quarta-feira, 15 de junho de 2011

Santo António na tradição oral


Capa da revista ILUSTRAÇÃO PORTUGUEZA nº 16 de 11 de Junho de 1906.

PRÓLOGO
É vasta a literatura de tradição oral portuguesa referente a Santo António. Debruçar-nos-emos aqui sobre o adagiário, tradições e superstições populares, orações populares e cancioneiro popular alentejano.

ADAGIÁRIO PORTUGUÊS.
Não é extenso, mas existe algum adagiário relativo a Santo António:

- “Água de Santo António tira o pão à gente e dá o vinho ao demónio.”
- “Ande o calor por onde andar, pelo Santo António, há-de chegar.”
- “Dia de Santo António, vêm comer as cerejas ao castanheiro.”
- “Entre António e João planta teu feijão.”
- “Não há sermão sem Santo António, nem panela sem toucinho.”
- “Nem Deus com um gancho, nem Santo António com um garrancho.”
- “Ovelha que é do lobo, Santo António Antônio não guarda.”
- “Santo António tira a dor, mas não tira a pancada.”

TRADIÇÔES E SUPERSTIÇÕES POPULARES
- No dia de Santo António deve-se colher um raminho de erva-pinheira, para pendurar em casa. Se este reverdecer, tal facto é indício de fortuna. [2]
- Para que Santo António opere o milagre de casar uma rapariga solteira, é preciso que uma sua imagem seja roubada a outra pessoa. [2]
- Rezar um responso a Santo António faz com que a pessoa ou o animal responsado não consiga andar para diante, mas apenas para trás, pelo que volta ao ponto de partida. [2]
- Na véspera do dia de Santo António, é costume ornamentar as portas ou as sacadas das casas com canas verdes. [7]

ORAÇÕES POPULARES ALENTEJANAS
Um tipo de oração popular é a encomendação (recomendação) que se faz a Jesus, à Virgem Maria ou a um Santo, para eles livrarem o encomendante de qualquer bicho ou pessoa que lhe queira fazer mal, assim como de qualquer influência maléfica ou demoníaca que o possam afectar. Vejamos uma “Encomendação a Santo António”:

“Santo António se levantou,
Caminho e carreira andou,
Nossa Senhora encontrou,
Ela lhe perguntou:
- Aonde vais, António?
- À vossa Santa busca vou.
- Pois tu, António, irás
E na terra ficarás,
O meu corpo me guardarás
De mau lobo e de má loba,
De mau cão e de má cadela,
De mau homem e de má mulher
E de tudo mau que houver,
Que eu nunca tenha perca
Nem dano nem prejuízo algum.
Em louvor da Virgem Maria
Um Padre Nosso e uma Ave Maria.” [5]

Um outro tipo de oração popular é o responso, entendido como uma oração a um Santo, visando o aparecimento de coisas desaparecidas ou que não ocorram males que se temem. Vejamos um “Responso de Santo António”:

“Santo António se levantou,
seu sapatinho calçou,
seu bordãozinho pegou,
seu caminho caminhou,
Jesus Cristo encontrou.
Jesus Cristo lhe perguntou:
- Onde vais, Beato António?
- Senhor, convosco vou.
- Comigo não virás,
na terra ficarás
guardando o que está perdido,
que à mão do dono seja restituído.
Em nome de Deus e da Virgem Maria
Pai-Nosso e Ave-Maria.” [1]

Este responso reza-se três vezes, depois das quais, as coisas desaparecidas, aparecem.

