quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

26 – Santa Bárbara


Santa Bárbara. Sabina Santos (1921-2005). Colecção particular.

Diz a lenda que Santa Bárbara nasceu e viveu no final do séc. III, na cidade de Nicomédia, na actual Turquia. Era uma jovem muito bela. Dióscoro, seu pai, era um pagão rico que a desejava proteger dos pretendentes. Por isso encerrou-a numa torre, onde mandou abrir duas janelas, mas entretanto teve que viajar. Quando regressou, a filha tinha-­se feito baptizar e mandara rasgar uma terceira janela, em honra à Santíssima Trindade. O pai ficou irado, pelo que ela teve de fugir, abrindo-se os rochedos para que ela passasse. Descoberta, foi capturada pelo progenitor e levada a tribunal. Aí foi condenada a ser exibida nua por todo o país e padeceu toda sorte de suplícios, acabando por ser executada pelo próprio pai, que a degolou com uma espada. Logo após a sua morte, um raio fulminou o filicida.
Santa Bárbara é Protectora contra relâmpagos e tempestades, bem como Padroeira de artilheiros, mineiros, geólogos, engenheiros militares, armeiros e de todos aqueles que trabalham com o fogo. É igualmente Padroeira de profissões relacionadas com torres e a sua construção (cabouqueiros, pedreiros, arquitectos) e ao seu uso como prisão (presidiários e guardas de prisão).
Os atributos de Santa Bárbara são numa mão (geralmente a direita) a palma do martírio e na outra a torre com três janelas onde o pai a encerrou. A torre pode aparecer também a seus pés e pode segurar a espada com que foi degolada ou segurar o cálice com a hóstia.
Santa Bárbara, cuja festa litúrgica ocorre a 4 de Dezembro, tem considerável presença na tradição oral portuguesa. A nível de adágios: “Só se lembra(m) de Santa Bárbara, quando faz trovões". Está igualmente presente no cancioneiro popular de Angra do Heroísmo:

“Ò Senhora Santa Barba,
Senhora dos corações,
Ninguém se lembra dela
Senão quando faz trevões”.

Existem também orações populares como esta:

“Santa Bárbara Bendita,
Que no céu está escrita
com papel e água benta,
nos livre desta tormenta”.

No que respeita a superstições populares, existia a crença de que as palmas e os ramos de alecrim, bentos na Procissão do Domingo de Ramos, afastavam as trovoadas. De resto, era hábito tocar os sinos durante as trovoadas, pois havia a crença popular de que o toque fazia afastar os raios e os trovões. Em Castedo do Douro, um dos sinos da Igreja até tem gravado o nome de Santa Bárbara. Actualmente, as orações e o toque de sinos foram substituídos por pára-raios, o que levou Guerra Junqueiro (1850-1923) a escrever:

“Pára-raios nas Igrejas,
É para mostrar aos ateus,
Que os crentes quando troveja,
Não têm confiança em Deus”.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente a 21 de Maio de 2015

quarta-feira, 3 de dezembro de 2025

8.º Aniversário dos Bonecos de Estremoz enquanto Património da UNESCO



Transcrito com a devida vénia de
newsletter do Município de Estremoz,
de 28 de Novembro de 2025

No domingo, dia 7 de dezembro de 2025, comemora-se o 8.º aniversário da Inscrição da Produção de Figurado em Barro de Estremoz, na Lista Representativa de Património Cultural Imaterial da Humanidade da UNESCO.

Para celebrar a data, o Município de Estremoz organizou as seguintes atividades:

Centro Interpretativo do Boneco de Estremoz

- 16:00 horas - Discursos institucionais

- 16:15 horas - Entrega da Certificação à barrista Ana Godinho

- 16:20 horas - Apresentação da Rota do Boneco de Estremoz, Hugo Guerreiro Chefe da Divisão de Cultura, Desporto e Juventude

- 16:40 horas - A Confraria do Boneco de Estremoz: 2025 e 2026, Alexandre Correia, Grão-Mestre da Confraria

Estremoz Hotel

- 17:30 horas - Inauguração da exposição "Figurado em Barro de Estremoz", fotografia de Francisco Matias

 Venha celebrar conosco!

