José Santos Saramago Letras (1942-2017)
“Oh, valha-me Deus!” era a proverbial frase com que
o Zé Letras me cumprimentava, sempre que me encontrava pela primeira vez em
cada dia. A ela respondia de igual modo, passando a usar a mesma fórmula,
sempre que o conseguia surpreender de manhã. Era um género de “Estás bom, pá?”
entre amigos que não são de cerimónias.
Acontece que aquela expressão começou a ser
utilizada em relação a mim e em relação a ele, por outros frequentadores do
Café Alentejano, tais como o Condinho, o Badaró, o Mourinha gordo e o Cainó.
Vejam lá vocês, o que o Zé arranjou.
Mas passemos adiante e vamos lá ao que interessa.
Estou aqui para falar do Zé Letras, que no passado dia 16 de Março bateu a sola
e foi para o outro lado, aquele que dizem que é tão bom que nunca ninguém
regressou de lá para contar como era.
Zé Letras era o tratamento dado pelos amigos a quem
em 1942 foi baptizado com o nome de José Santos Saramago Letras. José,
simplesmente José, tal como Maria é simplesmente Maria. Santos mas poucos, já
que não era homem de Igreja. Saramago, porque como a planta do mesmo nome, era
espontâneo, vertical, resistente e com raízes profundas. Letras, as da quarta
classe antiga, servida por uma memória prodigiosa, que todos apreciavam.
O Zé era um de sete filhos dum casal que comeu o
pão que o diabo amassou. Cedo saiu de Estremoz para trabalhar na Cintura
Industrial de Lisboa, onde participou nas lutas operárias. Através do Sindicato
chegou a visitar alguns países dos então amanhãs que cantam. Aposentado,
regressou a Estremoz, onde no Mercado das Hortaliças dava apoio a hortelãos e a
regateiros.
O Zé tinha uma irmã casada com um primo meu. Talvez
por isso nos tenhamos tornado amigos. E essa amizade era tal que vi o Zé chorar
por mim. É que recentemente passei seis meses difíceis a andar só com um pé e
com duas canadianas. O Zé encontrou-me um dia de manhã e vieram-lhe as lágrimas
aos olhos quando me disse:
- É pá, põe-te bom que eu sou teu amigo e a gente
precisa de ti!
Foram palavras que nunca vou esquecer e que revelam
o carácter do Zé: uma profunda humanidade e uma alma sensível a povoarem o
corpo dum homem, por muitos considerado agreste.
Aquela atitude foi contrastante com a de alguém das
minhas relações, cujo nome não é para aqui chamado e que não me atrevo a
designar por amigo. A (in)pessoa em questão, já não me encontrava há algum
tempo, quando me avistou no Mercado das Velharias, só com um pé e apoiado em
duas canadianas. Deu-lhe para fugir de mim, tal como o diabo da cruz. Talvez
tenha pensado que eu me tivesse tornado indigente e lhe fosse pedir alguma
coisa.
Na qualidade de informante, o Zé facultou-me dados
preciosos sobre o Mercado das Hortaliças em Estremoz, nos anos 60 do século
passado. Trataram-se de informações que foi respigar ao arsenal de gavetas da
sua abastada memória, as quais tive em conta na redacção dum texto sobre esse
mercado, no meu livro “Memórias do Tempo da Outra Senhora”. O Zé serviu
também de inspiração para a construção do personagem “Zé Tretas”, utilizado nos
textos “Auto da calçada proscrita”, “Auto dos pombos promíscuos”, “Auto do
arraial de Santo António” e “Auto das beldroegas”, publicados na coluna O
FRANCO ATIRADOR, que desde 2014 mantenho ininterruptamente no jornal E, de
Estremoz.
O Zé tinha uma grande admiração por Álvaro Cunhal e
nas últimas eleições Presidenciais apoiou Sampaio da Nóvoa, com o qual fomos
almoçar a Borba, conjuntamente com o Coelho Ribeiro, a Francisca, o Luís
Mariano, o Condinho, o Pedro Silva e o Painha. Mais recentemente, admirava a
figura de Catarina Martins, com a qual teve oportunidade de falar, quando ela
visitou Estremoz no passado dia 25 de Fevereiro.
Ao almoço, o Zé era comensal do Café Alentejano
numa extensa mesa colectiva na qual tenho assento às vezes, conjuntamente com
outros companheiros: o Franco, o João Valente, o Gonçalo, o Carola, o Dias, o
França, o ti Lapão, o Badaró, o Luís, o Amaro e outros. É como que uma
fraternidade de dar ao dente e de molhar a goela na altura própria de
aconchegar o estômago, quando a jornada da manhã chega ao fim.
No mesmo local, o Zé integrava também a
fraternidade dos petiscos, onde têm assento permanente: o Malacão, o Silva, o
Isauro, o Pato, o Vítor, o Lopes e o Bimbas, entre outros, bem como o Gonçalves
que já lá está, porque se lembrou de partir há dias.
Da próxima vez que me juntar aos comensais, vou
propor um brinde à Memória do Zé. Com tinto, pois claro, que era assim que ele
acompanhava a carne, o seu prato predilecto.
Ainda há pouco tempo tínhamos falado da Morte, tal
como falávamos da Vida. Expressou então a sua vontade de viver, proclamando:
- Espero
que marches tu primeiro!
Afinal, o seu desejo não se cumpriu. Coube-lhe
partir primeiro, pelo que apenas me é possível despedir dele, dizendo:
- Até um dia, Amigo!
- Até um dia, Amigo!
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