CANCIONEIRO POPULAR ALENTEJANO
O Povo não esquece a data festiva do Santo António:

“A treze do mês de Junho
Santo António se demove,
S. João a vinte e quatro,
e S. Pedro a vinte e nove.“ [6]

Pelo Santo António, S. Pedro e S. João é cantada a seguinte cantiga popular:

“Santo António, S. Pedro e S. João,
Santinhos padroeiros,
Do meu terno coração.
Olhai por mim,
Protegei-me, dai-me sorte,
Que eu serei vossa devota
Quer na vida quer na morte.” (Évora) [3]

O Povo considera que Santo António pertence a uma admirável geração:

“S. Francisco é meu primo,
Santo António é meu irmão,
Os anjos são meus parentes,
Ai que linda geração!” (Beja) [4]

Tem-no, naturalmente, na mais elevada estima:

“Ailé,
Senhor Santo António,
É o melhor cravo
Do meu oratório.“ [6]

O Santo é invocado para guardar olivais:

“Santo António de Lisboa,
Guardador dos olivais,
Guarda lá minha azeitona
Do biquinho dos pardais.“ [6]

Igualmente é invocado para guardar amores fugitivos:

“Santo António de Lisboa,
Guardador dos olivais,
Guardai-o meu lindo amor,
Que cada vez foge mais.“ [6]

Santo António é casamenteiro. Por isso, ele ou ela imploram:

“Ó meu amor, pede a Deus,
E eu peço a Santo António
Que nos deixe juntar ambos
No livro do matrimónio.“ (Alcáçovas) [4]

O homem confessa o objecto da sua fé:

“O sol bate de chapa,
Faz a maçã coradinha;
Tenho fé em Santo António
Que inda hás-de vir a ser minha.“ (Odemira) [4]

Por seu lado, a mulher suplica ao Santo que a case com determinado homem:

“Ó meu rico Santo António,
Eu bem alto aqui to digo;
Casai os rapazes todos,
O Josezinho comigo!“ (Alcáçovas) [4]

Chegam a chamar namoradeiro ao Santo:

“Santo António me acenou
De cima do seu altar,
Olha o maroto do santo,
Que também quer namorar." [6]

Apontam-lhe mesmo, certos episódios:

“Santo António, com ser santo,
Foi sempre um grande gaiato,
Foi à fonte com três moças,
recolheu, trazia quatro.“ [6]

Chegam ao ponto de lhe fazer determinadas insinuações:

“Senhor Santo António
Tem duas ladeiras:
Umas das casadas,
Outra das solteiras.“ (Moura) [4]

Por chalaça, Santo António é invocado pelas mulheres para escarnecer dos homens:

“Santo António de Lisboa,
Venha ver o que cá vai,
Deu a rabugem nos homens,
Como dá nos animais.“ [6]

Os homens respondem na mesma moeda:

“Santo António da Terrugem
Venha ver o que cá vai,
Anda a rabugem nas moças,
Té o cabelo lhes cai.“ [6]

No conceito popular, o Santo é portador da mais alta patente militar, daí que digam:

“Santo António de Lisboa
Não quer que lhe chamem santo,
Quer que lhe chamem António,
General, mar’chal de campo.“ [6]

Pelo poder que lhe é atribuído, não é de estranhar que Santo António seja invocado para livrar os mancebos da vida militar:

“Sant’Entóino é bom rapaz,
Que livrou seu pai da morte.
Também livrará meu bem
Quando for “tirar as sortes””. (Mina de S Domingos) [4]

Igualmente é invocado para ajudar a vencer desafios ainda maiores:

“Santo António é bom filho,
Que livrou seu pai da morte;
Ajudai-nos a vencer
Esta batalha tão forte.“ [6]

Como o ramo de loureiro era utilizado para sinalizar a porta das tabernas, houve quem ironizasse a decoração do altar do Santo:

“No altar de Santo António
‘Stá um ramo de lòreiro;
Olha que pouca vergonha,
Fazer de um santo vendeiro!“ (Évora) [4]

Os homens chegaram ao ponto de o acusar de reservar o vinho para as mulheres:

“Santo António de Cabanas
Tem uma pipa no monte,
As mulheres bebem vinho,
Os homens água da fonte.“ [6]

Chega a ser encarado como vendedor, a quem se solicita que seja pródigo no avio:

“Santo António vende peras,
Vende peras a vintém,
Lá irá o meu menino,
Santinho, aviai-o bem.“ [6]

A invocação da sua intercessão não conhece limites:

“Ó meu padre Santo António,
Vestidinho d’estamenha;
A quem quer ajudar
O vento lhe ajunta a lenha.“ [6]

O povo que tem convicções firmes e gosta de coisas rijas, considera que o Santo é mesmo um Santo com força nas canelas:

“Santo António da Terruge’
Feito de pau de azinho,
Tem mais força no canelo
Que um barrasco no focinho.“ (Terrugem) [4]

EPÍLOGO
Julgamos que dentro da literatura de tradição oral, as orações populares e o cancioneiro são reveladores da religiosidade própria do homem alentejano, em consonância com a sua própria identidade cultural.