Entrada gratuita.

Hernâni Matos

terça-feira, 2 de dezembro de 2025

XIX Exposição de Presépios de Artesãos de Estremoz



Transcrito com a devida vénia de
newsletter do Município de Estremoz,
de 25 de Novembro de 2025

A Galeria Municipal D. Dinis irá receber, a partir do dia 29 de novembro, a XIX Exposição de Presépios de Artesãos de Estremoz.

Esta mostra contará com cerca de 30 Presépios, produzidos com diversos materiais, dos artesãos: Afonso Ginja, Ana Catarina Grilo, Ana Godinho, António Moreira, Carlos Alberto Alves, Conceição Perdigão, Fátima Lopes, Francisca Carreiras, Henrique Painho, Inocência Lopes, Irmãs Flores, Isabel Pires, Jorge Carrapiço, Jorge da Conceição, Luísa Batalha, Madalena Bilro, Manuel Broa, Maria José Camões, Perfeito Neves, Ricardo Fonseca, Sara Sapateiro, Sandra Cavaco e Vera Magalhães.

A exposição poderá ser visitada até dia 6 de janeiro de 2026, com entrada gratuita, numa organização da Câmara Municipal de Estremoz.

Não perca!

Hernâni Matos

Searinhas do Menino Jesus (2ª edição)


Searinha do Menino Jesus.
Fotografia de Carlos Dalves (http://olhares.aeiou.pt)

Uma tradição que ainda hoje se cumpre no Alentejo é a sementeira das “Searinhas do Menino Jesus”, já referida por A. Thomaz Pires (2) e que se efectua no dia 8 de Dezembro, dia de Nossa Senhora da Conceição.
Consiste esta tradição em semear em pequenos recipientes (pires ou chávenas) com terra, alguns grãos de trigo que são humedecidos com água para germinar, após o que são diariamente borrifados com a mesma, a fim de os rebentos se manterem viçosos.
As searinhas, dedicadas ao Menino Jesus, são utilizadas no presépio e no oratório, assim como são levadas à mesa da Consoada, na crença de que o Menino Jesus abençoe o trigo, de modo que nunca falte pão em casa e na mesa. No dia de Reis (6 de Janeiro), as searinhas devem ser transplantadas para a terra.
Thomaz Pires cita D. José Coroleu (Las supersticiones de la humanidad) quando afirma que as searinhas “(…) recordam as sementes semeadas nos testos pelas mulheres Phrygias, e que levavam ao terrado para germinarem aos raios do Sol.”.
A tradição teve início no século XVI quando o cardeal e teólogo ascético francês Pierre de Bérulle (1575-1629) decidiu adornar o presépio com searinhas e laranjas para que as sementeiras e árvores de fruto fossem abençoadas e dessem muito durante o ano inteiro.
Parece não restarem dúvidas que se trata de mais um aproveitamento cristão duma tradição pagã. Na verdade, a festa pagã do solstício de Inverno que comemorava o renascimento do Sol, foi substituída pela festa cristã do Natal, que celebra o nascimento de Cristo. Daí que usos e costumes que lhe estavam associados tenham sido adaptados ao Cristianismo, pelo que são reminiscência das antigas crenças.

BIBLIOGRAFIA
(1) - PESTANA, M. Inácio. Etnologia do Natal Alentejano. Assembleia Distrital de Portalegre. Portalegre, 1978.
(2)  – PIRES, A. Thomaz. A noite de Natal, o Anno Bom e os Santos Reis. 2ª edição. António José Torres de Carvalho. Elvas, 1928

Publicado inicialmente em 4 de Dezembro de 2013

segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Os canudos de lume, artefactos de arte pastoril

 

 Fig.1 – Autor desconhecido. Incisões em baixo relevo sobre madeira. Decorado
com motivos geométricos e florais, distribuídos por faixas no  sentido do
comprimento. Tricromia verde – vermelho – preto.  60,5 cm x 3 cm.

