quarta-feira, 20 de novembro de 2019

Bonecos de Estremoz: Aclénia Pereira


Fig. 1 - Aclénia Pereira (1927-2012), com a idade de 13 anos.
Fotografia de autor desconhecido.

CRÉDITOS
Bonecos fotografados por Luís Mariano Guimarães (2018).

Nascimento e nome
Aclénia nasceu às 21 horas do dia 26 de Fevereiro de 1927 no nº 12 da Rua Magalhães de Lima, Freguesia de Santo André de Estremoz. Filha legítima de Carlota Rita Capeto Pereira, 23 anos, doméstica, casada com Ricardo de Jesus Pereira Ventas, 26 anos, conceituado relojoeiro e ourives da nossa praça[1] 46, natural como sua mulher da Freguesia de Santo André, concelho de Estremoz (4).
A criança então nascida era neta paterna de Joaquim Abílio Ventas e de Adelaide do Nascimento Pataco e neta materna de Estevão da Silva Capeto e de Perpétua Rosa Polido Capeto. A recém-nascida foi registada a 21 de Março de 1927, no Registo Civil de Estremoz. Apadrinharam o acto, José Joaquim Pereira Ventas, sapateiro, maior, e Maria Antónia Pulido Capeto, doméstica, maior, ambos residentes em Estremoz.
A menina recebeu o nome de Aclénia Risolete Capeto Ventas. Em 1945 o pai de Aclénia foi autorizado superiormente a mudar o nome para Ricardo de Jesus Pereira, pelo que a filha com a idade de 18 anos foi também autorizada a alterar o nome para Aclénia Risolete Capeto Pereira.
Em 28 de Dezembro de 1960, com a idade de 33 anos, casou na Igreja de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, com Pedro Paulo de Oliveira e Noronha, de 30 anos, natural de vale de Santarém, Santarém, onde o casal passaria a residir. O nome da noiva passaria então a ser Aclénia Risolete Capeto Pereira e Noronha (1).
Infância e juventude
Aclénia cresceu sem problemas e frequentou o Ensino Primário Elementar em Estremoz, tendo sido aprovada no exame de 2º grau em 1939, com a idade de 12 anos. Com a idade de 13 anos, Aclénia (Fig. 1) inscreveu-se em 1940 na Escola Industrial António Augusto Gonçalves[2] situada na rua da Pena nº 11 em Estremoz, no local onde funcionaria mais tarde a Ala nº 2 da Mocidade Portuguesa Masculina e depois o Salão Paroquial de Santa Maria (3). Era então director José Maria de Sá Lemos (1892–1971). A organização do Ensino Técnico-Profissional era regida pelo Decreto nº 20.420 de 20 de Outubro de 1931. Na Escola era ministrado o ensino dos seguintes ofícios: canteiro civil, canteiro artístico, oleiro e tapeceira, sendo o pessoal docente desta Escola composto por 1 professor e 3 mestres.
Aclénia inscreveu-se no Curso de Tapeceira e frequentou a Escola com aproveitamento até ao 3º ano, tendo realizado todos os exames e frequências constantes do currículo. Não frequentou todavia o 4º ano.
Na oficina de tapeçaria aprendeu com Mestra Joana Maria de Albuquerque Simões e na oficina de Olaria com Mestre Mariano Augusto da Conceição (1902-1959). A oficina de tapeçaria era no 1º andar e a oficina de olaria, logo à entrada da Escola, do lado direito. Com as mãos sábias e experientes de Mestra Joana aprendeu o ponto de Arraiolos, a bordar, a recortar autênticas filigranas em papel e o deslumbramento da Arte Conventual. Por sua vez, Mestre Mariano soube transmitir-lhe a arte bonequeira.
Com tais mestres e dotada de rara habilidade e fina sensibilidade, Aclénia aprendeu a dominar os materiais e a criar artefactos que nos deleitam o espírito.
Depois de ter saído da Escola Industrial António Augusto Gonçalves terá frequentado a Escola do Magistério Primário de Évora, após o que passou a desempenhar funções de Professora do Ensino Primário, o que fez até à altura da sua aposentação. Após o casamento, em 1960, deixou de morar na Avenida Dr. Marques Crespo, nº 23, em Estremoz, para onde entretanto mudara e transferiu-se para Santarém.
O regresso às origens
Em 1983 participou na I Feira de Arte Popular e Artesanato do Concelho de Estremoz, cujo stand 5, 6, 7 ocupou. Dela diz o catálogo (5): “Natural de Estremoz e residente em Santarém, dedica-se de há longos anos à prática de variadíssimas técnicas, às artes popular e conventual. Com barro, tecidos, papel, metal, organiza pequenas obras de arte preenchendo da melhor maneira os lazeres da sua vida doméstica e profissional.”. De acordo com o jornal “Brados do Alentejo” (6), Aclénia participou no certame nas secções de “Barro”, “Papel” e “Têxteis”. Ainda de acordo com o catálogo, partilhou o stand com sua tia Ernestina Capeto de Matos[3] que apresentou trabalhos de arte conventual.
Aclénia está representada com os seus Bonecos de Estremoz em colecções particulares e no Museu Rural de Estremoz.
Os Bonecos de Aclénia
Aclénia reproduziu as figuras que aprendera com Mestre Mariano: figuras que têm a ver com a realidade local, figuras intimistas que têm a ver com o quotidiano doméstico, figuras que são personagens da faina agro-pastoril das herdades alentejanas, figuras alegóricas e imagens religiosas.
Os Bonecos de Aclénia são inconfundíveis, a meu ver pela ingenuidade e simplicidade dos traços do rosto, que com a sua rara sensibilidade feminina lhes soube transmitir.
Normalmente têm estampadas na base a marca de identificação da barrista: “Tanagra ” dentro de um rectângulo de 3 cm x 1 cm e a marca de identificação do local de produção: “ESTREMOZ / PORTUGAL”, em maiúsculas e em duas linhas, dentro de um rectângulo de 2,7 cm x 1 cm (Fig. 5).
Uma interpretação possível
As “tanagras” são estatuetas de barro fabricadas com moldes que foram descobertas em túmulos antigos na cidade de Tanagra, antiga cidade grega da Beócia, situada não muito longe de Platéia, a 20 km de Tebas, perto da fronteira com a Ática. O facto de se terem encontrado as tanagras em túmulos antigos é indicativo de que elas tinham uma função funerária. Representam, a maior parte das vezes, mulheres graciosas cobertas com vestidos elegantes, jovens e mais raramente crianças. Estiveram em voga desde o séc. IV a.C. até ao fim do século III d.C. As tanagras tornaram-se a encarnação da graça feminina e, por extensão, a palavra tanagra serve para adjectivar uma jovem fina e graciosa.
O facto de Aclénia, como barrista usar a palavra “Tanagra” como marca de identificação é revelador de que sabia que a palavra era sinónimo de estatueta fina e elegante. Todavia vou mais longe, como Aclénia era uma mulher bela e elegante, poderá ter escolhido aquela marca de identificação, por se considerar ela própria uma “Tanagra”. É uma hipótese absolutamente plausível e que partilho com o leitor.
O falecimento de Aclénia
Em 21 de Abril de 2012, faleceu com a idade de 85 anos na Casa de Saúde do Montepio Rainha D. Leonor, na Freguesia de Nossa Senhora do Pópulo nas Caldas da Rainha, Aclénia Pereira (2), artesã polifacetada e barrista estremocense, que tive o privilégio de conhecer nos anos 50 do século passado, em virtude de ser amiga de minha prima Adozinda Pacífico Carmelo da Cunha, que era íntima da casa de seus pais e me levava a passear com ela.
BIBLIOGRAFIA
(1) - Aclénia Risolete Capeto Ventas - Assento de Casamento nº 1 de 1960, da Conservatória do Registo Civil de Estremoz.
(2) - Aclénia Risolete Capeto Ventas - Assento de Óbito nº 332 de 2012, da Conservatória do Registo Civil de Santarém.
(3) - Aclénia Risolete Capeto Ventas – Processo individual de aluna nº 345, no Arquivo da Escola Industrial António Augusto Gonçalves e sucessoras.
(4) - Aclénia Risolete Capeto Ventas - Registo de Nascimento nº 157 de 1927, da Conservatória do Registo Civil de Estremoz.
(5) - Catálogo da I Feira de Arte Popular e Artesanato. Câmara Municipal de Estremoz. Estremoz, 15 a 17 de Julho de 1983.
(6) - I Feira de Arte Popular e Artesanato do Concelho de Estremoz in Brados do Alentejo, 3ª série, nº 93. Estremoz, 15 de Julho de 1983.




