o trabalho da barrista. A génese deste texto remonta a um comentário que fiz a uma postagem do Alexandre no grupo “Bonecos de Estremoz” do Facebook, datada de 21 de Maio passado e que é acompanhada de duas criações da barrista, na qual teci quatro comentários acerca das mesmas.
O texto que a 30 de Maio publiquei no meu blogue, foi na mesma data objecto de divulgação através de uma postagem minha no grupo de Facebook já referido. O Alexandre produziu então o seguinte comentário:
- Hernâni, se me permite deixe-me relembrar que se comemora hoje os 788 anos da canonização de Santo António. O Santo António foi canonizado a 30 de maio de 1232, na Catedral de Espoleto, pelo Papa Gregório IX. Conta a tradição que nessa hora em Lisboa os sinos de todas as igrejas tocaram espontaneamente e uma estranha alegria se espalhou pela população que saiu à rua, atónita.
A este comentário respondi, dizendo:
- Obrigado, Alexandre. Eu sabia que era em Maio, mas não me lembrava da data, o que é imperdoável para um antonino.
O Alexandre não desarmou e replicou:
- Hernâni Matos , meu caro, não foi mero acaso escrever hoje sobre o Santo.
Correndo o risco de me tornar um escritor antonino, lá tive que responder:
- Um António lembrou a outro António, que era dia de falar sobre ele. E como são íntimos, o António de Lisboa e o Hernâni António de Estremoz, o de Lisboa (que é Santo) disse ao de Estremoz (que não o é, nem pouco mais ou menos), num tom coloquial:
- "Caro amigo: sei que és alentejano e que está uma grande calorina, pelo que tens direito à sesta. Porém, em nome da nossa amizade, és nomeado ex-aequo, como meu assessor de imprensa. Por isso, tens que dar ao dedo e falar sobre mim, que é dia disso. Confio em ti e no que disseres e para não falhares a missão, vou-te tirar o sono".
Foi assim que para gáudio do Alexandre Correia, perdi a sesta e ando com os sonos atrasados. É caso para dizer:
- "Valha-me Santo António!"
A conversa entre nós ficou por ali e o tempo foi passando. O facto de estarmos submetidos a um estado de desconfinamento, forçou-nos a honrar a Memória do Santo mais perto do céu, na varanda da nossa casa, rodeada de telhados, onde de dia pousa e chilreia a passarada. E foi o trinar da voz do António Pedro, o meu irmão gémeo, que deu origem a este escrito. Há dias que andava a pensar escrever sobre o Alexandre e cheguei a confessar aos meus botões:
- Digam-me lá por onde devo começar?
Hoje, dia 13 de Junho, não sei se devido a ressaca de ontem à noite, julguei ouvir Santo António dizer-me:
- Hernâni António, não penses mais nisso, senão ainda gastas os botões. Tu és uma picareta escrevente e decerto saberás o que hás-de escrever e como escrever.
Como não via alternativa possível, acreditei naquilo que julgo que o Santo me terá dito. Meti mãos à obra e o resultado está à vista. Já estou a ver o Alexandre a dizer:
- Hernâni António, foi o Santo que inspirou este escrito.
E eu responder-lhe-ei:
- Se calhar o Santo viu que eu estava em risco de rebentar com os botões da camisa, do casaco e da braguilha, o que seria impróprio para um antonino como eu.
E acrescentarei:
- É certo que o Santo tem atado um cordão à cintura e é avesso a botões. Mas francamente, picareta escrevente, eu?
Hernâni Matos
Publicado inicialmente a 13 de Junho de 2020