Canudos de lume
da Colecção Hernâni Matos

À lareira, no Alentejo de outros tempos
No Alentejo de antanho, quando chegava o Inverno seroava-se à lareira, o que era prática corrente, tanto na casa dos camponeses como dos senhores da terra. As noites eram longas e o frio era de rachar, sobretudo nas casas dos pobres, menos confortáveis, muitas vezes com telhados de telha-vã [i] e pavimentos que eram de tijoleira e muitas vezes de laje de xisto.
O lume que crepitava frente às “bonecas”[ii] aquecia os membros da família sentados num “mocho”[iii] ou num “burro”[iv]. Simultaneamente, o fumo ascendente da lareira ia curar os enchidos do fumeiro suspensos de traves no interior da chaminé. Isto, é claro, se a família era daquelas que tinham posses para fazer a “matança do porco”, o que não constituía regra geral, nem lá perto.
Era à volta da lareira que a família fazia o balanço desse dia, se falavam dos planos para o dia seguinte, se evocavam aqueles que já tinham partido e os mais velhos davam conselhos aos mais novos. Era também à lareira que para “passar o tempo”, era transmitida de pais para filhos, a rica tradição oral que integra a matriz da nossa identidade cultural: estórias, cancioneiro popular, adivinhas, provérbios, lengalengas, rezas, etc.

Os canudos de lume
À medida que o tempo passava, a lenha ia sendo consumida e o lume ficava mais fraco. Tornava-se necessário reavivá-lo, acrescentando mais lenha ou/e atiçando o fogo, o que se conseguia utilizando o “canudo de lume”.
Este é um utensílio tradicional de forma tubular, utilizado como soprador de lume, o qual permite direccionar o ar para as brasas ou para a lenha, visando avivar o fogo. Para tal, o utilizador sopra na extremidade do orifício mais largo, saindo o ar pela extremidade oposta com o orifício mais estreito, em direcção ao lume.
O canudo de lume pode ser de metal, de madeira ou de cana, perfuradas. Nestes dois últimos casos, a superfície dos canudos de lume pode se encontrar finamente trabalhada e decorada, o que torna os canudos de lume, artefactos de arte pastoril.


Hernâni Matos


[i] O telhado de telha-vã era um tipo de cobertura em que as telhas de canudo (telhas mouriscas) de barro eram aplicadas directamente sobre a estrutura de suporte (barrotes e ripas de madeira), sem a instalação de qualquer forro por baixo.
Este tipo de cobertura favorecia a ventilação natural do espaço situado abaixo, o que era benéfico no Verão mas péssimo no Inverno, além de que oferecia fraco isolamento acústico, o que constituía um enorme inconveniente em períodos de ventania.
[ii] Ornamento interior das chaminés.
[iii] Banco baixo, confeccionado em madeira e com travessas para fortalecer os pés, empalhado em buinho.
[iv] Também designado por “tripeça”, já que é um assento de três pés e sem encosto, confeccionado toscamente, a partir de tronco de sobreiro ou de azinho.


Fig. 2 – Autor desconhecido. Incisões em baixo relevo sobre madeira. Decorado
com motivos geométricos e florais, distribuídos por faixas no sentido do comprimento.
Pentacromia verde – vermelho – azul – amarelo – laranja. 60,5 cm x 3 cm.

Fig. 3 – João Catarino (Orada). Incisões em baixo relevo sobre madeira. Decorado
com motivos geométricos, distribuídos por faixas no sentido do comprimento.
81 cm x 2,5 cm.

Fig. 4 – João Catarino (Orada - Borba). Incisões em baixo relevo sobre cana.
Decorado com motivos geométricos distribuídos por faixas no sentido do
comprimento. 87 cm x 2,5 cm.

