quinta-feira, 17 de julho de 2014

Primárias? Não, obrigado!


Se há um conceito que me é grato e me está na massa do sangue, é o conceito de companheiros de estrada. Trata-se daqueles com quem gosto de fazer caminhadas conjuntas, não só pela necessidade de fazer pontes com quem pensa de maneira diferente de mim, mas também porque a união faz a força.
Os meus companheiros de estrada ou estão fora do espectro político-partidário ou então distribuem-se ao longo dele. Entre eles estão os socialistas do PS. Um deles, um amigo que muito prezo, convidou-me a participar nas primárias do PS. Ele não levará a mal, mas eu não quero participar nessa luta pela liderança do PS, por três motivos que passo a expor:
Em primeiro lugar, porque António Costa e António José Seguro são duas faces da mesma moeda, o Partido Socialista, que como partido do arco da governação é co-responsável conjunto com a direita instalada no poder, pelo estado a que o país chegou.
Em segundo lugar, é meu entendimento que é aos socialistas do PS e só a eles, que compete decidir quem será o seu próximo Secretário-Geral e candidato a Primeiro-Ministro de Portugal. Lá diz o rifão: “Quem está de fora, racha lenha”. Eticamente não faz sentido, que um não militante do PS, se declare simpatizante ao subscrever a Declaração de Princípios do Partido e com isso possa votar em pé de igualdade com militantes que pagam cotas, vão a reuniões, colam cartazes e fazem trabalho político.
Em terceiro lugar, porque perderia a minha independência ao subscrever a referida Declaração de Princípios. Como é que os meus restantes companheiros de estrada que não são do PS, me passariam a encarar? Certamente que não da mesma maneira que até aí. Eu já não seria ponte entre braços do mesmo rio. Eu teria passado a integrar um dos braços do rio. E essa não é a minha vontade.
Pelas razões expostas, só me resta declinar o convite do meu amigo, dizendo-lhe delicadamente:
- Primárias? Não, obrigado!

quarta-feira, 16 de julho de 2014

Combustão

Imagem transcrita com a devida vénia do blogue O tempo e o deserto

Estremoz, 16 de Julho de 2014, pelas 14 horas. Estão 38,5 º C à sombra. Estamos a caminho de metade da temperatura a que ferve o ângulo recto. É caso para implorar:
- Jesus: Tende piedade de nós. Basta de calor!
Para logo acrescentar de seguida:
- Já nos chega a troika e o governo de Passos Coelho!

domingo, 13 de julho de 2014

Eu e o Palácio Tocha

O autor durante a sua infância, fotografado por seu pai no Jardim, olhando em direcção ao Palácio
Tocha. Fotografia tirada para memória futura, que está agora a cumprir o seu papel.