quinta-feira, 11 de junho de 2020

Bonecos de Estremoz e pandemia: Ricardo Jorge


 Fig. 3 – Ricardo Jorge no Laboratório. Ricardo Fonseca (2020).
Fotografia de Luís Mendeiros (2020).
Introdução
Como coleccionador e investigador da barrística popular estremocense, surgiu-me na mente a ideia de que poderiam e deveriam ser modelados Bonecos que perpetuassem no barro, a pandemia que atravessamos. Por sugestão e com indicações minhas ocorreu em primeiro lugar, a criação pelo barrista Ricardo Fonseca da figura de “SÃO ROQUE”, invocado pela comunidade católica como Santo Protector contra as epidemias. Seguiu-se a criação pelas Irmãs Flores das figuras “PERALTA NA PANDEMIA” e “SÉCIA NA PANDEMIA”, retratando em contexto social a resposta possível à pandemia, através do uso de máscaras comunitárias. Finalmente, a criação por Ricardo Fonseca da figura de “RICARDO JORGE”, figura maior da Medicina Social em Portugal, que em 1899 concebeu medidas profiláticas que ainda hoje são usadas no combate às pandemias (Vide Biografia de Ricardo Jorge).
A materialização duma ideia
Contactei o barrista Ricardo Fonseca a quem dei conta da minha intenção de ver modelada a figura de Ricardo Jorge, visando assinalar no barro a figura emblemática máxima do combate às epidemias em Portugal. Lancei-lhe então o repto de ser ele a materializar no barro a ideia que me surgira na mente. Ele foi receptivo e aceitou entusiasticamente a missão que eu lhe atribuíra.
Fontes documentais
Como fontes de inspiração documental, forneci ao barrista duas imagens de Ricardo Jorge em 1899, com a idade de 41 anos. Uma (Fig. 1) da autoria do fotógrafo Guedes de Oliveira, que retrata o médico sentado à sua mesa de trabalho, efectuando uma observação microscópica. Outra (Fig. 2) da autoria do fotógrafo Aurélio Paz dos Reis, que mostra o cientista em pé, frente a uma bancada de laboratório, repleta de utensílios e montagens laboratoriais usadas em Química.
Atributos
Sugeri ao barrista que modelasse a figura de Ricardo Jorge, envergando um traje como o da Fig. 2, mas sentado à mesa de trabalho como na Fig.1. De resto, sublinhei a importância de quatro atributos em Ricardo Jorge. Dois deles de natureza física: uma barba abundante e a utilização de óculos com aros circulares. Os outros dois inerentes à sua actividade profissional: a observação microscópica e o registo de observações. E mais não disse, nem tinha que dizer, pois “Quem sabe da poda é o podador”.
Modelação
No acto da encomenda disse ao barrista que não queria “Obras de Santa Engrácia” e apesar de que “Sem tempo nada se faz”, tinha que ser “Obra começada, obra acabada”. E assim foi. Ricardo Fonseca seguiu “Tintim por tintim” e “Com todos os efes-e-erres”, aquilo que lhe tinha sido sugerido. “Mão vai, mão vem”, a obra lá nasceu, já que “O olho do mestre é régua”. Como é sabido, “As obras mostram quem cada um é”. Neste caso e como sempre, a modelação da figura de Ricardo Jorge pelo barrista Ricardo Fonseca, revelou toda a sua mestria, bom gosto e fidelidade aos cânones da modelação de Bonecos ao modo de Estremoz. A Ricardo Fonseca, o meu muito obrigado pela rápida resposta à chamada e pelo êxito no cumprimento da missão que lhe foi confiada.
Ricardo Jorge por Ricardo Fonseca
Figura antropomórfica masculina, sentada numa cadeira de quatro pés e com costas, tendo as mãos sobre uma mesa de trabalho, também de quatro pés, cujo aspecto castanho-escuro configura madeira, o mesmo se passando com a cadeira. A mão direita empunha aquilo que parece ser uma caneta preta por cima daquilo que figura ser uma folha de papel branco, no qual são visíveis anotações manuscritas. A mão esquerda está apoiada na base daquilo que simula ser um microscópio com componentes cor de latão, à excepção da base circular assente na mesa e que é negra.
Na cabeça, o cabelo é castanho-escuro e a face está coberta por uma barba cerrada. Os olhos são dois pontos negros, encimados por dois arcos igualmente negros, imitando as pestanas e as sobrancelhas. Os olhos estão potenciados por óculos de aros redondos em arame.
Traja um fato castanho-escuro com corte à maneira dos finais do séc. XIX, sendo o casaco do tipo paletó com virados e bolsos de fora, de chapa, do qual não é visível a abotoadura. A parte detrás do casaco ostenta ao fundo uma abertura longitudinal, central. Usa uma camisa branca com colarinhos, cujos punhos saem das mangas do casaco. Sob o colarinho está presa um gravata preta com nó, parcialmente encoberta por um colete cinzento com virados como os do casaco e com uma abotoadura de quatro casas.
A figura usa sapatos negros. Estes, a mesa e a cadeira assentam numa base rectangular cor barro, configurando um chão de tijoleira quadrada.