Fig. 5 – Carlos Damas (Alandroal). Incisões em baixo relevo sobre madeira.
Decorado com motivos geométricos, distribuídos por faixas no sentido do
comprimento. Heptacromia verde – vermelho – azul – amarelo – rosa - lilás – preto. 
69 cm x 2 cm. Mais estreito numa das extremidades que na outra.

Fig. 6 – Carlos Damas (Alandroal). Incisões em baixo relevo sobre madeira.
Decorado com motivos geométricos, distribuídos por faixas no sentido do
comprimento. 53,5 cm x 2.5 cm.

Fig. 7 – Teresa Serol Gomes (Estremoz). Incisões em baixo relevo sobre madeira.
Decorado com motivos florais que se distribuem no sentido do comprimento.
66,5 cm x 2 cm.

Fig. 8 – Teresa Serol Gomes (Estremoz). Incisões em baixo relevo sobre madeira.
Decorado com motivos fitomórficos, zoomórficos e antropomórficos que se distribuem
no sentido do comprimento. Madeira escurecida com aguada de viochene.
69 cm x 1,9 cm. Mais estreito numa das extremidades que na outra.

Fig. 9 – Joaquim Rolo (Glória – Estremoz). Incisões em baixo relevo sobre madeira.
Decorado com motivos geométricos e florais distribuídos por faixas no sentido do
comprimento. Madeira escurecida com aguada de viochene. 65,5 cm x 2,2 cm.
A extremidade da saída do ar termina em bisel.

Fig. 10 – Joaquim Rolo (Glória – Estremoz). Incisões em baixo relevo sobre madeira
Decorado com motivos geométricos, florais, zoomórficos e antropomórficos distribuídos
por faixas no sentido do comprimento. A decoração com motivos zoomórficos e
antropomórficas recorre a excrescências da madeira. 74 cm x 3 cm.
Mais estreito numa das extremidades que na outra.

Não sei quantas almas tenho - Fernando Pessoa


Fernando Pessoa, Bernardo Soares, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. Cartoon de Rui Pimentel,
impresso na folha relativa a este mês de Maio,  num calendário editado pelo CNBDI - Centro
Nacional de Banda Desenhada e Imagem (Amadora).


Não sei quantas almas tenho
Fernando Pessoa (1888-1935)

Não sei quantas almas tenho.
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.

Fernando Pessoa (1888-1935)