O Palácio Tocha, situado no Largo D. José I, em Estremoz, foi palco de estórias de infância e de juventude, que povoam a minha memória.
Primeira estória
A primeira estória é uma quase-estória, o que quer dizer que quase não tinha estória para contar. Todavia, passo a contá-la:
Na minha infância, traquinava no jardim, frente ao Palácio e aí o meu pai tirou fotografias para memória futura.
Aquele edifício, mais alto que todos os outros e com um aspecto imponente, despertava a minha atenção. Porém, naquela altura, eu não lhe ligava importância alguma. Eu estava ali, era para a brincadeira. 
Segunda estória
Está relatada na crónica “Dia das mentiras” que integra o meu livro “MEMÓRIAS DO TEMPO DA OUTRA SENHORA/ESTREMOZ-ALENTEJO”, dada à estampa pela Colibri, em 2012.
Como é sabido, o dia 1 de Abril é conhecido por “Dia das mentiras” e é um dia em que por tradição se pregam partidas aos outros. Por ingenuidade, na minha infância fui vítima de brincadeiras do 1º de Abril. Uma delas aconteceu quando com 10 anos de idade, frequentava o 1º ano do Liceu no Colégio de São Joaquim, que funcionava no Palácio Reynolds, mesmo em frente ao Palácio Tocha. No primeiro piso do nº 100A, funcionava a Difarsul, distribuidora de produtos farmacêuticos e químicos. Vejamos o que relato no livro:
No início dum intervalo, um aluno do 5º ano, disse-me assim:
- Enquanto eu aproveito o intervalo para fumar um cigarro, preciso que vás ali à Difarsul e me compres cinco tostões de electricidade em pó, pois como sabes sou interno no Colégio e tenho uma avaria na electricidade lá do quarto. Toma lá o dinheiro e não te demores pá, para chegares antes do toque da sineta para a entrada, senão ainda tens falta.
Eu, porque me dava bem com ele, dispus-me sem hesitações a ser prestável e a ir fazer o avio, até porque a Difarsul, vendedora de produtos químicos, ficava a 100 metros dali. Chegado lá, disse ao que ia, enquanto punha a moeda para pagamento em cima do balcão.
Resposta do funcionário:
- Oh rapaz, guarda o dinheiro e diz a quem te mandou cá que tenha juízo! Fica a saber que electricidade, só por fios. Sabes uma coisa? Caíste numa brincadeira do 1º de Abril.
Cabisbaixo, voltei a correr para o Colégio para não chegar atrasado às aulas. Chegado ao pátio, disse ao colega mais velho:
- É pá, tu enganaste-me! Pregaste-me uma partida, mas toma lá a moeda que é tua.
Ele deu-me uma palmada no ombro e respondeu-me:
- Pois preguei, que é para ver se espertas!
Ficámos amigos à mesma e eu tomei aquela partida como advertência. A partir daí tornou-se difícil pregar-me partidas no 1º de Abril.
Mais tarde, nos anos setenta do século passado e já professor na Escola Industrial e Comercial de Estremoz, ia à Difarsul na qualidade de Director do Laboratório de Química da Escola, tratar da aquisição de reagentes que estavam em falta. Foi nesta época que comecei a admirar os azulejos que ornamentam o Palácio Tocha e são uma das pedras de toque do edifício.
Terceira estória
Tem a ver com as minhas idas ao dentista no decurso da juventude. Onde hoje é o número 100 do Largo de D. José I, situava-se o consultório de dentista do Dr. Vieira da Luz, um homem que apesar de afável, me punha os cabelos em pé, sempre que tinha de lá ir. Apesar de reconhecer a importância da sua missão, o desconforto da minha ida ali, ainda perdura na minha memória.
Em primeiro lugar, o cheiro a desinfectante, que logo à entrada me invadia as narinas. Depois, o ter de me sentar na cadeira que iria ser de tortura. Ao fazê-lo, o meu coração disparava como um cavalo louco. Seguidamente, era a injecção nas gengivas, o brocar ou a separação da gengiva do dente, a que se seguia a utilização de um fórcep para arrancar o dente e, eventualmente, a utilização de uma alavanca. No fim, o bochechar da boca com um desinfectante, cujo sabor me leva a exclui-lo da minha lista de líquidos recomendáveis. E quando as coisas davam para o torto, lá vinham as pontas de fogo para cauterizar as gengivas. Para além da dor que me causavam, ainda me lembro do cheiro a carne queimada, algo de semelhante a cheiro de pombos musgados, para eliminar o resto da penugem.
Eram um suplício, as minhas idas ao dentista no número 100 do Palácio Tocha. Daí que mentalmente tenham sobrevivido como registo forte da minha passagem por ali.
Quarta estória
Quando em 1972, comecei a leccionar na Escola Industrial e Comercial de Estremoz, o meio de transporte utilizado para me deslocar de casa para o trabalho, era a bicicleta a pedais.
Nos finais da década de setenta, achei conveniente passar a andar de automóvel e lá comprei um dois cavalos, pago aos bochechos.
Depois de conduzir um ano sem carta, lá me dispus a ir tirar a carta de condução, para o que me dirigi à Escola de Condução Estremocense, então propriedade do senhor Ramalhinho e instalada no primeiro piso do número 100A do Palácio Tocha. A Escola era um luxo com as paredes decoradas a azulejos, que eram um regalo para a vista.
Por artes mágicas, lá consegui convencer o instrutor a levar-ma a exame de condução com um número mínimo de aulas de código, de que eu não gostava mesmo nada. O que é pior é que eu não estudava patavina em casa, convencido que por as provas serem de resposta múltipla, seria capaz de deslindar a resposta certa. Pois estava redondamente enganado e foi assim que para gáudio dos meus alunos, chumbei duas vezes no exame de código. Foi uma risada geral nas aulas a seguir aos meus chumbos. Alguns alunos disseram-me coisas do tipo:
- O professor diz que a gente não estuda nada e faz exactamente o mesmo. Por isso chumbou.
Respondi então:
- É o que vos vai acontecer a vocês, se continuarem sem estudar.
E as coisas ficaram por ali. O pior ainda estava para vir. O instrutor de condução, senhor Ramalhinho, foi peremptório:
- Professor: fique sabendo que só o levo novamente a exame, depois de assistir a todas as aulas de código.
E que remédio tive eu, senão fazer o que ele me dizia. Com estoicismo lá assisti a todas as aulas de código e ele lá me levou a exame. Desta vez, passei no exame de código e os meus alunos tiveram de guardar o riso, convencidos que teriam oportunidade de fazer uso dele, quando fosse o exame de condução. Mas enganaram-se nas previsões, pois passei logo à primeira. Pudera, eu tinha prática de conduzir há um ano sem carta, o que sendo proibido era uma vantagem. Poupei bastante com as aulas de condução. Já o mesmo não posso dizer das aulas de código.  