Biografia de Ricardo Jorge

Nascimento e estudos
Ricardo de Almeida Jorge nasceu na cidade do Porto, a 9 de Maio de 1858, no seio de uma família modesta. Com 16 anos apenas, ingressou na Escola Médico-Cirúrgica do Porto, a qual frequentou com brilhantismo, vindo a licenciar-se aos 21 anos com as mais altas classificações.
Vida profissional
Iniciou a sua vida profissional, em 1880, como professor da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, ocupação que conciliava com a actividade clínica. Em 1883 deslocou-se a Estrasburgo e a Paris em busca de uma aprendizagem impossível de receber em Portugal. Após o regresso a Portugal, iniciou um Curso de Anatomia dos Centros Nervosos e criou o Laboratório de Microscopia e Fisiologia do Porto.
A Hidroterapia é o interesse que sucedeu à Neurologia, abandonando esta última em 1884, na sequência da epidemia de cólera de 1883. Dedicou-se então à Higiene Social, proferindo conferências que o prestigiaram, o que constituiu um momento chave do sanitarismo em Portugal. Por isso, a Câmara Municipal do Porto convidou-o a associar-se a uma comissão de estudo das condições sanitárias da cidade, no âmbito da qual realizou um inquérito sobre as condições de salubridade urbana. O relatório final (O Saneamento do Porto) foi apresentado em 1888.
Em 1885 elaborou e apresentou no Conselho Superior Público, um relatório sobre o ensino médico em Portugal, que considerava obsoleto face às orientações modernas vigentes noutros países europeus. Este relatório viria depois a servir de base ao Regulamento Geral de Saúde de 1901.
Em 1892 foi convidado para dirigir os Serviços Municipais de Saúde e Higiene da Cidade do Porto e chefiar o Laboratório Municipal de Bacteriologia.
Em 1895 foi indigitado professor titular da cadeira de Higiene e Medicina Legal da Escola Médico-Cirúrgica do Porto, o que consolidou o seu prestígio como higienista.
A erradicação da peste bubónica
Entre Junho e Setembro de 1899, o Porto foi assolado pela peste bubónica, a qual diagnosticou, chegando à sua prova clínica e epidemiológica. Visando eliminar a pandemia preconizou a tomada de medidas profiláticas tais como: isolamento de doentes, evacuação de casas, isolamento e desinfecção de locais onde se verificaram ocorrências. Tais medidas conduziram à sua consagração como epidemiologista de renome, mas simultaneamente suscitaram a ira popular, que acicatada por grupos políticos, o forçaram a abandonar a cidade.
A ida para Lisboa
Em Outubro de 1899, já em Lisboa, foi nomeado Inspector-Geral de Saúde e professor de Higiene da Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa. Funda em 28 de Dezembro de 1899, o Instituto Central de Higiene, com o intuito de formar sanitaristas e de desenvolver a investigação na área da Saúde Pública. A reforma dos serviços sanitários que promoveu, conduziu à publicação do Regulamento Geral dos Serviços de Saúde e Beneficência Pública, em 24 de Dezembro de 1901.
Participa em inúmeras iniciativas como a organização da Assistência Nacional Contra a Tuberculose e o Congresso Internacional de Medicina de 1906, no qual presidiu à Secção de Higiene e Epidemiologia. Em 1911 colabora na reforma do ensino médico e em 1912 inicia os seus trabalhos no Office Internacional de Higiene, em Paris, onde se celebrizou. Em 1913 começou a publicar os Arquivos do Instituto Central de Higiene e, em 1914, principiou a edição da série estatística Movimento Fisiológico da População (1914-1925).
Entre 1914 e 1915 preside à Sociedade das Ciências Médicas e nos anos seguintes visita formações sanitárias na zona de guerra em França. Organiza depois a luta contra as epidemias de gripe pneumónica (gripe espanhola), do tifo exantemático e varíola de 1918, consequências das más condições sanitárias do pós-guerra.
Em 1926 foi encarregue de reformar o seu Regulamento de Saúde Pública, de 1901. Por mérito próprio foi escolhido para representar Portugal no Comité de Higiene da Sociedade das Nações. Em 1929 foi nomeado Presidente do Conselho Técnico Superior de Higiene. Mesmo nos últimos anos da sua vida manteve uma intensa actividade.
Médico e Humanista
Os interesses de Ricardo Jorge não se limitaram ao campo da Medicina, da qual foi um ilustre professor e a figura maior da Medicina Social. Foi também um grande humanista cuja vasta obra inclui publicações em âmbitos tão diversos como Arte, Literatura, História e Política. Faleceu em Lisboa, a 29 de Julho de 1939.
Estremoz, Maio de 2020
(Jornal E nº 248, de 11-06-2020)

Fig. 1 - Ricardo Jorge no Laboratório Municipal de Bacteriologia, no Porto (1899).
Fotografia de Guedes de Oliveira (1885-1932). Arquivo Municipal do Porto.