(Texto publicado inicialmente a 15 de Junho de 2011) 

BIBLIOGRAFIA
[1] – ALVES, Aníbal Falcato. Rezas e Benzeduras. Campo das Letras. Porto, 1998.
[2] - CONSIGLIERI PEDROSO, “Supertições Populares”, O Positivismo: revista de Filosofia, Vol. III. Porto, 1881.
[3] – DELGADO, Manuel Joaquim Delgado. Subsídio para o Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo. Vol. I. Edição de Álvaro Pinto (Revista de Portugal). Lisboa, 1955.
[4] – LEITE DE VASCONCELLOS, J. Leite. Cancioneiro Popular Português, vol. III. Acta Universitatis Conimbrigensis. Coimbra, 1983.
[5] – POMBINHO JÚNIOR, A.P. Orações Populares de Portel. Edições Colibri-Câmara Municipal de Portel. Lisboa, 2001.
[6] - THOMAZ PIRES, A. Cantos Populares Portugueses, vol. I. Typographia Progesso. Elvas, 1902.
[7] - THOMAZ PIRES, A. Tradições Populares Transtaganas. Tipographia Moderna. Elvas, 1927.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Santo António na barrística popular estremocense


Santo António. Mariano da Conceição (1903-1959). Colecção do autor.

ESBOÇO BIOGRÁFICO DE SANTO ANTÓNIO
Santo António (1195-1231) nasceu em Lisboa no dia 15 de Agosto de 1195 numa família de mercadores e cavaleiros-vilãos, filho de Martim de Bulhões e de Maria Teresa Taveira Azevedo. Foi baptizado no Mosteiro de São Vicente de Fora com o nome de Fernão de Bulhões. Fez os primeiros estudos na Igreja de Santa Maria Maior, hoje Sé de Lisboa. Em 1209 ingressa como noviço na Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, estabelecida naquele Mosteiro.
Em fins de 1210, princípios de 1211 transfere-se para o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, pertencente à mesma Congregação e que na época era a nível europeu, um importante centro de cultura medieval e eclesiástica. Aí realizou estudos em Direito Canónico, Ciências, Filosofia e Teologia e veio a ser ordenado sacerdote entre 1218 e 1220.
Em Coimbra toma contacto com os franciscanos e é atraído pelos ideais de humildade, pobreza, evangelização e martírio, professados pela ordem italiana. O martírio de cinco franciscanos, decapitados em Marrocos e a vinda dos seus restos mortais em 1220 para Coimbra, levam Fernando a trocar a Regra de Santo Agostinho pela Ordem de São Francisco. Toma então o hábito franciscano, sob o nome de Frei António e recolhe-se no Eremitério dos Olivais de Coimbra.
Por essa época, decide dirigir-se a Marrocos num projecto isolado de conversão pacífica dos Mouros. Contudo, adoece quando atravessa o mar para ir a África, pelo que resolve regressar a Portugal, mas o barco que o transporta é desviado por uma tempestade e vê-se obrigado a aportar na Sicília. António dirige-se então a Assis, onde assiste em 1221 ao Capítulo Geral da Ordem. É em Itália, que António se notabilizará como teólogo exímio e grande pregador.
Em Março de 1222, em Forli, discursa para religiosos franciscanos e dominicanos de modo tão fluente e admirável que o Provincial da Ordem o destina imediatamente à evangelização e difusão da doutrina. Fixa-se então em Bolonha onde se dedica ao ensino da Teologia e à pregação, designadamente contra as heresias dos Cátaros, Patarinos e Valdenses. Segue depois para França, visando lutar contra os Albijenses e em 1225 ensina Teologia em Montpellier e Toulouse e, prega em Puy e em Limoges. Nessa época é-lhe confiada a guarda do Convento de Puy-en-Velay e torna-se custódio da Província