 
Sala de aulas da extinta Escola de Condução Estremocense.
Imagem recolhida no Sistema de Referência e Indexação do Azulejo.

quinta-feira, 10 de julho de 2014

Palácio Tocha – Quem lhe acode?

PALÁCIO TOCHA - O aspecto deslavado da fachada e o mau estado das janelas são um cartaz
vaticinador da degradação que por ali grassa. Fotografia de Brados do Alentejo, Julho de 2014.

O Palácio Tocha, no Largo D. José I, 100, em Estremoz, foi classificado como monumento de interesse público. Esse o teor da Portaria 40/2014 do Secretário de Estado da Cultura, publicada no Diário da Republica - 2.ª Serie, Nº 14, de 21-01-2014. O diploma define ainda a zona especial de protecção do monumento.
História dum edifício
Para quem tem acompanhado a novela Belmonte, trata-se do edifício onde supostamente reside a família Milheiro e em cujo rés-do-chão funciona a clínica veterinária da Drª Julieta Milheiro.
Trata-se dum imponente solar setecentista também conhecido por Palácio dos Henriques de Trastâmara, construído no início do século XVIII para residência do capitão Barnabé Henriques e sua família, tendo sido transmitido a herdeiros, passando em meados do séc. XIX para a posse do Eng. José Rodrigues Tocha. Nele se hospedou em 1860, o rei D. Pedro V, quando da sua visita à notável vila de Estremoz. No início do séc. XX funcionou ali o Palace Hotel e a sede do Sindicato Agrícola, fundado em 1907 e antecessor do Grémio da Lavoura. Ali morou o cavaleiro tauromáquico D. Vasco Jardim e foi propriedade da família do Dr. José Filipe da Fonseca, que o vendeu ao actual proprietário, ASSOCIAÇÃO DE COLECÇÕES, constituída em Dezembro de 2005, com NIF 507545389 e sede na Praça Marquês de Pombal, nº 1- 8º, em Lisboa.
O edifício em si
Trata-se de um edifício de três pisos com arquitectura residencial barroca, rococó e neoclássica. Tem planta rectangular, prolongada nas traseiras em duas alas laterais sobre um pátio interior, ao qual se segue um extenso jardim. No interior, ao qual se acede através de vestíbulo calcetado a preto e branco com motivos geometrizantes, destacam-se a escadaria de dois patamares, em mármore, coberta com tecto de estuques, e as salas e corredores forrados por painéis azulejares joaninos, rococós e neoclássicos, representando cenas galantes, mitológicas, alegóricas ou de caça. Nos salões nobres estão sempre presentes estuques, frisos decorados, moldurações em mármore e cerâmicas, ostentando o salão central (Sala das Batalhas), silhares alegóricos a campanhas militares regionais e batalhas da Guerra da Restauração, condizentes com a história local e a condição militar do fundador da casa.
A classificação do Palácio reflecte os critérios constantes do artigo 17.º da Lei 107/2001, de 8 de Setembro, relativos ao carácter matricial do bem, ao seu valor estético, técnico e material intrínseco, e à sua concepção arquitectónica e urbanística.
Implicações da classificação
De acordo com o artigo 21.º da mesma Lei, os proprietários de bens que tenham sido classificados têm o dever de conservar, cuidar e proteger devidamente o bem, de forma a assegurar a sua integridade e a evitar a sua perda, destruição ou deterioração. Devem além disso, observar o regime legal instituído sobre acesso e visita pública, à qual podem, todavia, eximir-se mediante a comprovação da respectiva incompatibilidade, no caso concreto, com direitos, liberdades e garantias pessoais ou outros valores constitucionais.
De acordo com o artigo 33.º da mesma lei, compete ao órgão competente da administração central, regional ou municipal, determinar as medidas provisórias ou as medidas técnicas de salvaguarda indispensáveis e adequadas.
Uma dó de alma
O aspecto deslavado da fachada e o mau estado das janelas são um cartaz vaticinador da degradação que por ali grassa. Vidros partidos numa janela do terceiro piso são um convite à nidificação de aves, entre elas os pombos, uma praga que assola Estremoz. No telhado, a erva é senhora e rainha. Fotografias de Pedro Godinho, colhidas em 2007 e disponíveis no SIPA (Sistema de Informação para o Património Arquitectónico), são reveladoras de infiltrações que há no edifício, fora aquilo que não se vê. Os indícios de infiltrações começam logo no vestíbulo de entrada, são também visíveis no primeiro patamar da escadaria principal e na cobertura da escadaria.
É uma dó de alma ver aquele edifício assim. Gostaríamos que ele tivesse um destino diferente de outros como o edifício da Alfaia, o edifício Luís Campos ou o Palace Hotel, que são uma mancha triste na malha urbana desta urbe transtagana, a quem o nosso conterrâneo, o poeta Silva Tavares chamou um dia “cidade branca”. Aqui fica um registo que gostaríamos de não ter feito.
Quem lhe acode?
Urge travar o estado de degradação do edifício e promover o seu restauro e conservação. O proprietário e a administração pública têm responsabilidades que devem ser assumidas. É que o edifício é uma jóia arquitectónica da cidade e um tesouro em património azulejar, no qual ressalta o envolvimento de Estremoz e do seu termo, na luta pela independência nacional contra o jugo filipino. São páginas de História Regional e Nacional que estão ali contadas.
O vetusto edifício parece pedir socorro. Quem lhe acode? 