Fig. 2 - Ricardo Jorge no Laboratório Municipal de Bacteriologia, no Porto (1899).
Fotografia de Aurélio Paz dos Reis (1862-1931). Centro Português de Fotografia, Porto.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Peralta e Sécia (ganchos de meia)


Peralta e Sécia (ganchos de meia). Irmãs Flores.

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Os “ganchos de meia” são Bonecos de Estremoz minúsculos, que as mulheres das nossas famílias usavam quando faziam croché ou tricotavam peças de vestuário, de lã ou algodão, como era o caso das chamadas “meias de cinco agulhas”.
Trata-se de figuras antropomórficas, modeladas em barro, que depois de cozidas são pintadas e envernizadas.
Em todas elas figuram dois ganchos de arame no tronco. Um à frente, virado para cima, para nele passar o fio, que do novelo pode ser redireccionado para as agulhas. O outro nas costas, virado para baixo, para pregar na blusa ou no vestido da mulher, na parte superior do peito, geralmente do lado esquerdo.
Há vários modelos de gancho de meia, entre os quais o “Peralta” e a “Sécia” Estes foram modelados na actualidade pelas Irmãs Flores e reproduzem modelos do início do séc. XX. Todavia, o “Peralta” e a “Sécia” são figuras mais antigas.
O “Peralta” e a “Sécia” eram as designações atribuídas aos elegantes portugueses desde o sécs. XVIII, que envergavam trajos garridos com demasiado apuro e enfeites. De acordo com a literatura da época e sobre a época, eram pessoas afectadas não só no trajar, como no andar e no comportamento.

sábado, 30 de maio de 2020

Joana Oliveira, uma barrista que se afirma


Fig. 1 – Passeio de Santo António com o Menino Jesus (2020). Joana Oliveira (1978).
Colecção de Alexandre Correia.

