segunda-feira, 17 de abril de 2017

José Letras: Até um dia, Amigo!


José Santos Saramago Letras (1942-2017)

Oh, valha-me Deus!” era a proverbial frase com que o Zé Letras me cumprimentava, sempre que me encontrava pela primeira vez em cada dia. A ela respondia de igual modo, passando a usar a mesma fórmula, sempre que o conseguia surpreender de manhã. Era um género de “Estás bom, pá?” entre amigos que não são de cerimónias.
Acontece que aquela expressão começou a ser utilizada em relação a mim e em relação a ele, por outros frequentadores do Café Alentejano, tais como o Condinho, o Badaró, o Mourinha gordo e o Cainó. Vejam lá vocês, o que o Zé arranjou.
Mas passemos adiante e vamos lá ao que interessa. Estou aqui para falar do Zé Letras, que no passado dia 16 de Março bateu a sola e foi para o outro lado, aquele que dizem que é tão bom que nunca ninguém regressou de lá para contar como era.
Zé Letras era o tratamento dado pelos amigos a quem em 1942 foi baptizado com o nome de José Santos Saramago Letras. José, simplesmente José, tal como Maria é simplesmente Maria. Santos mas poucos, já que não era homem de Igreja. Saramago, porque como a planta do mesmo nome, era espontâneo, vertical, resistente e com raízes profundas. Letras, as da quarta classe antiga, servida por uma memória prodigiosa, que todos apreciavam.
O Zé era um de sete filhos dum casal que comeu o pão que o diabo amassou. Cedo saiu de Estremoz para trabalhar na Cintura Industrial de Lisboa, onde participou nas lutas operárias. Através do Sindicato chegou a visitar alguns países dos então amanhãs que cantam. Aposentado, regressou a Estremoz, onde no Mercado das Hortaliças dava apoio a hortelãos e a regateiros.
O Zé tinha uma irmã casada com um primo meu. Talvez por isso nos tenhamos tornado amigos. E essa amizade era tal que vi o Zé chorar por mim. É que recentemente passei seis meses difíceis a andar só com um pé e com duas canadianas. O Zé encontrou-me um dia de manhã e vieram-lhe as lágrimas aos olhos quando me disse:
- É pá, põe-te bom que eu sou teu amigo e a gente precisa de ti!
Foram palavras que nunca vou esquecer e que revelam o carácter do Zé: uma profunda humanidade e uma alma sensível a povoarem o corpo dum homem, por muitos considerado agreste.
Aquela atitude foi contrastante com a de alguém das minhas relações, cujo nome não é para aqui chamado e que não me atrevo a designar por amigo. A (in)pessoa em questão, já não me encontrava há algum tempo, quando me avistou no Mercado das Velharias, só com um pé e apoiado em duas canadianas. Deu-lhe para fugir de mim, tal como o diabo da cruz. Talvez tenha pensado que eu me tivesse tornado indigente e lhe fosse pedir alguma coisa. 
Na qualidade de informante, o Zé facultou-me dados preciosos sobre o Mercado das Hortaliças em Estremoz, nos anos 60 do século passado. Trataram-se de informações que foi respigar ao arsenal de gavetas da sua abastada memória, as quais tive em conta na redacção dum texto sobre esse mercado, no meu livro “Memórias do Tempo da Outra Senhora”. O Zé serviu também de inspiração para a construção do personagem “Zé Tretas”, utilizado nos textos “Auto da calçada proscrita”, “Auto dos pombos promíscuos”, “Auto do arraial de Santo António” e “Auto das beldroegas”, publicados na coluna O FRANCO ATIRADOR, que desde 2014 mantenho ininterruptamente no jornal E, de Estremoz.
O Zé tinha uma grande admiração por Álvaro Cunhal e nas últimas eleições Presidenciais apoiou Sampaio da Nóvoa, com o qual fomos almoçar a Borba, conjuntamente com o Coelho Ribeiro, a Francisca, o Luís Mariano, o Condinho, o Pedro Silva e o Painha. Mais recentemente, admirava a figura de Catarina Martins, com a qual teve oportunidade de falar, quando ela visitou Estremoz no passado dia 25 de Fevereiro.
Ao almoço, o Zé era comensal do Café Alentejano numa extensa mesa colectiva na qual tenho assento às vezes, conjuntamente com outros companheiros: o Franco, o João Valente, o Gonçalo, o Carola, o Dias, o França, o ti Lapão, o Badaró, o Luís, o Amaro e outros. É como que uma fraternidade de dar ao dente e de molhar a goela na altura própria de aconchegar o estômago, quando a jornada da manhã chega ao fim.
No mesmo local, o Zé integrava também a fraternidade dos petiscos, onde têm assento permanente: o Malacão, o Silva, o Isauro, o Pato, o Vítor, o Lopes e o Bimbas, entre outros, bem como o Gonçalves que já lá está, porque se lembrou de partir há dias.
Da próxima vez que me juntar aos comensais, vou propor um brinde à Memória do Zé. Com tinto, pois claro, que era assim que ele acompanhava a carne, o seu prato predilecto.
Ainda há pouco tempo tínhamos falado da Morte, tal como falávamos da Vida. Expressou então a sua vontade de viver, proclamando:
- Espero que marches tu primeiro!
Afinal, o seu desejo não se cumpriu. Coube-lhe partir primeiro, pelo que apenas me é possível despedir dele, dizendo:
- Até um dia, Amigo! 