[1] A relojoaria e ourivesaria do pai de Aclénia situava-se no Largo da República, 44-A, em Estremoz, no local onde funciona hoje o  Plaza-Pronto-A-Vestir. Lembro--me de quando era rapaz ver expostas na montra do estabelecimento por altura do Natal, figurinhas de presépio confeccionadas por Aclénia. O seu pai era tio e padrinho de Inácio Augusto Basílio, com relojoaria e ourivesaria até há pouco tempo no Rossio Marquês de Pombal, 98, em Estremoz.
[2] Esta Escola resultou da elevação a Escola Industrial, pelo Decreto nº 18.420 de 4 de Junho de 1930, da Escola de Artes e Ofícios de Estremoz, criada pela Lei nº 1.609 de 18 de Dezembro de 1924.
[3] Ernestina, além de artesã, era proprietária de um bem afreguesado salão de cabeleireira, no Largo da República, 9-A, em Estremoz.

Fig. 2 - Pastor com alforge ao ombro. Colecção particular.

Fig. 3 - Pastor a limpar o suor. Colecção particular.

Fig. 4 - Pastor a tocar gaita de beiços. Colecção particular.

 Fig. 5 - Mulher a ordenhar vaca. Colecção particular.

Fig. 6 - Primavera. Colecção particular.

Fig. 7 – Marca de autor de Aclénia Pereira.

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Bonecos de Estremoz: Rui Barradas


Rui Barradas (1953-  )

CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS
Rui Barradas

Rui Pires de Zêzere Barradas (1953- ) tem o Curso de Educação Visual e Tecnológica da Escola Superior de Educação de Beja e é docente da disciplina homónima. É barrista, azulejista e pintor (acrílico e aguarela). No período 1985-1990, produziu Bonecos que comercializou na Feira de Arte Popular e Artesanato do Concelho de Estremoz.
Os seus Bonecos foram na época manufacturados em casa e cozidos no forno de mufla da CERCI-Estremoz, onde então leccionava. A comercialização era feita numa loja de artesanato, que com sua mulher Cristina teve na Praça Luís de Camões, nº 11, em Estremoz. Entre 1987 e 1995 e com sua mulher foi co-proprietário da Olaria Alfacinha, em cujo forno procedia à cozedura dos seus azulejos, o que também aconteceu na Escola Básica e Secundária Dr. João Brito Camacho em Almodôvar, na qual leccionou.


 Pastor de capote e cajado. Rui Barradas (1953- ).

  Pastor de tarro e cajado. Rui Barradas (1953- ).

  Pastor a fazer as migas. Rui Barradas (1953- ).

  Pastor a comer. Rui Barradas (1953- ).

  Pastor junto à fogueira. Rui Barradas (1953- ).

 Pastor do harmónio. Rui Barradas (1953- ).
  
 Ganhão sentado com tarro. Rui Barradas (1953- ).

  Semeador. Rui Barradas (1953- ).

  Mondadeira a descansar. Rui Barradas (1953- ).