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Santo António e Estremoz
Santo António de Lisboa é um Santo venerado pela Igreja Católica, seguramente o Santo que é objecto da mais intensa devoção popular. O seu culto foi incentivado em Estremoz pelos religiosos da Ordem de São Francisco de Assis, sediados no Convento de São Francisco, desde os primórdios da sua construção, no século XIII, em data imprecisa, balizada pelos reinados de D. Sancho II – D. Afonso III (1239-1255).
Daí não ser de admirar que a iconografia antonina inclua exemplares da barrística popular estremocense, desde os sécs. XVIII-XIX.
Iconografia de Santo António
A iconografia de Santo António representa-o correntemente a envergar o hábito castanho da ordem franciscana, com terço e cordão à cintura, acompanhado do Menino Jesus, o que simboliza a intimidade de Santo António com Cristo. Em geral, o Menino Jesus é mostrado de três modos diferentes: - SOBRE A BÍBLIA: Significa que Santo António anunciava Jesus Cristo através de inúmeras citações do Evangelho; - AO COLO DE SANTO ANTÓNIO: Traduz a profunda intimidade do Santo com Jesus, fonte da sabedoria e dos dons que nele se manifestavam; - MOSTRADO AO SANTO PELA VIRGEM MARIA: Revela a intensa devoção de Santo António pela Virgem.
Existem ainda iconografias antoninas muito específicas que têm a ver com os Milagres de Santo António. Tal é caso do Sermão de Santo António aos peixes, do qual irei falar a seguir.
Sermão de Santo António aos peixes
Alguma iconografia de Santo António representa o "Sermão de Santo António aos peixes". Vejamos o que nos diz o Padre António Vieira (1608-1694) no seu “Sermão de Santo António aos peixes” publicado pela primeira vez em 1682:
“Pregava Santo António em Itália, na cidade de Rimini [1], contra os hereges, que nela eram muitos; e como erros de entendimento são dificultosos de arrancar, não só não fazia fruto o Santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele, e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida. Que faria neste caso o ânimo generoso do grande António? Sacudiria o pó dos sapatos, como Cristo aconselha em outro lugar? Mas António, com os pés descalços, não podia fazer esta protestação; e uns pés, a que se não pegou nada de terra, não tinham que sacudir. Que faria logo? Retirar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a prudência ou a covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia naquele, não se rendeu a semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da sua doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: “Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes! Oh! maravilhas do Altíssimo! Oh! poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos; e, postos todos por sua ordem com as cabeças de fora da água, António pregava, e eles ouviam”.
É o próprio Camões (c. 1524-1580) que relata: “Com que os mudos peixes / saem ouvindo ao ar aberto.” [2]. De resto é bem conhecida a quadra popular: "Santo António Português,/Quando foi pregar ao mar,/Até os peixes na água,/Se puseram a escutar!" [3]     
Passeio de Santo António com o Menino Jesus
A temática antonina traz-me à mente os versos do “Passeio de Santo António”, de Augusto Gil (1873-1929), magistralmente declamados pelo saudoso actor João Villaret (1913-1961). Os versos incluídos no livro de poemas “Luar de Janeiro” (1909), mostram a dimensão humana e ingénua com que são tratados os personagens Santo António e Menino Jesus. Perante alguma impertinência do Menino Jesus, Santo António ameaça fazer queixas à Mãe: “Corado como as vestes dos cardeais, / Achou esta saída redentora: / - Se o Menino Jesus pergunta mais, / ... Queixo-me à sua mãe, Nossa Senhora!”. O poema é todo ele revelador da grande intimidade entre Santo António e o Menino Jesus.
Criações de Joana Oliveira
Alexandre Correia, porventura o maior coleccionador português de Santo António, facultou-me as imagens de duas criações da barrista Joana Oliveira, que frequentou o Curso de Formação sobre Técnicas de Produção de Bonecos de Estremoz, que no ano transacto teve lugar em Estremoz, no Palácio dos Marqueses de Praia e Monforte. Essas imagens são “Passeio de Santo António com o Menino Jesus”(Fig. 1) e Sermão de Santo António aos peixes” (Fig. 2). De cada uma delas vou falar em particular.
Passeio de Santo António com o Menino Jesus (Fig. 1)
A tonsura na cabeça de Santo António frisa a sua castidade. A auréola na cabeça de Santo António e do Menino Jesus, sublinha a santidade de ambos.
Santo António enverga o hábito franciscano castanho, com o cordão à cintura. Na mão direita segura uma Bíblia de capa castanha que comprime contra o peito. Parece ir dar a mão ao Menino Jesus, que veste túnica azul clara e que segura na mão esquerda três lírios amarelos (Porventura uma alegoria à Santíssima Trindade, já que o amarelo traduz a luz.). Qualquer deles calça sandálias castanhas com tiras.
Naturalmente que a cor das vestes tem um significado profundamente simbólico. O castanho de Santo António é a cor da terra e simboliza a humildade, a simplicidade e a pobreza que são apanágio dos franciscanos. O azul claro do Menino Jesus representa a espiritualidade, a eternidade, a paz, a pureza e o desapego da vida mundana.
A representação é muito feliz. Sugere: Intimidade (Caminham juntos); - Confiança mútua (Santo António e o Menino vão praticamente de mão dadas, sem contudo se tocarem); - Cumplicidade (Olham um para o outro); - Comunicação (Parecem falar entre si); - Amor aos Evangelhos (Santo António comprime a Bíblia contra o peito); - Partilha (O Menino transporta os lírios, atributo de Santo António).
De registar que o conjunto não assenta numa peanha. Esta começou por ser usada pelos barristas populares de Estremoz, os quais utilizaram como modelo imagens devocionais de escultores eruditos em madeira, que eram objecto de culto nas nossas igrejas e conventos. Todavia libertaram-se dessa "canga". A peanha tem sido utilizada por quem o entende fazer, mas há barristas como José Moreira, Fátima Estróia e Maria Luísa da Conceição, que embora tenham modelado imagens devocionais com peanha, perceberam que esta era dispensável e são conhecidos trabalhos seus (eu próprio os tenho), em que as imagens de Santos não assentam nem em peanhas nem em andores. Nunca passou pela cabeça de ninguém, dizer que não são imagens devocionais ou que não possam ser considerados Bonecos de Estremoz. Tal é o caso, que aqui registo e saúdo.
As duas figuras assentam numa base quadrangular. Sendo o quadrado símbolo da perfeição e da estabilidade, a geometria da base poderá constituir uma alegoria aos quatro Evangelistas (Mateus, Marcos, Lucas e João). Por uma questão técnica, os vértices do quadrado foram cortados em bisel, para conferir mais solidez à base. Esta é de cor verde, cromatismo ligado à natureza, ao crescimento, à renovação, à esperança e à liberdade. A orla da base é castanha, cor do hábito do Santo. No seu conjunto, as cores verde e castanha da base reforçam a sobriedade do conjunto.
Voltando à peanha cujo uso é advogado por alguns, julgo não ser despropositado tecer algumas considerações suplementares. Na sua imponência ornamental, a peanha configura o afastamento do devoto em relação à imagem devocional. Pelo contrário, uma imagem devocional sem peanha traduz a aproximação do devoto em relação à imagem devocional, já que o Santo fica no plano térreo do devoto. Por outras palavras, trata-se de uma abordagem artística mais “terra a terra”, que a meu ver humaniza mais a iconografia, sem todavia a dessacralizar.
Sermão de Santo António aos peixes (Fig. 2)
Santo António enverga o hábito franciscano castanho com terço e cordão à cintura e calça sandálias castanhas com tiras. A tonsura na cabeça salienta a sua castidade, mas a cabeça não apresenta auréola por a representação se referir a um episódio da sua vida, antes de ter sido canonizado.
A figura do Santo está assente num plano mais elevado em relação ao nível do mar. Os pés pisam aquilo que configura ser rocha cinzenta, provável alegoria à dor sentida pelo Santo, por não ser escutado pelos homens e se ver forçado a pregar aos peixes. Junto aos pés, dois lírios branco e lilás, provável alegoria à inocência do Santo. Este, de boca aberta, prega aos peixes olhando para o céu como se recebesse a palavra de Deus. O seu sermão é acompanhado de linguagem gestual.
Aos pés do Santo rebentam as ondas do mar azul, repletas de espuma. Da água emergem peixes (em número de quatro), que parecem escutar as palavras do Santo. Será uma alegoria às quatro virtudes fundamentais (Sabedoria, Fortaleza, Temperança e Coragem), referidas por Platão (428/427 – 348/347 a.C.), na “República”?
Epílogo
Os trabalhos da Joana Oliveira são trabalhos expressivos, reveladores de forte personalidade, sensibilidade e bom gosto que se traduzem em marcas identitárias muito próprias, que a maioria das vezes só são conseguidas ao fim de muito tempo de traquejo, após os barristas se terem conseguido libertar da influência daqueles que os precederam e/ou ensinaram, deixando de imitar ou tentar imitar a sua produção, não o conseguindo muitas vezes. Com o trabalho da Joana Oliveira, a Barrística Popular de Estremoz está de parabéns e ela própria também. Pois claro!
O seu caminho deverá ser sempre uma procura, com prazer no caminho e na descoberta. E com tal procedimento é sempre possível manter uma estrita fidelidade ao modo de produção, consensualmente reconhecido como "sui generis" e de Estremoz.