PALÁCIO TOCHA -  Vidros partidos numa janela do terceiro piso são um convite à nidificação
de aves, entre elas os pombos, uma praga que assola Estremoz. Fotografia de Brados do
Alentejo, Julho de 2014.
PALÁCIO TOCHA -   No telhado, a erva é senhora e rainha. Fotografia de Brados do Alentejo, Julho
de 2014.
PALÁCIO TOCHA -  Indícios de infiltrações no vestíbulo de entrada. Fotografia de Pedro Godinho, 2007.
SIPA – Sistema de Informação para o Património Arquitectónico.
PALÁCIO TOCHA - Indícios de infiltrações, visíveis no primeiro patamar da escadaria principal.
Fotografia de Pedro Godinho, 2007. SIPA – Sistema de Informação para o Património Arquitectónico.
PALÁCIO TOCHA - Indícios de infiltrações, visíveis na cobertura da escadaria.
Fotografia de Pedro Godinho, 2007. SIPA – Sistema de Informação para o Património Arquitectónico.

quarta-feira, 9 de julho de 2014

5 - Conexão entre patrimónios imateriais da humanidade

Grupo de cantadores.
Ana Bossa (séc. XXI).
Colecção particular.

A identidade cultural alentejana tem a ver com a arte popular, na qual se insere a manufactura dos bonecos de Estremoz. Estes são figuras cerâmicas, geralmente antropomórficas ou zoomóficas, confeccionadas através de práticas ancestrais iniciadas em Estremoz, que remontam aos finais do séc. XVII – princípio do séc. XVIII e que chegaram aos nossos dias.
A identidade cultural do povo alentejano tem igualmente a ver com o cante, que segundo a tese litúrgica do padre António Marvão teve origem em escolas de canto popular fundadas em Serpa, por monges paulistas do Convento da Serra d’Ossa, os quais tinham formação em canto polifónico.
Manuel Ribeiro na "Lembrança dos Cantadores da Aldeia Nova de São Bento, Mértola, Vidigueira e Vila Verde de Ficalho", diz-nos:
Só no Alentejo há o culto popular do canto. Ali se criou o tipo original do “cantador”. Pelas esquinas, altas horas, embuçados nas fartas mantas, agrupam-se os homens: esmorece a conversa, faz-se silencio e de subito, expontâneamente, rompe um coral. É o diálogo em que eles melhor se entendem, é a conversa em que todos estão de acôrdo.
Quem não viu em Beja, em certas ruas lôbregas, em certos recantos que escondem ainda os antros esfumados das adegas pejadas de negras e ciclopicas talhas mouriscas, quem não viu duas bancadas que se defrontam e donde se eleva um canto entoado, solene e soturno, com o quer que seja da salmodia dum côro de monges?
Embora possa cantar só, o alentejano canta sobretudo em coros e esse canto é sério, dolente, compenetrado e mesmo solene, porque o alentejano é lento, comedido e contemplativo, por força do Sol escaldante.
O cante e os bonecos de Estremoz são duas fortes marcas identitárias do Alentejo, qualquer deles candidato a Património Imaterial da Humanidade. Para estabelecer a conexão entre as duas candidaturas, nada melhor que o exemplar do figurado de Estremoz que ilustra a presente crónica.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Estremoz e a Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia

PARTIDA DE VASCO DA GAMA PARA A ÍNDIA EM 1497.
Aguarela de Alfredo Roque Gameiro (1864-1935).
  
A 8 de Julho de 1497, a Armada de Vasco da Gama (1460 ou 1469-1524) parte de Belém, em Lisboa, rumo à Índia. É composta pelas naus São Gabriel, São Rafael e Bério.
De acordo com Rui de Pina (c. 1440-1522), cronista oficial de D. João II (1455-1495) e de D. Manuel I (1469-1521), Vasco da Gama terá sido investido no cometimento do Caminho da Índia, por D. Manuel II, na alcáçova do Castelo de Estremoz e terá transportado com ele um pendão bordado por Senhoras de Estremoz.
No local da partida da Armada, viria a ser construída a Torre de Belém, jóia da Arte Manuelina. À direita do quadro, com um bordão na mão esquerda, está o "velho do Restelo", em torno do qual Camões no Canto IV (estâncias 94-104) de "Os Lusíadas", construiria o chamado "Episódio do Velho do Restelo":

94
Mas um velho, de aspecto venerando,
que ficava nas praias, entre a gente,
postos em nós os olhos, meneando
três vezes a cabeça, descontente,
a voz pesada um pouco alevantando,
que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só de experiências feito,
tais palavras tirou do experto peito:

95
Ó glória de mandar, ó vã cobiça
desta vaidade a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
c'ua aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
que crueldades nele experimentas!

96
Dura inquietação da alma e da vida
fonte de desamparos e adultérios,
sagaz consumidora conhecida
de fazendas, de reinos e de impérios!
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
sendo digna de infames vitupérios;
chamam-te Fama e Glória Soberana,
nomes com quem se o povo néscio engana!

97
A que novos desastres determinas
de levar estes Reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas,
debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos e de minas
d' ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?

98
Mas, ó tu, geração daquele insano
Cujo pecado e desobediência
Não somente do Reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado mais que humano,
Da quieta e da simpres inocência,
Idade d' ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e d' armas te deitou:

99
Já que nesta gostosa vaïdade
Tanto enlevas a leve fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome, esforço e valentia,
Já que prezas em tanta quantidade
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
Temeu tanto perdê-la Quem a dá:

100
Não tens junto contigo o Ismaelita,
com quem sempre terás guerras sobejas?
Não segue ele do Arábio a lei maldita,
se tu pela de Cristo só pelejas?
Não tem cidades mil, terra infinita,
se terras e riqueza mais desejas?
Não é ele por armas esforçado,
se queres por vitórias ser louvado?

101
Deixas criar às portas o inimigo,
por ires buscar outro de tão longe,
por quem se despovoe o Reino antigo,
se enfraqueça e se vá deitando a longe;
buscas o incerto e incógnito perigo
por que a Fama te exalte e te lisonje
chamando-te senhor, com larga cópia,
da Índia, Pérsia, Arábia e da Etiópia"

102
Oh, maldito o primeiro que, no mundo,
nas ondas vela pôs em seco lenho!
Digno da eterna pena do Profundo,
se é justa a justa Lei que sigo e tenho!
Nunca juízo algum, alto e profundo,
nem cítara sonora ou vivo engenho
te dê por isso fama nem memória,
mas contigo se acabe o nome e glória!

103
Trouxe o filho de Jápeto do Céu
o fogo que ajuntou ao peito humano,
fogo que o mundo em armas acendeu,
em mortes, em desonras (grande engano!).
Quanto melhor nos fora, Prometeu,
e quanto para o mundo menos dano,
que a tua estátua ilustre não tivera
fogo de altos desejos, que a movera!