  Ceifeira a descansar. Rui Barradas (1953- ).

  Mulher a fazer meia. Rui Barradas (1953- ).

  Mulher a bordar. Rui Barradas (1953- ).

 Mulher das castanhas. Rui Barradas (1953- ).

 Peleiro. Rui Barradas (1953- ).

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Bonecos de Estremoz: Uma Estória


Fig. 1 - Confissão (2005). Irmãs Flores (1957- , 1958- ). Figura composta,
manufacturada a partir de desenho de Jorge Branco. Colecção Francisca de Matos.

Ao meu Amigo Jorge Branco (1930-2018),
Geofísico, Escritor, Conferencista,
Artista plástico, Coleccionador, Bibliófilo,
Naturista, Ecologista e tudo!

Desassossego espiritual
A génese do Boneco de Estremoz que esteve na origem da presente crónica, resultou da ocorrência sequencial de três factos: PRIMEIRO: existir alguém com desassossego espiritual quanto baste, que o levou a ter a ousadia de reflectir sobre o que ainda ninguém tenha tido a audácia de pensar. SEGUNDO: a existência de uma infinidade de coisas que ainda não tinham sido pensadas, muitas das quais continuam por pensar e sobre as quais temos a liberdade de reflectir, já que como nos diz Manuel Freire “Não há machado que corte / a raiz ao pensamento”. Sabem porquê? ”Porque é livre como o vento / porque é livre”. TERCEIRO: haver alguém, que até pode ser o ousado pensador, que usufrua de capacidade executiva tal, que lhe permita concretizar o que foi imaginado.
Passou-se isso com o meu saudoso amigo Jorge Branco (Fig.2), que comungava comigo entre outras coisas, o desassossego espiritual permanente e o coleccionismo de Bonecos de Estremoz. Acontece que no conjunto dos “Bonecos da Tradição” e em termos de temática religiosa, existia apenas um certo número de imagens devocionais, bem como figuras de Presépio narrando a vida de Jesus (Nascimento e Fuga o para o Egipto), bem como imagens relatando a Paixão de Cristo (Senhor dos Passos e Cristo crucificado). Jorge Branco constatou que a temática religiosa era vasta e constituía um manancial ainda por explorar, em termos de manufactura de Bonecos de Estremoz. Para além das imagens devocionais, das figuras de Presépio e da Paixão de Cristo, existiam os 10 Mandamentos da Lei de Deus, os 7 Sacramentos da Igreja Católica, os 7 Pecados Capitais, as 3 Virtudes Teológicas e as 4 Virtudes Cardeais. Como diria o meu pai, que era alfaiate, “Aqui há pano para mangas” e daí que Jorge Branco tenha metido mãos à obra.
Concepção e gestação de um Boneco
Jorge Branco era um excelente desenhador, pelo que esboçou no papel uma figura composta a que deu o nome de “Confissão”, designação homónima de um dos 7 Sacramentos. Seguidamente, lançou um desafio às Irmãs Flores, no sentido de efectuarem a correspondente manufactura em barro, ao “modo de Estremoz”. Estas aceitaram o repto de bom grado, como é seu timbre. O resultado está à vista (Fig.1). Uma bela figura composta pelas representações de uma mulher penitente e um padre confessor. A mulher enverga vestido comprido, cor violeta com flores amarelas e véu (ou lenço?) claro na cabeça. Está ajoelhada numa almofada e de mãos postas. A sua cabeça está ao nível da grelha de um confessionário em madeira, encimado por uma cruz e com duas portas frontais, qualquer delas decorada com uma cruz
No confessionário encontra-se sentado um padre de batina preta e colarinho branco, que segura um livro. A cabeça do padre está inclinada em direcção à grelha, o que sugere que a confissão é realizada em voz baixa, para intimidade da penitente. O facto de a mulher usar véu e o padre envergar batina, parece contextualizar a representação em data anterior ao Concílio Vaticano II (1962).
Por vontade expressa de Jorge Branco foram confeccionados unicamente três exemplares, destinados aos membros de uma laicissima trindade de amigos: ele próprio, Francisca Matos e o autor desta crónica. Por desassossego espiritual de Jorge Branco, tinha sido criado mais um Boneco de Estremoz. Como diz António Gedeão: “…sempre que um homem sonha / o mundo pula e avança / … “.
Confissão
Para a Igreja Católica, as pessoas podem cometer no dia a dia, pecados por pensamentos, por palavras, por acções e por omissões, contrárias à Lei de Deus. A confissão é um Sacramento através do qual o crente reconhece os pecados cometidos perante um padre ou um bispo, de quem recebe a absolvição em nome de Deus e da Igreja.
Visões eruditas de pecado