[1] - Rimini, cidade do NE de Itália, na região de Emília, província de Forli, situada na costa do Adriático e na foz do Mareccha, a 44º 3’ 43" de latitude Norte. A cidade de Rimini teve origem na antiga Ariminum, fortaleza e posto de grande importância política e militar no período romano. Já na Idade Média, Rimini foi porto de importância e domínio dos Malatesta, senhores cruéis e requintados mecenas. Actualmente é uma das maiores e mais famosas estações balneares de Itália.
[2] - CAMÕES. Écogla 6.ª das Rimas Várias.
[3] - Quadra recolhida por Armando de Mattos (ver Bibliografia).

BIBLIOGRAFIA
- MATOS, Hernâni António Carmelo de. Bilhetes-Postais Comemorativos do VII Centenário do Nascimento de Santo António de Lisboa in Catálogo da Inteiromax - Eça de Queiroz 2000, Póvoa de Varzim, Agosto de 2000.
- MATTOS, Armando de. Santo António nas Tradições Populares. Porto, 1937.

Hernâni Matos

Fig. 2 - Sermão de Santo António aos peixes (2020). Joana Oliveira (1978).
Colecção de Alexandre Correia.

quinta-feira, 28 de maio de 2020

Bonecos de Estremoz e pandemia: Peralta e Sécia


Peralta e sécia na pandemia (2020). Irmãs Flores.