104
Não cometera o moço miserando
o carro alto do pai, nem o ar vazio
o grande arquitector co filho, dando
um, nome ao mar, e o outro, fama ao rio.
Nenhum cometimento alto e nefando
por fogo, ferro, água, calma e frio,
deixa intentado a humana geração.
Mísera sorte! Estranha condição!

Vasco da Gama atingirá Calecut em 1498 e regressará a Lisboa em 1499, onde será coberto de honrarias por D. Manuel I.


  
CHEGADA DE VASCO DA GAMA A CALECUT EM 1498.
Aguarela de Alfredo Roque Gameiro (1864-1935).

segunda-feira, 7 de julho de 2014

O Palácio Tocha na Belle Époque

Fig. 1 – PALÁCIO TOCHA NO INÍCIO DO SÉCULO XX.
Bilhete-postal ilustrado de editor desconhecido.
Colecção do autor.

A imagem da Fig. 1 reproduz um bilhete-postal ilustrado expedido de Estremoz, a 8 de Agosto de 1913, por Frederique da Silva Pinto, para Luiz Pinto Marvão, proprietário dum Armazém de Mobílias, no Porto, a quem solicita um catálogo de preços. O porte do bilhete-postal era 1 centavo e hoje é 0, 42 €, ou seja 8.400 vezes mais. Só por isso, que não por saudosismos balofos, apetece-nos voltar ao tempo da outra Senhora.
Frederique da Silva Pinto era o proprietário do Palace Hotel, que na época funcionava no segundo e terceiro piso do Palácio Tocha e era um Hotel destinado à alta sociedade. Era um luxo pernoitar nele, sobretudo no quarto em que se hospedou em 1860, o Rei D. Pedro V.
O rés-do-chão só tinha uma entrada, correspondente hoje ao número 100-A do Largo D. José I, em Estremoz. Ainda não tinha sido rasgada porta para o nº 100, onde funcionou o consultório do dentista, Dr. Vieira da Luz, nem para o número 100B, onde na telenovela Belmonte, supostamente funcionava a clínica veterinária da Drª Julieta Milheiro. Nessa época funcionava no rés-do-chão esquerdo, a sede do Sindicato Agrícola, fundado a 11 de Março de 1907 e antecessor do Grémio da Lavoura. A direcção do Sindicato, que nesse ano de 1913 realizou em Estremoz uma exposição de gado caprino, era constituída pelos Senhores Roberto Rafael Reynolds, Luís Ferreira de Carvalho, José de Matos Cortes, Joaquim José de Almeida Caramelo e António Sampaio de Sousa Maldonado. A vida do Sindicato teve altos e baixos até que em 1 de Agosto de 1941, passou a integrar a Organização Corporativa da Agricultura, com a designação de Grémio da Lavoura.
Em 1913 estava-se no final da Belle Époque, caracterizada por inovações tecnológicas como o automóvel. Frente ao Palácio Tocha vê-se estacionada uma “Dona Elvira” da época, no sentido contrário àquele em que se fazem actualmente o estacionamento e a progressão do trânsito. Na época e de acordo com a imagem da Fig. 2, os trens puxados a cavalo coexistiam com os automóveis que estacionavam frente ao Palace Hotel, à semelhança do que com o beneplácito das autoridades, acontece ainda hoje nalgumas artérias da cidade.
De salientar que na época, ainda não estava murado o chamado Jardim Eng. José Rodrigues Tocha, levantado pelo proprietário no largo fronteiro. Este começou por se chamar Rossio de São Brás e tem conhecido ao sabor das circunstâncias, designações como Largo D. José I, Largo General Graça e Largo Dragões de Olivença


BIBLIOGRAFIA
[1] - CRESPO, Marques. Estremoz e o seu Termo Regional. Edição do autor. Estremoz, 1950.
[2] – ESPANCA, Túlio. Inventário Artístico de Portugal. Distrito de Évora. Concelhos de Arraiolos, Estremoz, Montemor-o-Novo, Mora e Vendas Novas. I volume. Academia Nacional de Belas Artes. Lisboa, 1975.


Fig. 2 – PALÁCIO TOCHA NO INÍCIO DO SÉCULO XX.
Bilhete-postal ilustrado de editor desconhecido.
Colecção do autor.

Fig. 3 – JARDIM DO PALÁCIO TOCHA NO INÍCIO DO SÉCULO XX.
FREDERIQUE DA SILVA PINTO E FAMÍLIA.
Bilhete-postal ilustrado de editor desconhecido.
Colecção do autor.