de Limoges, um cargo eleito pelos frades da região. Dois anos mais tarde instala-se em Marselha, mas em breve será designado ministro-provincial na Emília, Norte de Itália, onde continua a pregar e a ensinar Teologia no Convento de Pádua. Aqui compõe os “Sermões” destinados a servir de modelo aos pregadores franciscanos, sermões esses caracterizados por alegorias extraídas da observação da natureza, facilmente compreendidas por um auditório ligado ao quotidiano material e concreto. A este período pertence o seu “Sermão aos peixes”.
Em 1228 assistiu à canonização de São Francisco e deslocou-se a Ferrara, Bolonha e Florença. No ano de 1229 as suas pregações dividiram-se entre Vareza, Bréscia, Milão, Verona e Mântua. Tratava-se de uma actividade que o absorvia de tal maneira, que a ela se passou a dedicar em exclusivo. Em 1231, após contactos com Gregório IX, regressa a Pádua, ficando a Quaresma do ano seguinte assinalada por múltiplos sermões da sua autoria.
A sua intensa vida religiosa e apostólica estará porventura na origem da sua morte, aos 36 anos, a 13 de Junho de 1231, no Convento de Arcella, perto de Pádua. Os seus restos mortais repousam na Basílica de Pádua, construída em sua memória.
Canonizado em Maio do ano seguinte pelo papa Gregório IX, foi declarado oficialmente Padroeiro de Portugal em 1932 e proclamado por Pio XII, Doutor da Igreja, em 1946. Santo António é assim o segundo Santo português após o início da Monarquia em 1139. O primeiro foi S. Teotónio (1092-1162).
Santo António é venerado pela Igreja Católica, que o considera um grande taumaturgo e lhe atribui um extraordinário número de milagres, não só em vida, como desde os primeiros tempos após a sua morte até aos dias de hoje.
Face à sua intensa actividade religiosa foram-lhe atribuídos epítetos como “Arca do Testamento“ (Gregório IX), “Martelo dos hereges”, “Defensor da fé”, “Oficina de milagres, etc.".
Santo António além de Padroeiro de Portugal e de Pádua, é considerado Padroeiro dos pobres, dos oprimidos, dos combatentes, dos doentes, dos náufragos, dos animais, dos noivos, dos casais, das casas e das famílias, das pessoas que desejam encontrar objectos perdidos, bem como aquele que livra os homens das tentações demoníacas.
Os atributos de Santo António são variados: um livro (alusão à sua posição como doutor da Igreja), o Menino Jesus (símbolo das suas aparições), um crucifixo, os peixes a escutar os seus Sermões, o burro ajoelhado perante a Hóstia, assim como um lírio. Observe-se que o lírio sempre foi encarado como o símbolo da pureza e relacionado com a Virgem Maria, em homenagem à sua pureza e por isso muito utilizado para decorar igrejas. Épocas houve em que retiravam do lírio os órgãos masculinos e femininos, pois só assim a flor seria "verdadeiramente virgem". Pelo seu simbolismo o lírio é também usado em bouquets de noiva. De resto, existia a crença que um bolbo da flor ajudava a reconciliar namorados desavindos e era uma planta mágica, protectora contra a bruxaria.
A circunstância de o dia festivo de Santo António (13 de Junho) coincidir com as festas do Solstício de Verão, faz com que seja celebrado em Portugal como um dos santos mais populares, com presença honrosa e permanente na literatura, na pintura, na escultura, na música, na toponímia, na filatelia, no folclore, na arte popular, especialmente na barrística, assim como na literatura oral.