Publicado inicialmente em 7 de Dezembro de 2015

#Poesia Portuguesa - 072

sábado, 29 de novembro de 2025

Quem não tem que fazer, faz colheres




Se é certo que é isso que diz o rifão, o que não é menos certo é que quem o fazia, não o fazia de qualquer maneira. Começava logo na escolha da madeira, sendo sabido que no Alentejo, as madeiras que o pastor tinha à sua disposição, eram as fornecidas pelas árvores ou arbustos existentes na região: azinheira, buxo, carvalho, castanho, cerejeira, cipreste, esteva, figueira, laranjeira, nespereira, nogueira, oliveira, piorno, sabugo, sobro, vimeiro.
O pastor escolhia um pau de qualidade, sem nós nem veios que viessem a fender depois da obra acabada. Naturalmente que o tamanho e o calibre do pau tinham a ver com aquilo que se ia fazer.
Um pastor adestrado a fazer colheres, começava por escolher um pau que evidenciasse o característico perfil em S, o que tinha a ver com as características ergonómicas que a colher devia reunir. Estas, podem-se resumir no seguinte: necessidade e conveniência de a concha fazer um ângulo com o cabo da colher, que na outra extremidade deve fazer um ângulo em sentido inverso. O cabo deve, de resto, ser facilmente adaptável à mão do utilizador.
É sabido que “A necessidade é mestra de engenho.” Daí que o pastor tenha empiricamente adquirido competências que se traduziram na capacidade de conceber colheres (e outros objectos) que fossem ergonómicos, isto é com qualidade de adaptação ao seu utilizador e à tarefa que ele tinha de realizar. Daí que a colher tivesse de ser usável com eficácia, eficiência e satisfação. Com eficácia, porque distintos utilizadores eram capazes de se servir delas com bons resultados. Com eficiência, já que a sua utilização exigia pouco tempo e esforço físico. Com satisfação, tendo em conta a facilidade de utilização com parcos recursos de tempo e de esforço físico.
Os utensílios usados na manufactura da colher eram a navalha ou a faca, o compasso, o ponteiro e a legra.
Com o ponteiro ou o lápis era esboçada a geometria geral da colher, sendo o corte da madeira efectuado com a navalha, ao passo que o côvado da colher era escavado com a legra, utensílio constituído por uma navalha de barba, dobrada em gancho numa das extremidades.
As colheres que eram para ser transportadas pelo utilizador tinham o cabo mais curto, ao passo que aquelas que eram para ser usadas em casa, podiam ter um cabo maior.
Da máxima relevância era a concha que tinha de ter uma capacidade adequada à sua função. E não podemos esquecer que nas herdades, muitas vezes se comia dum recipiente comum – o barranhão. Isto implicava que a colher usada tivesse a maior concha possível, tendo como única limitação, o caber na boca de quem a usava. Assim se conseguia numa única colherada, levar a maior quantidade possível de comida à boca. O que era importante em tempos de miséria e de fome.
Depois de por corte do pau ter sido conseguida a forma geral da colher, esta estava apta a ser decorada. Para tal e também com o auxílio do ponteiro ou do lápis, esboçava-se o desenho a executar, gravado ou escavado. Os motivos eram os mais diversos: ramagens, folhas, flores, animais, estrelas, cruzes, motivos geométricos como o círculo, o triângulo ou o quadrado, assim como rosetas, arabescos, cordas, zig zags, signo saimão, imagens religiosas, etc. O traçado perfeito, rigoroso e absolutamente simétrico de rosetas, de estrelas e do signo saimão não dispensava o uso do compasso.
Os motivos usados na decoração tinham não só a ver com o imaginário do criador, bem como com as simbologias que lhe estavam subjacentes, na perspectiva também do utilizador da colher ou atendendo a quem ela podia ser oferecida: à conversada, à esposa ou o que não era raro, ao patrão.
Em geral, apenas era decorado o cabo da colher, o qual além de poder ser gravado ou escavado, podia ser recortado nos bordos e/ou no interior. O cabo da colher podia mesmo apresentar uma ou mais partes móveis, tais como pequenos anéis móveis ao longo duma haste longitudinal fazendo parte integrante do cabo ou esferas móveis encerradas no próprio cabo. Naturalmente que esta requintada e engenhosa decoração com recurso a partes móveis era exclusiva de colheres que se ofereciam como presente a alguém pelo qual se nutria estima ou amor ou, perante o qual se estava numa posição subalterna. Por vezes, nas costas do cabo da colher, eram gravadas as iniciais de quem a tinha feito ou a data em que tinha sido acabada. 
Há colheres que pela complexidade da sua concepção e pelo minucioso rendilhado da sua decoração, são não só jóias de beleza ímpar dentro da arte pastoril, como também autênticos monumentos erigidos em memória dos seus criadores.
A diversidade de solicitações de utilização da colher está na génese de diversas tipologias, que sistematizámos assim:
- Colher de uso corrente
- Colher de porqueiro
- Colher para prova de comida
- Colher para prova de vinhos
À excepção da colher de porqueiro, todas as colheres eram feitas de um único pau, não havendo nunca colagem de componentes.
Vejamos alguns exemplares dos diferentes tipos de colheres:

COLHER DE USO CORRENTE

4,5 x 2,5 x 24,5 cm. Em madeira, com forma antropomórfica, que é uma figura feminina. A postura hierática faz lembrar uma divindade egípcia. A argola superior destinada a prender num gancho ou num prego, faz lembrar o resplendor dum santo e confere imediatamente um espírito de santidade ou de pureza à imagem da mulher.
Curiosa a representação arbustiva que vai dos genitais aos seios. O ventre da mulher é como se fosse um vaso com ranhura, a partir do qual desabrocham ramos que florescem nos seios. Parece que a escultura quer dizer que o ventre da mulher é o vaso de onde nasce a vida e que os seios são as flores da mulher.
Madeira transformada em poesia pelas mãos hábeis dum bordador de solidões que doem. Daí o rifão: "Quem não tem que fazer, faz colheres."