sábado, 8 de abril de 2017

Poetas em defesa da olaria de Estremoz - 07


Maria de Santa Isabel (1910-1992).
 Pseudónimo literário de Maria Palmira Osório de Castro Sande Meneses e Vasconcellos
Alcaide, poetisa estremocense. OBRA POÉTICA: - Flor de Esteva (1948); - Solidão Maior
(1957); - Terra Ardente (1961); - Fronteira de Bruma (1997); - Poesia Inédita (A editar).

Pucarinhos de barro

Pucarinhos de barro, quem me dera
Sentir, na minha boca, essa frescura
Da vossa água perfumada e pura,
Que me trás o sabor da primavera!

Quanta boca ansiosa vos procura,
Num símbolo de crença e de quiméra
Simples imagem viva, bem sincera,
Dum mundo de ilusões e de ternura!

Meus santos pucarinhos, milagrosos,
Cumprindo as gratas obras do Senhor,
Dando a beber aos lábios sequiosos

Minha boca vos beija com fervor,
Como se, noutros tempos luminosos,
Beijasse ainda o meu primeiro amor!

quinta-feira, 6 de abril de 2017

Reabilitação urbana da cidade de Estremoz - III


Rossio Marquês de Pombal, em Estremoz.

O usufruto da cidadania passa pelo exercício dos direitos à mobilidade, a  espaços colectivos de fruição universal e à qualidade do ar. Que fazer para os conseguir foi o que me propus aqui analisar.

Uma cidade mais humana
A cidade deve proporcionar aos seus habitantes um sentimento de pertença e de segurança, já que o desfrute da cidadania pressupõe entre outros o direito à mobilidade, a espaços colectivos de fruição universal e à qualidade do ar e da água. Cada um destes direitos merece uma análise mais detalhada. Assim: - DIREITO À MOBILIDADE – A autarquia deve assegurar o direito à mobilidade, em especial da população sénior ou portadora de deficiência física ou doença, disponibilizando transporte público adaptado à realidade local, bem como combatendo a utilização indevida do espaço público, nomeadamente o estacionamento automóvel sem rei nem roque nos passeios, muitas vezes em locais onde nem sequer é permitido estacionar; - ESPAÇOS COLECTIVOS DE FRUIÇÃO UNIVERSAL – Os espaços públicos devem ser livres, inclusivos, acessíveis, ecológicos e de qualidade, propiciadores de interacção social, cultural, geracional e política, com reconhecimento das necessidades específicas e vulnerabilidades, entre as quais há que ter em especial atenção a população mais idosa e com necessidades especiais motivadas por deficiência física; - QUALIDADE DO AR E DA ÁGUA – Os efeitos das alterações climáticas resultantes da poluição, fazem sentir-se a nível local. Não é admissível que alguém polua e contamine bens e recursos comuns. A autarquia deve fiscalizar as fontes de poluição da água, o que na cidade passa pelo combate ao despejo de poluentes nos esgotos. A autarquia deve também dar o seu contributo para a preservação da qualidade do ar, o que passa pela redução das emissões de dióxido de carbono.
     