Introdução
No início de Março de 2020 alastrou em Portugal uma pandemia de COVID 19. Como coleccionador e investigador da barrística popular estremocense, surgiu-me na mente a ideia de que poderiam e deveriam ser modelados Bonecos que perpetuassem no barro, a pandemia que atravessamos. A ideia começou por ser posta em prática, através da criação pelo barrista Ricardo Fonseca da figura de São Roque, tido como Santo Protector contra as epidemias e que não havia ainda sido modelado pelos barristas de Estremoz.
A ideia inicial tinha pernas para andar e podia estender-se noutras direcções. Foi assim que pensei que para além daquela imagem devocional, podiam ser criados Bonecos que retratassem em contexto social a resposta possível à pandemia. Em termos de prevenção, uma das atitudes a tomar passa pelo uso de máscaras comunitárias em ambientes fechados. Uma opção possível passava assim pela modelação dum Boneco usando máscara. Todavia, a pandemia não escolhe nem sexo, nem idade, nem etnias. Haveria pois que confeccionar dois Bonecos, um referente ao sexo masculino e outro ao sexo feminino. Optei por representações de adulto de idade indeterminada e como havia que escolher uma cor para a pele, escolhi a branca, por ser a cor de pele dominante em Portugal.
Bonecos da Tradição ou Bonecos da Inovação?   
Chegado a este ponto, tinha duas opções possíveis: serem recriados Bonecos da Tradição ou inovar, criando novos Bonecos. Que fazer então?
Estamos em presença de tempos que são tempos de mudança, o que me levou a lembrar Camões: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, / Muda-se o ser, muda-se a confiança: / Todo o mundo é composto de mudança, Tomando sempre novas qualidades.”; “Continuamente vemos novidades, / Diferentes em tudo da esperança: / Do mal ficam as mágoas na lembrança, / E do bem (se algum houve) as saudades.”
Fui levado a concluir que seria mais interessante e preferível, recriar Bonecos da Tradição, já que permitiria aprofundar e enriquecer o seu conjunto. Cada um deles encerra em si as marcas de identidade próprias dos barristas que os criaram e lhes deram alma e vida. Os Bonecos a recriar agora passariam ainda a ostentar marcas que os associavam temporalmente ao período da pandemia.
Que Bonecos da Tradição?   
Chegado aqui, tinha novas opções a fazer que passavam pela escolha dos Bonecos da Tradição que iriam ser recriados.
As “Figuras de presépio” e as “Imagens devocionais” foram excluídas à partida do conjunto das hipóteses a considerar, dada a sua função simbólica.
Restavam então as figuras que desempenham uma função decorativa: as “Figuras da faina agro-pastoril nas herdades alentejanas”, as “Figuras que têm a ver com a realidade local”, as “Figuras intimistas que têm a ver com o quotidiano doméstico”, as “Figuras de negros”, as “Figuras destinadas a assinalar períodos festivos” e as “Figuras satíricas”. Obviamente que estes três últimos tipos de figuras foram eliminados imediatamente, por a sua utilização carecer de sentido face aos meus propósitos. O mesmo se passou com as “Figuras da faina agro-pastoril nas herdades alentejanas”, já que isso seria limitar a representação a um contexto rural, bem como as “Figuras intimistas que têm a ver com o quotidiano doméstico”, já que a importância do uso da máscara sobressai na interacção social. Restavam então as “Figuras que têm a ver com a realidade local”. Por não serem socialmente predominantes, excluíram-se as figuras do “Sector militar” e do “Domínio religioso”. Restaram então as figuras de “Âmbito civil”. Chegado aqui, optei por escolher a imagem do “Peralta” e da “Sécia” (esta última vulgarmente designada por “Senhora de Pézinhos”).
A escolha das cores
Havia agora que definir as cores, convindo não esquecer que estamos em Portugal, “a ditosa pátria minha amada”, no dizer de Camões. As cores nacionais são as cores da Bandeira Nacional adoptada pela República instaurada pela Revolução de 5 de Outubro de 1910. O verde-escuro e o vermelho são as cores fundamentais e o amarelo e o branco são cores secundárias.
Pensei então que o traje do “Peralta” e da “Sécia” deveriam sublinhar simultaneamente a diferença e a complementaridade entre homem e mulher. Escolhi para a roupa feminina a cor vermelha, ornada de verde-escuro e para a roupa masculina, a cor verde-escuro, ornada de vermelho. Os chapéus deveriam ser ambos amarelos.
O simbolismo das cores
As cores da bandeira nacional têm um significado simbólico diversificado, que pode assim ser sistematizado: - VERMELHO - associado à paixão, à energia, à coragem e à revolução; - VERDE – ligado à natureza, ao crescimento, à renovação, à esperança e à liberdade; - AMARELO - traduz a luz, o calor, o optimismo, a alegria, a felicidade e a prosperidade; - BRANCO – simboliza a paz, a espiritualidade, a virtude, a inocência e a virgindade.