Nem todos comungam o conceito de pecado, tal como o vê a Igreja Católica. É diversificada e plural a visão erudita ante o pecado: - Santo Agostinho (354-430), teólogo: “O pecado é o motivo da tua tristeza. Deixa que a santidade seja o motivo da tua alegria.”; - Martinho Lutero (1483-1546), reformador protestante: A medicina cria pessoas doentes, a matemática, pessoas tristes, e a teologia, pecadores.  - William Shakespear (1564-1616), dramaturgo: “Alguns elevam-se pelo pecado, outros caem pela virtude.”; - François La Rochefoucauld (1613-1680), escritor: “Esquecemos facilmente os nossos pecados quando só nós próprios os sabemos.”; - Blaise Pascal (1623-1662), filósofo e matemático: “Há duas espécies de homens: uns, justos, que se consideram pecadores, e os pecadores que se consideram justos.”; - Benjamim Franklin (1706-1790), inventor: “Guarda-te da ocasião e Deus te guardará do pecado.”; - Sophie Arnould (1740-1802), soprano: “Há pecados tão agradáveis que, se os confessasse, cometia o pecado do orgulho.”; - Robert Browning (1812-1889), poeta: “A ignorância não é inocência, mas pecado.”; - Kierkgaard (1813-1885), filósofo: Sem pecado, nada de sexualidade, e sem sexualidade, nada de História.  - Pierre Véron (1833-1900), escritor: “O pecado confessado é meio perdoado, mas escondido, é perdoado de todo.”; - Machado de Assis (1839-1908), escritor: “O maior pecado, depois do pecado, é a publicação do pecado.”; - Thomas Hardy (1840-1928), poeta: “É muito mais doce imaginar que estamos perdoados, do que pensar que não pecámos.”; - Friedrich Nietzsche (1844-1900), filósofo: “A falta de confiança entre amigos é pecado que não pode ser repetido, sob pena de ser irremediável.”; - Anatole France (1844-1924), escritor: “Santa mãe de Deus, vós, que haveis concebido sem pecado, concedei-me a graça de pecar sem conceber.”; - Óscar Wilde (1854-1900), escritor: Não peca quem peca por amor. - Teixeira de Pascoaes (1877-1952), poeta: “O pecado é mais fecundo que a virtude.”; - Jorge Luís Borges (1899-1986), escritor: “No passado cometi o maior pecado que um homem pode cometer: não fui feliz.”; - Graham Green (1904-1991), escritor: “A maioria das pessoas prefere confessar os pecados dos outros.”;
Música Portuguesa
A Música Portuguesa considera que o pecado está ausente do amor. O fado “Amar não é pecado” com letra de Moita Girão e música de Pedro Rodrigues foi cantado por fadistas como Mariana Silva e Argentina Santos.  Nele se afirma que “Há quem recorde o passado / Com um desgosto profundo / De ter amado. Porém, / Amar não é um pecado. / Pecado é andar no mundo / Sem ter amor a ninguém.”
A confissão ou melhor a sua ausência também está presente na Música Portuguesa. O fado “Nem às paredes confesso” tem letra de Maximiano de Sousa e música de  Ferrer Trindade e Artur Ribeiro. Foi popularizado por intérpretes como Francisco José e Amália Rodrigues. Diz o refrão: “De quem eu gosto / nem às paredes confesso / E nem aposto / Que não gosto de ninguém / Podes rogar / Podes chorar / Podes sorrir também / De quem eu gosto / Nem às paredes confesso.”
Sabedoria popular
Na gíria popular, a palavra “pecado” é usada em sentido figurado. Assim, “ser os meus pecados” é ser alguém que me causa preocupações. “Pecados velhos” são pecados cometidos há muito tempo. “Por mal dos meus pecados” significa por infelicidade minha. “Ser os pecados de alguém” é causar preocupações. “Vara de bater pecados” é a designação dada a pessoa alta e magra. Na gíria popular, aparece igualmente o termo “confessar”. Alguém “não se confessar” é ser reservado e não exteriorizar os seus sentimentos.
Ao longo dos séculos, fruto da observação, a sabedoria popular consensualizou juízos, os quais condensou em provérbios que chegaram até nós.
Os principais, referentes a pecado” podem assim ser sistematizados: - UNIVERSALIDADE: Ninguém há sem pecado. Ao pecado até os cães ladram. - SABOR: Tudo o que é bom, ou faz mal ou é pecado. Aquilo que sabe bem, ou é pecado ou faz mal. Pecado mortal, sabe bem e faz mal. - FREQUÊNCIA: Humano é pecar, diabólico é perseverar. O primeiro pecado vence a vergonha, o segundo a dissimula, o terceiro a perde. - EVIDÊNCIA: Fugir do juiz é confessar pecado. - DESCULPA: Antes pecar que arder. Fazer o que os outros fazem não é pecado. Onde toda a gente peca, ninguém faz peni­tência. - PERDÃO: Não há pecado que não possa ser perdoado. Pecado calado, meio perdoado. Pecado confessado é meio perdoado. - SINGULARIDADE: Dívidas e pecados, cada um paga pelos seus. - HERANÇA: Os pecados dos nossos avós, fazem-nos eles e pagamo-los nós. - ADEQUAÇÃO: Um pecado, uma penitência. Pecado novo, penitência nova. Pecado velho, penitência nova. Pecado velho, prudência nova. A culpa de um pecado não se paga com a penitência de outro.
Relativamente à “confissão”, o número de provérbios é diminuto e dispensa sistematização, bastando a sua enumeração: Confessa a Deus os pecados teus. Ao confessor e ao letrado confessa teu pecado. Pecado confessado é meio perdoado. Padre mouco não confessa.
À laia de balanço
Chegado a este ponto, creio ser legítimo tirar algumas conclusões. Nem todos vêem as coisas da mesma maneira. O que poderá ser pecado para uns, não é pecado para outros, o que é natural, já que os pressupostos são diferentes. Há que saber viver com isso. É caso para dizer:
- Tu ficas com a tua e eu fico com a minha!