Um instrumento de concretização
Em Julho de 2016, o Sector de Gestão Urbanística, Planeamento e Projecto Municipal da CME, elaborou um “PLANO DE PORMENOR DE REABILITAÇÃO URBANA – CIDADE DE ESTREMOZ”, visando a captação de fundos comunitários através do programa “Estratégia Europa 2020 – Portugal 2020”.
Entre os dezassete OBJECTIVOS GERAIS do Plano, destaco: “- Promover a sustentabilidade ambiental, cultural, social e económica dos espaços urbanos; - Promover a melhoria geral da mobilidade, nomeadamente através de uma melhor gestão da via pública e dos demais espaços de circulação; - Promover a criação e a melhoria das acessibilidades para cidadãos com mobilidade condicionada.”
Por sua vez, entre os dezasseis OBJECTIVOS ESPECÍFICOS do Plano, saliento: “ - Melhorar o ambiente urbano, promovendo a mobilidade sustentável e a coesão urbana, garantindo uma melhor mobilidade, que contribua para qualidade ambiental e do espaço público, facilitando as deslocações pedonais, limitando o tráfego automóvel de atravessamento e ordenando restritivamente o estacionamento, bem como divulgando pontos de interesse turístico; - Aumentar as áreas de estadia e usufruto do espaço público; - Reabilitar o espaço público, equipamentos e infra-estruturas de suporte, situados a Sul e a Este do Rossio Marquês de Pombal e melhorar as condições de utilização do mercado de sábado”.

Medidas a tomar
Os direitos à mobilidade, a espaços colectivos de fruição universal e à qualidade do ar, estão interrelacionados.
A melhoria da qualidade do ar que respiramos e da qualidade de vida, passa pelo fomento do trânsito pedonal e de velocípedes sem motor, bem como pela diminuição do trânsito automóvel, o que pode ser conseguido pela dissuasão da utilização de veículos poluentes. À semelhança do que se passa noutras cidades, na zona central da cidade com vocação comercial, o estacionamento deve ser pago, salvaguardando residentes e comerciantes, o que longe de prejudicar o comércio tradicional só o potencia e valoriza. Em complemento devem ser criadas bolsas de estacionamento alternativo, na periferia da cidade, tanto para residentes como para visitantes. Com medidas deste tipo devolve-se a cidade aos cidadãos.

Rossio Marquês de Pombal
O Rossio Marquês de Pombal, uma das maiores praças do país, devia ter uma dignidade que não tem. Noutros locais há muito que a praça central se tornou num espaço de convívio cidadão. A talho de foice: Lisboa, Évora, Póvoa de Varzim, etc.
Entre nós, a praça central continua a funcionar como parque de estacionamento caótico, uma vez que por incúria do Município não estão delimitados espaços de estacionamento nem de circulação. A continuar a ser parque de estacionamento deveriam ser supridas aquelas omissões. E é claro que o estacionamento devia ser pago como forma de dissuadir a circulação automóvel no centro da cidade e melhorar a qualidade de vida de todos nós.

quinta-feira, 30 de março de 2017

Reabilitação urbana da cidade de Estremoz - II


Fachada da Igreja do Convento de São Francisco de Assis, em Estremoz.

Os pombos vadios que proliferam na cidade de Estremoz, constituem uma praga atentatória da sanidade, da higiene e do bem-estar dos cidadãos. Urge fazer-lhe frente.

Os pombos vadios
Os pombos vadios (pombos de cidade ou pombos errantes) são o objecto da presente crónica”. Os pombos-correios e os pombos bravos não são para aqui chamados.
Os pombos vadios estão espalhados pela cidade de Estremoz, pondo em causa a sanidade, a higiene e o bem-estar dos cidadãos. Vejamos porquê.
Cada pombo produz cerca de 12 quilos de fezes por ano, contendo 17% de ácido fosfórico e 3,3% de ácido sulfúrico. Algumas dessas fezes são expulsas nos locais onde se asilam, mas tombam também em espaços públicos onde atingem cidadãos e automóveis, assim como espaços privados tais como telhados, varandas e estendais.
As fezes, de natureza ácida, corroem metais, descoram pedras e pinturas de edifícios, apodrecem madeira, danificam coberturas provocando infiltrações, assim como as pinturas dos automóveis de forma irreversível.
As penas, sós ou conjuntamente com as fezes, entopem algerozes, caleiras e ralos, pondo em causa o estado de telhados que vêem a sua capacidade de escoamento diminuída, originando infiltrações no interior dos edifícios.
Os pombos podem também transmitir doenças ao homem. De facto: - A inalação de partículas de poeiras provenientes de excrementos secos, causa infecções agudas no sistema respiratório (criptococose, e histoplasmose), sendo o risco maior nas camadas mais vulneráveis da população: crianças, idosos e pessoas com sistemas imunitários enfraquecidos, como os doentes de cancro ou VIH/SIDA; - A ingestão de alimentos crus ou mal cozinhados, contaminados com fezes de pombos, causa gastroenterites graves; - A inalação de aerossóis das fezes provoca tuberculose aviária; - O contacto com fezes secas, ectoparasitas e penas pode ainda causar problemas alérgicos e respiratórios, entre outros. – A nidificação de pombos por detrás de aparelhos de ar condicionado, contamina a qualidade do ar.