A materialização duma ideia
Contactei as Irmãs Flores expondo em traços sumários a minha ideia de ver modeladas as figuras do ”Peralta” e da “Sécia“, usando máscaras de protecção contra a pandemia. Dei também conta das cores que gostava que fossem utilizadas, para situar as figuras em contexto português. Disseram-me imediatamente que podiam modelar as imagens pretendidas e que a combinação de cores que eu propunha, era por elas usada com frequência.
As Irmãs Flores interpretaram a seu modo o que eu propusera e a sua mestria criou duas figuras muito belas, de cunho verdadeiramente popular e que correspondem inteiramente aquilo que eu pretendia (Fig. 1 e Fig. 2).
Peralta
Figura antropomórfica masculina, de pé, com as mãos na anca e sapatos negros. Na cabeça, o cabelo é castanho e está parcialmente coberto por chapéu amarelo, de aba larga e virada para cima.
Os olhos são dois pontos negros, encimados por dois arcos igualmente negros, simulando as pestanas e as sobrancelhas. Uma máscara azul clara com orla branca e estreita, cobre a boca e o nariz, do qual só é visível a parte superior. Da máscara sai uma atadura branca que a prende às orelhas.
Traja um fato verde-escuro. As calças têm uma bainha vermelha. O casaco tem uma orla e punhos vermelhos. A gola é igualmente vermelha mas decorada com seis flores, que apresentam uma corola verde e oito pétalas, alternadamente brancas e amarelas. As flores estão separadas entre si por faixas transversais à gola, verdes e amarelas, que se alternam.
O casaco tem à frente uma abotoadura constituída por quatro botões amarelos, dois de cada lado. A parte detrás do casaco ostenta na horizontal dois botões amarelos, à altura da cintura.
À volta do pescoço tem enrolado um lenço amarelo, cruzado à frente e com as pontas a mergulhar dentro do casaco.
A figura assenta numa base quadrangular com os vértices cortados em bisel e pintalgada de branco, amarelo e zarcão. Verticalmente, a orla da base é cor de zarcão.
Sécia
Figura antropomórfica feminina, de pé e com as mãos na anca. Na cabeça, o cabelo é castanho, enrolado atrás em forma de troço e está parcialmente coberto por um chapéu amarelo, levantado à frente e ornamentado por três plumas igualmente amarelas mas com três pintas vermelhas em cada ponta, separadas entre si por traços longitudinais a verde.
Os olhos são dois pontos negros, encimados por dois arcos igualmente negros, simulando as pestanas e as sobrancelhas. Uma máscara azul clara com orla branca e estreita, cobre a boca e o nariz, do qual só é visível a parte superior. Da máscara sai uma atadura branca que a prende às orelhas, das quais pendem arcadas amarelas.
Enverga um conjunto de saia e casaco vermelhos. A saia é comprida e encontra-se decorada na orla inferior por aquilo que configura ser um bordado constituído por meias folhas lanceoladas, alternadamente verdes e amarelas, separadas por pétalas brancas. Ao fundo da saia, à frente, espreitam os sapatos pretos usados pela figura.    
O casaco é curto, justo ao corpo e tem uma orla e punhos verdes. A gola é igualmente verde, decorada com seis flores com corola vermelha e oito pétalas, alternadamente brancas e amarelas. As flores estão separadas entre si por faixas transversais à gola, vermelhas e amarelas, que se alternam. O casaco tem à frente uma abotoadura constituída por seis botões amarelos, três de cada lado. A parte detrás do casaco ostenta na horizontal dois botões amarelos, à altura da cintura. A gola é fechada à frente por um botão amarelo maior que os restantes.
Origens históricas                              
O “Peralta” e a “Sécia” eram os elegantes portugueses dos sécs. XVIII e XIX, que envergavam trajos garridos com demasiado apuro e enfeites. De acordo com a literatura da época e sobre a época, eram pessoas afectadas não só no trajar, como no andar e no comportamento.
No Museu Municipal de Estremoz existem exemplares daquelas figuras identificadas como sendo do séc. XIX. A sua produção foi retomada nos anos 30 do séc. XX, graças à acção do escultor José Maria de Sá Lemos (1892-1971), director da Escola Industrial António Augusto Gonçalves, que atribuiu a si próprio a missão de recuperação da tradição de manufactura dos Bonecos de Estremoz, extinta desde 1921. Para tal, utilizou primeiro como instrumento primordial dessa recuperação a velha barrista Ana das Peles (1869-1945) e depois como instrumento de continuidade dessa recuperação, Mariano da Conceição – o Alfacinha (1903-1959), mestre de olaria naquela Escola.
Estremoz, Abril de 2020
(Jornal E nº 247, de 28-05-2020)


Peralta na pandemia (2020). Irmãs Flores.

Sécia na pandemia (2020). Irmãs Flores.