Estremoz, 27 de Outubro de 2019
(Jornal E nº 233, de 14-11-2019)
Publicado inicialmente aqui a 13 de Novembro de 2019 

Fig. 2 - Jorge Branco no decurso da 2.ª Feira de Coleccionismo de Estremoz,
em 21 de Junho de 1997.

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Bonecos de Estremoz: Fátima Estróia


Fátima Estróia (1948- ) na sua oficina-loja, situada na Travessa da Levada, nº 3,
em Estremoz.

CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS
Fotografia de Fátima Estróia, recolhida com a devida vénia do vídeo
“Bonecos de Estremoz - Património Cultural Imaterial da Humanidade”,
da Câmara Municipal de Estremoz.

Fátima da Conceição Madeira da Cruz Estróia é afilhada de Mestra Sabina Santos com quem começou a trabalhar como aprendiza aos 13 anos, ainda a oficina de Sabina era na Rua da Campainha, nº 18 e com Sabina trabalhavam as suas cunhadas e sócias Maria José Cartaxo e Teresa Cid da Conceição. Após a morte desta em 1962, quando mais tarde a sociedade se desfez por vontade de Sabina, Fátima fica a trabalhar com Maria José Cartaxo, mas acaba por se juntar à madrinha, de quem aprendeu todos os segredos da arte.
Depois do 25 de Abril de 1974 interrompeu a produção de Bonecos para ajudar o marido, o alfaiate Rufino Augusto Estróia, num estabelecimento de pronto-a-vestir e alfaiataria. Todavia essa actividade não a motivava, pelo que em 1990 retomou a actividade bonequeira, agora por conta própria, numa oficina-loja situada na Rua Narciso Ribeiro, nº 64, em Estremoz. Dali viria a mudar-se para a Travessa da Levada, nº 3, onde trabalha e comercializa actualmente os seus Bonecos. Estes são também comercializados na loja “Artesanato José Saruga”, no Rossio Marquês de Pombal, 98 A, bem como no Artesanato Santo André, na Rua da Misericórdia, 2, em Estremoz.


 Presépio de 3 figuras. Pintura de Paula Serrano.

 
Ceifeira e pastor de tarro e manta. Pintura de Paula Serrano

Pastor debaixo da árvore. Pintura de Paula Serrano.

Mulher da azeitona e pastor de tarro e manta. Pintura de Paula Serrano.

Mulher a dobar. Pintura de José Carlos Rodrigues. 

Mulher dos enchidos. Pintura de José Carlos Rodrigues.  

Mondadeira e leiteiro. Pintura de Paula Serrano.
  
Mulher a lavar a roupa. Pintura de Paula Serrano.

Bailadeira grande. Pintura de Paula Serrano.

Bailadeira pequena.

O Amor é cego.

Cantarinha enfeitada.

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Deus na boca do Povo


Fig. 1 – Matança do porco. José Moreira (1926-1991).

