domingo, 13 de julho de 2014

Eu e o Palácio Tocha

O autor durante a sua infância, fotografado por seu pai no Jardim, olhando em direcção ao Palácio
Tocha. Fotografia tirada para memória futura, que está agora a cumprir o seu papel.

O Palácio Tocha, situado no Largo D. José I, em Estremoz, foi palco de estórias de infância e de juventude, que povoam a minha memória.
Primeira estória
A primeira estória é uma quase-estória, o que quer dizer que quase não tinha estória para contar. Todavia, passo a contá-la:
Na minha infância, traquinava no jardim, frente ao Palácio e aí o meu pai tirou fotografias para memória futura.
Aquele edifício, mais alto que todos os outros e com um aspecto imponente, despertava a minha atenção. Porém, naquela altura, eu não lhe ligava importância alguma. Eu estava ali, era para a brincadeira. 
Segunda estória
Está relatada na crónica “Dia das mentiras” que integra o meu livro “MEMÓRIAS DO TEMPO DA OUTRA SENHORA/ESTREMOZ-ALENTEJO”, dada à estampa pela Colibri, em 2012.
Como é sabido, o dia 1 de Abril é conhecido por “Dia das mentiras” e é um dia em que por tradição se pregam partidas aos outros. Por ingenuidade, na minha infância fui vítima de brincadeiras do 1º de Abril. Uma delas aconteceu quando com 10 anos de idade, frequentava o 1º ano do Liceu no Colégio de São Joaquim, que funcionava no Palácio Reynolds, mesmo em frente ao Palácio Tocha. No primeiro piso do nº 100A, funcionava a Difarsul, distribuidora de produtos farmacêuticos e químicos. Vejamos o que relato no livro:
No início dum intervalo, um aluno do 5º ano, disse-me assim:
- Enquanto eu aproveito o intervalo para fumar um cigarro, preciso que vás ali à Difarsul e me compres cinco tostões de electricidade em pó, pois como sabes sou interno no Colégio e tenho uma avaria na electricidade lá do quarto. Toma lá o dinheiro e não te demores pá, para chegares antes do toque da sineta para a entrada, senão ainda tens falta.
Eu, porque me dava bem com ele, dispus-me sem hesitações a ser prestável e a ir fazer o avio, até porque a Difarsul, vendedora de produtos químicos, ficava a 100 metros dali. Chegado lá, disse ao que ia, enquanto punha a moeda para pagamento em cima do balcão.
Resposta do funcionário:
- Oh rapaz, guarda o dinheiro e diz a quem te mandou cá que tenha juízo! Fica a saber que electricidade, só por fios. Sabes uma coisa? Caíste numa brincadeira do 1º de Abril.
Cabisbaixo, voltei a correr para o Colégio para não chegar atrasado às aulas. Chegado ao pátio, disse ao colega mais velho:
- É pá, tu enganaste-me! Pregaste-me uma partida, mas toma lá a moeda que é tua.
Ele deu-me uma palmada no ombro e respondeu-me:
- Pois preguei, que é para ver se espertas!
Ficámos amigos à mesma e eu tomei aquela partida como advertência. A partir daí tornou-se difícil pregar-me partidas no 1º de Abril.
Mais tarde, nos anos setenta do século passado e já professor na Escola Industrial e Comercial de Estremoz, ia à Difarsul na qualidade de Director do Laboratório de Química da Escola, tratar da aquisição de reagentes que estavam em falta. Foi nesta época que comecei a admirar os azulejos que ornamentam o Palácio Tocha e são uma das pedras de toque do edifício.
Terceira estória
Tem a ver com as minhas idas ao dentista no decurso da juventude. Onde hoje é o número 100 do Largo de D. José I, situava-se o consultório de dentista do Dr. Vieira da Luz, um homem que apesar de afável, me punha os cabelos em pé, sempre que tinha de lá ir. Apesar de reconhecer a importância da sua missão, o desconforto da minha ida ali, ainda perdura na minha memória.