COLHER DE PORQUEIRO 

[5 x 3 x 13,5 cm (fechada) e 5 x 3 x 19,5 m aberta)]. Em madeira, constituída por duas metades articuladas em torno de um eixo que é um simples prego, aparado. Numa das metades, a que incorpora a concha da colher, a mesma está ligada a uma haste que encaixa nas duas hastes da outra metade, que compreende a tampa da colher. Quando esta se encontra aberta, a tampa funciona como cabo. Porém, quando se fecha, passa a exercer a sua função.
A metade da concha está decorada no bordo superior da haste com um duplo zig zag. Quanto à metade da tampa está decorada com motivos florais nas duas faces e com zig zag simples, quer na parte superior, quer na parte inferior das duas hastes que a suportam.
Fechada, a colher era transportada no chapéu do utilizador, com a tampa encaixada entre a fita e o chapéu.
Prática, funcional e ergonómica.

COLHER PARA PROVA DE COMIDA

19,5 x 1 x 8,5 cm. Em madeira. Constituída por duas conchas ligadas através duma haste com um rego longitudinal e com um cabo perpendicular à haste, por onde era pegada por quem a utilizava.
A concepção e utilização de uma colher com esta tipologia, remonta à época em que havia o receio de contágio por tuberculose. Deste modo, quem cozinhava a comida dos ganhões, recolhia a comida a provar com uma das conchas e inclinando a colher, fazia-a escorrer através do rego para a outra concha, donde era levada à boca para provar.
A concha que era levada à boca nunca entrava em contacto com a comida no recipiente onde esta estava a ser confeccionada. Assim se procurava evitar o contágio e com ele mortes subsequentes.
Modernamente, a colher para prova de comida foi tomada como insígnia das confrarias gastronómicas, nomeadamente da do Alentejo.
O cabo do exemplar da imagem tem a forma de um coração que encerra no seu interior, uma ave indeterminada, mas que é um ser que voa, que é capaz de se libertar da Terra e subir ao Céu. O coração é encimado por um malmequer. Também a haste que liga as duas conchas está decorada de cada lado do rego, com um malmequer, com uma folha de cada lado. Simbolicamente, através da colher são formulados ao seu utilizador, os votos de liberdade (ave), amor (coração) e dinheiro (malmequer).

COLHER PARA PROVA DE VINHOS

Em madeira, finamente bordada na zona em que pode ser segura, opondo o polegar ao indicador e ao médio. Perfeita forma de coração. Pelas suas dimensões (5 x 0,9 x 6,8 cm) podia ser transportada sem incómodo algum, no bolso do relógio, quer do colete, quer das calças.
De salientar que a prova organoléptica dum vinho é feita através da visão, olfacto e paladar, recorrendo ao aspecto, nariz e boca.
Pelo aspecto conseguimos apreciar o brilho, a tonalidade e intensidade da cor e a limpidez.
Pelo olfacto e recorrendo á nossa memória olfactiva poderemos identificar aromas (frutado, floral, tostado, etc.).
No exame através do paladar, ingere-se uma pequena porção de vinho, fazendo-o percorrer todo o interior da boca antes de o cuspir ou engolir.
Tiram-se então conclusões acerca do corpo do vinho, da acidez, da doçura ou secura, do amargor e da adstringência. Quanto mais tempo o sabor permanecer na boca, maior será a qualidade do vinho.

Publicado inicialmente em 17 de Março de 2010