É arreigada a crença popular em Deus. Atesta-o a multiplicidade e a diversidade das manifestações de literatura de tradição oral: Adivinhas, Lengalengas, Mitologia Popular, Provérbios, Gíria Popular, Alcunhas Alentejanas e Cancioneiro Popular. Todavia, o Deus patente nas convicções populares não será provavelmente o mesmo Deus que é ensinado na Catequese ou pregado e venerado nas Igrejas. Será talvez um outro Deus que à escala humana tem dimensão divina, já que na concepção popular criou o Mundo e tudo o que nele nasce, cresce, se multiplica e morre. Para além disso, o convencimento de que é Ele que assegura o funcionamento ou não de tudo o que existiu, existe e poderá vir a existir. O Povo tem necessidade desse Deus para justificar tudo aquilo que não consegue explicar de outra forma. Trata-se de crenças que lhe brotam à flor do pensamento no decurso do trabalho (Fig. 1), às refeições (Fig. 2) ou no folguedo (Fig. 3). Vou passar algumas delas em revista.      
Adivinhas
Tenho conhecimento destas três: - "Alto está, / Alto mora; / Ninguém o vê, / Todos o adoram." (Deus). - Em que se parece Deus com o Sol? (Em ser só um e ninguém poder passar sem ele). - Qual é a coisa mais antiga? (Deus, porque existe antes do tempo).
Lengalengas
Apenas conheço a lengalenga dos dedos. Começa assim: “Dedo mindinho / Seu vizinho / Pai de todos / Fura bolos / E mata pulgas e piolhos.” E logo conclui: “Este diz: quero pão / Este diz: que não há / Este diz: que Deus o dará / Este diz: que furtará / Este diz: alto lá!”
Mitologia Popular
Existem algumas superstições populares ligadas ao conceito popular de Deus: - Quando o céu é atravessado por uma estrela cadente, deve dizer-se: - “Deus te guie!” – “Deus te guie!”, para que não aconteça mal. - Quando aparece o arco-íris, é sinal que Deus está bem connosco. Enquanto ele aparecer, o mundo não se acaba. - Quando uma pessoa está doente, e se desconfia que foi mal que lhe fizeram, deve dizer-se: “Fulano, (nome da pessoa) / Deus te cheirou, / Deus te criou, / Deus te tire o mal, / Que nesse corpo entrou.” - É bom manter relações com os defuntos, para eles intercederem por nós junto de Deus. Para tal, deve-se pregar um alfinete na roupa do defunto ou atirar-lhe uma mão cheia de terra para cima da cova. - Quando se fala de alguma pessoa morta deve dizer-se: - “Deus te chame lá, que ninguém te chama cá”. - Se se encontrar um corcunda pela manhã em jejum, deve dizer-se três vezes: - “Benza-te Deus, dinheiro fresco nos mande Deus”, porque se recebe dinheiro em breve.
Provérbios
É vasto o número de provérbios referentes a Deus. Uns são diferentes, outros são variantes do mesmo.
Desse amplo número, seleccionei alguns que agrupei por tópicos: - CRIAÇÕES DE DEUS: Com água e com sol, Deus é criador. De nada fez Deus o Mundo. Deus criou o Homem e o português o mestiço. Deus fez as almas aos pares. Deus fez o campo; o Homem a cidade. - PRESENÇA DE DEUS: Cada um em sua casa e Deus na de todos. Deus visita-nos sem bater à porta. - SABEDORIA DE DEUS: A Deus ninguém engana. Deus é quem sabe. Deus escreve por linhas tortas. Deus não dorme. Só Deus sabe o que está para vir. - PODER DE DEUS: A Deus nada é impossível. A Deus poderás mentir, mas não enganar. Deus cura os doentes e o médico recebe o dinheiro. Guerra começada, só Deus sabe quando acaba. O futuro a Deus pertence. Os homens fazem o almanaque e Deus manda o tempo. Quando Deus quer, água fria é remédio. Quando Deus quer, até o vento junta as folhas. Quando Deus quer, os santos ajudam. Sorte, só Deus pode dispor. - JUSTIÇA DE DEUS: A justiça de Deus é infalível. A justiça de Deus tarda mas não falta. Deus é o mesmo para todos. Não fez Deus a quem desamparasse. - AMOR DE DEUS: A quem Deus quer dar vida, a água da fonte é mezinha. A quem Deus quer, até o vento apanha a lenha. Não há melhor amigo que Deus e o dinheiro na algibeira. - BONDADE DE DEUS: Bom é Deus e está fechado no sacrário. De Deus vem o bem e das abelhas o mel. Deus dá a roupa conforme o frio. Deus dá o mal e a mezinha. - AJUDA DE DEUS: A casa é Deus quem a guarda. Cada um trata de si e Deus de todos. Deus ajuda a quem trabalha, que é o capital que menos falha. Deus nos livre de inimizades de amigos. Do falso amigo me guarde Deus. Faz tu e Deus te ajudará. Nem sempre Deus ajuda a quem muito madruga. - DÁDIVAS DE DEUS: Dá Deus asas a quem sabe voar. Dá Deus botas a quem já tem sapatos. Dá deus espeto a quem não tem toucinho. Dá Deus nozes a quem não tem dentes. Deus dá a barba a uns e a vergonha a outros. Deus dá a canga conforme o pescoço. Deus dá as nozes mas não as parte. Deus dá couves a quem não tem toucinho. Deus dá o pão mas não amassa a farinha. Deus o dá, Deus o tira. Quando Deus dá é para todos. Quando Deus manda chuva é para todos nós nos molharmos. - ESPERANÇA EM DEUS: Deus nunca falta aos seus. Deus tarda mas não falta. Para amanhã, Deus dará. Quando Deus tarda é porque vem no caminho. - DEUS E O DIABO: A quem Deus não dá filhos, o diabo dá sobrinhos. Com Deus no rosto e o diabo no coração. Deus criou a uva e o diabo fez o vinho. Deus dá farinha, o diabo furta o saco. Deus os fez e o diabo os juntou.