Em primeiro lugar, o cheiro a desinfectante, que logo à entrada me invadia as narinas. Depois, o ter de me sentar na cadeira que iria ser de tortura. Ao fazê-lo, o meu coração disparava como um cavalo louco. Seguidamente, era a injecção nas gengivas, o brocar ou a separação da gengiva do dente, a que se seguia a utilização de um fórcep para arrancar o dente e, eventualmente, a utilização de uma alavanca. No fim, o bochechar da boca com um desinfectante, cujo sabor me leva a exclui-lo da minha lista de líquidos recomendáveis. E quando as coisas davam para o torto, lá vinham as pontas de fogo para cauterizar as gengivas. Para além da dor que me causavam, ainda me lembro do cheiro a carne queimada, algo de semelhante a cheiro de pombos musgados, para eliminar o resto da penugem.
Eram um suplício, as minhas idas ao dentista no número 100 do Palácio Tocha. Daí que mentalmente tenham sobrevivido como registo forte da minha passagem por ali.
Quarta estória
Quando em 1972, comecei a leccionar na Escola Industrial e Comercial de Estremoz, o meio de transporte utilizado para me deslocar de casa para o trabalho, era a bicicleta a pedais.
Nos finais da década de setenta, achei conveniente passar a andar de automóvel e lá comprei um dois cavalos, pago aos bochechos.
Depois de conduzir um ano sem carta, lá me dispus a ir tirar a carta de condução, para o que me dirigi à Escola de Condução Estremocense, então propriedade do senhor Ramalhinho e instalada no primeiro piso do número 100A do Palácio Tocha. A Escola era um luxo com as paredes decoradas a azulejos, que eram um regalo para a vista.
Por artes mágicas, lá consegui convencer o instrutor a levar-ma a exame de condução com um número mínimo de aulas de código, de que eu não gostava mesmo nada. O que é pior é que eu não estudava patavina em casa, convencido que por as provas serem de resposta múltipla, seria capaz de deslindar a resposta certa. Pois estava redondamente enganado e foi assim que para gáudio dos meus alunos, chumbei duas vezes no exame de código. Foi uma risada geral nas aulas a seguir aos meus chumbos. Alguns alunos disseram-me coisas do tipo:
- O professor diz que a gente não estuda nada e faz exactamente o mesmo. Por isso chumbou.
Respondi então:
- É o que vos vai acontecer a vocês, se continuarem sem estudar.
E as coisas ficaram por ali. O pior ainda estava para vir. O instrutor de condução, senhor Ramalhinho, foi peremptório:
- Professor: fique sabendo que só o levo novamente a exame, depois de assistir a todas as aulas de código.
E que remédio tive eu, senão fazer o que ele me dizia. Com estoicismo lá assisti a todas as aulas de código e ele lá me levou a exame. Desta vez, passei no exame de código e os meus alunos tiveram de guardar o riso, convencidos que teriam oportunidade de fazer uso dele, quando fosse o exame de condução. Mas enganaram-se nas previsões, pois passei logo à primeira. Pudera, eu tinha prática de conduzir há um ano sem carta, o que sendo proibido era uma vantagem. Poupei bastante com as aulas de condução. Já o mesmo não posso dizer das aulas de código.  


 
Sala de aulas da extinta Escola de Condução Estremocense.
Imagem recolhida no Sistema de Referência e Indexação do Azulejo.

4 comentários:

  1. Obrigada pela partilha das suas saborosíssimas memórias ! Ainda bem que as temos, na nossa idade, pois muitos já nada conseguem lembrar!
    Tenho consigo a paixão imensa pelos azulejos e muito me apraz ver a dedicação com que deles fala e como os mostra a todos nós!
    Obrigada por isso!

    Um abraço
    mf/.

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    1. Fernanda:
      Obrigado pelo seu comentário.
      Um abraço para si, também.

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  2. Já tinha lido há alguns dias. Voltei a ler. Este é um dos muitos condenados. Acho que temos todos o mesmo fim. Só que aos humanos não é possível valer Aos MONUMENTOS, são os homens, que não acodem.

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