Melhorar o ambiente urbano
Em Julho de 2016, o Sector de Gestão Urbanística, Planeamento e Projecto Municipal da CME, elaborou um “PLANO DE PORMENOR DE REABILITAÇÃO URBANA – CIDADE DE ESTREMOZ”, visando a captação de fundos comunitários através do programa “Estratégia Europa 2020 – Portugal 2020”.
“Melhorar o ambiente urbano” é um dos múltiplos objectivos a atingir através daquele Plano, o qual considera dever ser concretizado através da promoção da “mobilidade sustentável e a coesão urbana, garantindo uma melhor mobilidade, que contribua para qualidade ambiental e do espaço público, facilitando as deslocações pedonais, limitando o tráfego automóvel de atravessamento e ordenando restritivamente o estacionamento, bem como divulgando pontos de interesse turístico.” Acho tudo isto excelente e louvável. Todavia, a meu ver, a melhoria do ambiente urbano deve também ser orientada noutras direcções. Uma delas passa por encarar de frente a praga de pombos vadios que proliferam na cidade de Estremoz. É um problema real a que urge fazer frente em nome da sanidade, da higiene e do bem-estar dos cidadãos. De acordo com a legislação em vigor é o Município quem tem competências para o fazer no exercício das suas atribuições nos domínios da defesa da saúde pública e do meio ambiente. Pois que o faça!

segunda-feira, 27 de março de 2017

Poetas em defesa da olaria de Estremoz - 06


Lúcia Cóias (1934-2023).
Empregada de comércio e poetisa, natural de Estremoz.
LIVROS – Poesia Popular (2015); Rosas Brancas (2016).


As bilhas de Estremoz

Do barro saem as bilhas tão formosas
Pelas mãos do oleiro bem moldadas
De flores, troncos e pedrinhas enfeitadas
Tão bonitas, tão singelas, tão vistosas

Foram noutros tempos, uma fonte de riqueza
Orgulho de Estremoz também outrora
Espalhadas com prazer p’lo mundo fora
Depois de matarem a fome à pobreza

E lá na campina, quando o sol abrasava
P’la charneca, moça morena na bilha levava
A água fresquinha para o cavador

Alegre e serena, escondendo desejos
Matava depois a sede com beijos
Qual Samaritana dando água ao Senhor

Publicado inicialmente em 27 de Março de 2017

domingo, 26 de março de 2017

quinta-feira, 23 de março de 2017

Poetas em defesa da olaria de Estremoz - 05


Maria Guiomar Ávila (1919-1992).
Professora e poetisa, natural de Estremoz.
LIVROS - À janela da Vida (1998).

Barros de Estremoz

Bilha de barro, enfeitada,
Lembras moçoila corada,
De cara fresca e bonita,
Cinturinha fina
E ancas modeladas
No avental de chita!
Bilha de barro, singela
Como a alma do oleiro
Que te desenha e modela!
Basta olhar-te e logo vejo
- Na tua graça e frescura –
Todo o povo do Alentejo:
Pastores de olhos perdidos na lonjura,
Sem lutas nem ambição,
Falando a sós com Deus
Em longas noites e dias
de solidão;
Ceifeiras e mondadeiras,
Simples e joviais,
Cantando para enganar
O cansaço das horas sempre iguais:

"Lá vai o comboio, lá vai,
Lá vai ele a assobiar.
Lá vai o meu lindo amor
Para a vida militar..."

E os ganhões,
Erguendo ao alto as enxadas,
Em longas filas cerradas
(Como um friso de escultura
De antiga tradição)
Pedindo à terra
O tesouro que ela encerra
E que há-de um dia transformar-se em pão.
E o manajeiro,
O ajuda, o maioral...
Todo este povo humilde,
Honesto e leal,
Em ti perpassa
Como um símbolo vivo
Do trabalho e da raça!

Oh minha bilha, enfeitada,
Lembras moçoila corada,
De cara fresca e bonita,
Cinturinha fina
E ancas modeladas
No avental de chita!