Gíria Popular
É extenso o número de expressões idiomáticas que substituem os termos usados tradicionalmente. Dentre elas, escolhi as seguintes: - DEUS LHE FALE NA ALMA: Deus o tenha em descanso; - DEUS LHE PONHA A VIRTUDE: Deus o abençoe; - DEUS OS FEZ, DEUS OS JUNTOU: diz-se de um casal que se dá muito bem; - DEUS QUEIRA QUE O BURRO VÁ À FEIRA: Deus queira que as coisas corram bem; - DEUS QUEIRA: oxalá assim seja; - DEUS SEJA LOUVADO: louvor que se ergue a Deus; - DEUS TE DÊ O QUE TE FALTA: diz-se a alguém pouco ajuizado; - DEUS TE LIVRE: exclamação para manifestar o desejo de que alguém não corra perigo; - DORMIR EM DEUS: estar morto; - ESTAR BEM COM DEUS E O DIABO: concordar com campos opostos; - ESTAR COM A VIDA QUE PEDIU A DEUS: viver segundo a sua vontade. - GRAÇAS A DEUS: felizmente; - HOMEM (MULHER) DE DEUS: pessoa piedosa; - IR COM DEUS: retirar-se em paz; - LOUVADO SEJA DEUS: exclamação de regozijo ou gratidão por um acontecimento feliz; - NEM À MÃO DE DEUS PADRE: de modo nenhum; - OH HOMEM (MULHER) DE DEUS: exclamação de espanto perante um acto que não se esperava de alguém; - PÃO POR DEUS: esmola tradicional do Dia de Todos os Santos; - QUANDO DEUS É SERVIDO: ocasionalmente; - QUE DEUS HAJA: diz-se de pessoa falecida; - QUE DEUS NOS ACUDA: exclamação para invocar a intervenção divina; - QUEIRA DEUS: oxalá; - QUERER DEUS PARA SI E O DIABO PARA OS OUTROS: ser egoísta; - ROUPA DE VER A DEUS: a melhor roupa que se tem; - SABE DEUS: exclamação proferida perante factos inexplicáveis; - SE DEUS O(A) DÁ: em abundância; - SE DEUS QUISER: dependendo do poder divino; - SER UM DEUS NOS ACUDA: ser uma grande confusão; - TAMBÉM SER FILHO DE DEUS: ter direito a ser tratado como os demais; - TEMENTE A DEUS: pessoa devota; - TENTAR A DEUS: desafiar a cólera divina; - VIVER COMO DEUS É SERVIDO: sofrer privações com resignação; - VIVER DA GRAÇA DE DEUS: viver da caridade.
Alcunhas Alentejanas
O conceito de Deus está igualmente representado no âmbito das alcunhas alentejanas, ainda que a sua presença seja diminuta, já que apenas são conhecidas as seguintes alcunhas: - DEUS ME LIVRE: Alcunha outorgada a indivíduo que usa frequentemente esta expressão (Estremoz). - DEUS NÃO DORME: Designação dada a idoso internado num lar, o qual quando estava aborrecido, usava aquela expressão, ao mesmo tempo que batia com a bengala no chão (Vendas Novas). - DEUS NOSSO SENHOR: O visado é muito religioso (Alandroal). Epíteto atribuído a um sujeito que está em todo o lado (Arraiolos). - LOUVA-A-DEUS: Epíteto conferido a indivíduo que tem por hábito, pôr as mãos de um modo semelhante às patas de um louva-a-deus (Ferreira do Alentejo). - VALHA-ME DEUS: Denominação atribuída a membros de um conjunto restrito de indivíduos, que no tratamento entre si, escolheram esta forma de tratamento (Estremoz).
Cancioneiro Popular
O Cancioneiro Popular de Deus é tematicamente diversificado e por vezes jocoso. Seleccionei algumas quadras que confirmam esta afirmação: - CRIAÇÃO DE ADÃO: “Quando Deus formou Adão / De um bocado de barro, / Nem as terras davam pão, / Nem o mar era sagrado.” - DISTRIBUIÇÃO DA RIQUEZA: “Bem pudera Deus dar pão, / Na terra sem ser lavrada; / Bem poderá, ainda o digo, / Dar muito a quem não tem nada.” - DECLARAÇÃO DE AMOR: “Impossível, sem ser Deus, / Haver quem de ti me aparte; / Eu não quero nada do mundo, / Só vivo para adorar-te.” - AMOR NÃO CORRESPONDIDO: “Amor com amor se paga, / Porque não pagas amor, / Olha que Deus não perdoa / A quem é mau pagador.” - PEDIDO DE SAÚDE: “O mar pediu a Deus peixes / Para dar ao pescador/ E eu peço a Deus saúde / Para dar ao meu amor.” - PRAGUEJAR POR DESPEITO: “No meio da rua d’reita / Nasceram dois acyprestes: / Lá darás contas a Deus / Da paga que tu me deste.” - PROTECÇÃO DIVINA: “Dizia meu avô torto / Que ao menino e ao borracho, / Não acontecia p’rigo, / Põe-lhes Deus a mão por baixo.”
Conclusão
O presente epítome constitui um ensaio de abordagem ao tema “Deus na boca do Povo”. Visando adequar a dimensão do texto, tive que fazer opções, pelo que é natural que o mesmo seja omisso relativamente a alguns especimenes de literatura de tradição oral. Tal facto não me preocupa sobremaneira, visto que no essencial divulgo aqui a visão possível de “Deus na boca do Povo”, que pode ser compartilhada por todos. Sobre a verosimilhança de tal visão, sou tentado a citar a máxima latina: “Vox populi, vox Dei” (A voz do povo é a voz de Deus).
Estremoz, 7 de Novembro de 2019
(Jornal E nº 234, de 28-11-2019)

Fig. 2 – Cozinha dos ganhões. José Moreira (1926-1991).

Fig. 3 – Bailadeira grande. José Moreira (1926-1991).

domingo, 20 de outubro de 2019

Erros de sacristia


Fig. 1 – Hernâni António Cidade (1887-1975), professor universitário, ensaísta,
historiador e crítico literário, natural do Redondo.


No dia 19 de Agosto de 1946 veio a este mundo uma criança do sexo masculino, o qual sou eu e a quem no dia do baptismo, a madrinha deu o nome de “Hernâni António Carmelo de Matos”. Trata-se de um nome constituído pelo antropónimo composto “Hernâni António” e pelos sobrenomes “Carmelo” e “Matos”. Iremos ver que foi um nome que veio a alimentar uma estória quase tão comprida como a légua da Póvoa.
O antropónimo
Começando pelo antropónimo “Hernâni António”, importa conhecer o porquê e as consequências de ter recebido cada um destes nomes. Em primeiro lugar “Hernâni”. A minha madrinha e tia, pessoa simples do povo e desprovida de conhecimentos literários, desconhecia completamente a existência do drama “Hernâni” da autoria do escritor francês Vítor Hugo. Todavia, era do conhecimento público a existência de um alentejano ilustre, natural do Redondo, de seu nome Hernâni António Cidade (Fig. 1), distinto homem de letras e amiúde falado nos jornais. A minha madrinha terá achado o nome bonito e para mais o nome de um alentejano e tudo. E eu lá fiquei “Hernâni António”. Foi um nome que teve consequências ao longo da minha vida. Primeiramente na vida escolar, pelo facto de me chamar “Hernâni”, palavra começada por “H”, a oitava letra do alfabeto português, então com 23 letras, fazia com que eu não fosse dos primeiros a ser chamado a provas orais. Primeiro iam os Abeis, os Balbinos, os Carlos, os Danieis, os Edgares, os Faustinos e os Gaspares. Só depois ia eu, o que me deixava mais algum tempo para estudar para as orais, afim de poder “tapar buracos” que tivessem ficado abertos durante o ano escolar. Lá diz o provérbio optimista: “Enquanto o pau vai e vem, folgam as costas”. Todavia, as consequências de me chamar “Hernâni” não ficaram por aqui.
Com o desenvolvimento da minha personalidade, adquiri hábitos de leitura e como coleccionador tornei-me bibliófilo. Naturalmente que a minha biblioteca começou então a incorporar entre outras, obras do Dr. Hernâni António Cidade, algumas com dedicatória autógrafa a terceiros. O facto de me chamar “António”, levou-me também a coleccionar iconografia antoniana, nomeadamente a nível de barrística popular estremocense (Fig. 2). A nível bibliófilo, além dos seus Sermões e de biografias que sobre ele têm sido escritas, interesso-me por obras que abordam Santo António na Literatura de Tradição Oral, os aspectos etnográficos das festividades populares do Dia de Santo António, bem como a iconografia antoniana, sobretudo nas suas vertentes pictórica e azulejar.
Significado de Hernâni
O antropónimo “Hernâni” encontra a sua origem em “Hernan”, variante de “Hernando”, versão espanhola de “Fernando”.
Este último nome é uma contracção de “Ferdinando” do latim “Ferdinandus”, que por sua vez proveio do gótico “Ferdinand”, palavra composta de “fardi” (viagem) e “nand” (pronto). O antropónimo “Hernâni”, poderá então significar “pronto/preparado para a viagem".
Por outro lado, “Fernando” pode derivar do alemão “Firthunands”, palavra composta de “firthu” (paz)  e “nands” (audaz). O antropónimo “Hernâni” poderá assim designar "Aquele que se atreve a tudo para conservar a Paz".
O antropónimo Hernâni popularizou-se por ser o pseudónimo do herói e título homónimo da obra teatral do escritor francês Victor Hugo, representada pela primeira vez em 1830 e a partir do qual o compositor italiano Giuseppe Verdi, compôs em 1844 uma ópera em 4 actos.
Significado de António
O antropónimo “António” provém do latim “Antonius”, que significa “digno de apreço” ou “de valor inestimável”. É um dos nomes mais populares da antroponímia portuguesa, devido, sobretudo, a Santo António de Lisboa.
O sobrenome Carmelo
O meu primeiro sobrenome e muito bem, é “Carmelo”, nome de família do meu avô materno, Manuel Carmelo (ferroviário), mais conhecido por “Manuel Alturas”. É um sobrenome que encerra em si várias estórias. A primeira é a sorte de que sendo neto do Manuel Alturas e muito mais alto que ele, nunca ninguém se ter lembrado de me chamar “Monte Carmelo”. A segunda é o facto de eu ter uma caligrafia que mais parece um desenho abstracto. Não porque eu tenha estrabismo, não senhor. Quem tem de me ler é que pode ficar estrábico. Era uma alegria ler as pautas de exame afixadas na Faculdade de Ciências que frequentei, nas quais figurava o meu nome. Raramente aparecia a palavra ”Carmelo”. Esta era substituída por sobrenomes como “Carrelo”, “Carpelo”, “Corvelo”, “Carvalho”, “Camelo”, “Capeto”, “Corneto” e “Carapeto”, constituindo uma cornucópia de sobrenomes espúrios. É claro que nunca me queixei. A culpa era minha e só minha. Desabituado de escrever nos cadernos de duas linhas usados na Instrução Primária, comecei a escrever à rédea solta logo no Liceu. Este facto veio a agravar-se na Universidade, onde a necessidade de rapidamente tirar apontamentos nas aulas para ter por onde estudar, distorceu ainda mais a minha caligrafia. Para além disso, a palavra “Carmelo” aparecia, por diversas vezes, substituída pela palavra “Caramelo” e daí o mal o menos, já que ambas as palavras são variantes do mesmo sobrenome. Todavia, o sobrenome “Carmelo” sugere algo de natureza monástica ao passo que “Caramelo” é um sobrenome polivalente. Tanto designa um rebuçado confeccionado a partir de açúcar queimado, como a água congelada (gelo), alguém de nome desconhecido (sinónimo de tipo ou gajo) ou trabalhador rural do distrito de Coimbra que noutros tempos vinha trabalhar para o Alentejo.
O sobrenome “Carmelo” aparece na genealogia alentejana e para além da família “Carmelo de Matos, existem outras como “Carmelo Grazina”, “Carmelo Morais”, “Carmelo Aires” e “Carmelo Alcaide”.
O sobrenome Matos
Chegámos aqui a um ponto crucial desta crónica e é aqui que “a porca torce o rabo”. Vejamos porquê.
A 1 de Julho de 1923 nasce na aldeia da Cunheira da freguesia e concelho de Chança, uma criança do sexo masculino (o meu futuro pai), que seria o primeiro de 4 filhos de Manuel Sabino (pedreiro) e Antónia Matos (doméstica). À criança foi dado o nome que consta no registo baptismal “João Sabino de Matos”. Trata-se de um facto estranho já que de acordo com a tradição em vigor, consignada na lei, o último sobrenome a atribuir a um recém-nascido deve ser o do pai. De acordo com tal disposição, os meus tios (duas tias e um tio) saíram “Matos Sabino”. Todavia, o meu pai saiu “Sabino de Matos” e não “Matos Sabino”, como se o pai tivesse deixado de ser pai para passar a ser mãe e esta tivesse deixado de ser mãe, para passar a ser pai. Se o caso não se tivesse passado na Igreja, eu diria que tinha sido obra do “Diabo”. Mas não, foi troca dos sobrenomes pelo padre de serviço, quem sabe se às voltas com uma digestão difícil.
O sono de Deus
Reza o adagiário português que “Deus não dorme”. Com o devido e democrático respeito pelas crenças do próximo, não penso que assim seja. Se Deus não dormisse ou pelos menos não estivesse distraído, o padre da Cunheira não teria invertido a ordem dos sobrenomes de família. Creio piamente que o Senhor teria dado no padre um celestial abanão, que o levasse a emendar o erro crasso em que incorreu. Fruto dele, sou “Carmelo de Matos” e não “Carmelo Sabino”. Felizmente que o sobrenome “Matos”, que até está antecedido de um “de”, não se escreve com dois “tt” ou seja “Mattos”. Se assim fosse, algum maldizente daqueles que por aí abundam, poder-se-ia lembrar de me acusar de ser pretensioso, por onomasticamente me travestir em “sangue azul”, que de facto não sou. De salientar, que embora por efeitos práticos, mantenha o nome com um sobrenome errado, para efeitos genealógicos deverei ser encarado como um “Carmelo Sabino” e não como um “Carmelo de Matos”. 
Erro de sacristia
Todas as estórias têm um fim e esta chegou ao fim. Todavia, todas as estórias têm também uma moral. Neste caso, creio ser legítimo concluir que o erro cometido pelo padre foi um “erro de palmatória”, daqueles que levavam os professores do antigamente a dar pelo menos uma palmatoada da praxe em cada mão do aluno com a “Dona Rosa” de uso pessoal. Para além disso, foi um “erro de sacristia” que eu não perdoo e que só o Senhor na sua infinita benevolência poderá perdoar.

Estremoz, 19 de Setembro de 2019
(Jornal E nº 231, de 17-10-2019)


Fig. 2 – Santo António. Imagem devocional em barro de Estremoz, da autoria do
barrista e oleiro Mariano da Conceição (1903-1959). Colecção do autor.