PRESENÇA NA BARRÍSTICA POPULAR ESTREMOCENSE
O culto de Santo António foi incentivado em Estremoz pelos religiosos da ordem de S. Francisco de Assis, sediados no Convento de S. Francisco, desde os primórdios da sua construção, no século XIII, em data imprecisa, balizada pelos reinados de D. Sancho II – D. Afonso III (1239-1255).
Lá diz o rifão “Não há bela sem senão”, pelo que na sequência da influência franciscana, o culto de Santo António popularizou-se e o povo fez de Santo António um Santo à sua maneira e de acordo com as suas necessidades e conveniências:

“Santo António de Lisboa,
Guardador dos olivais,
Guarda lá minha azeitona
Do biquinho dos pardais.“ [4]

“Ó meu padre Santo António,
Vestidinho d’estamenha;
A quem quer ajudar
O vento lhe ajunta a lenha.“ [4]

Já no século XVII o padre António Vieira dizia num dos seus famosos sermões (1), que os portugueses para tudo pediam o auxílio de Santo António. Pregava ele: “Se vos adoece o filho, Santo António; se vos foge o escravo, Santo António; se mandais a encomendas, Santo António; se esperais o retorno, Santo António; se aguardais a sentença, Santo António; se perdeis a menor miudeza da vossa casa, Santo António; talvez se quereis os bens da alheia, Santo António.”
Nos anos 50-60 do século passado havia arraiais de Santo António em Estremoz, no Largo do Almeida, nas traseiras da Igreja de Santo André e no Pátio dos Solares, na noite de 12 para 13 de Junho. Todos eles com um mastro donde irradiavam troços de festão com lanternas de papel suspensas, que conferiam colorido e iluminação ao arraial. E havia bazares de rifas decorados com flores de papel e ramos de louro, planta que além de ser utilizada em culinária, simboliza desde a Grécia Antiga, a recompensa ao mérito. Mas o que era verdadeiramente indispensável era o trono com a imagem de Santo António, ornado com manjericos, flores de papel e pavios de cera e lamparinas de azeite a arder. Recorde-se a propósito que a tradição dos tronos de Santo António remonta a 1755 quando o Terramoto destruiu Lisboa e foi efectuado um peditório para ajudar a reconstruir a Igreja de Santo António, que ficara parcialmente destruída. O costume manter-se-ia e alastraria a todo o país. E em Estremoz como noutros lugares, era corrente durante a quadra festiva, ver os miúdos a pedir “um tostãozinho para o Santo António”. Saltava-se também a fogueira, queimavam-se as alcachofras e largava-se no ar o balão de papel, movido a ar quente, que nem sempre subia bem alto, pois algumas vezes se incendiava logo à partida. No arraial, bailava-se alegremente e o petisco obrigatório eram sardinhas assadas, acompanhadas de batata cozida, salada de tomate e pimentos assados, bem regados com vinho tinto ou branco, à excepção dos miúdos que bebiam pirolito de berlinde. No ar uma indescritível mistura de aromas de sardinha assada, louro e manjerico. A festa, essa durava até ao raiar d'aurora.
A popularidade do culto antoniano levou o povo a recriar pequenos altares nas suas casas e a ter o Santo exposto em oratórios. A procura de imagens estará na origem do aparecimento da figura de Santo António na barrística popular estremocense. No acervo do Museu Municipal de Estremoz existem imagens que vão desde o século XVIII até à actualidade e com dimensões e atributos variáveis.
No exemplar aqui reproduzido, Santo António é representado em jovem e em pé, envergando um hábito franciscano e uma capa, ambos em castanho. O hábito tem mangas com punhos orlados a amarelo, que é também a cor da gola e da orla da capa. O hábito está cingido à cintura por um cordão igualmente amarelo, pendente a todo o comprimento do hábito. O Santo calça sandálias e está assente numa peanha oca que pretende imitar as de talha. Na mão esquerda, o Doutor da Igreja segura um livro no qual está sentado o Menino Jesus, que sobre o joelho esquerdo e com a mão esquerda segura a “esfera mundi”. Qualquer das imagens ostenta auréolas douradas, com linhas incisas que radiam do centro. A posição do braço direito do taumaturgo alvitra que a sua mão deve ter segurado um lírio ou um crucifixo, que conjuntamente com o livro e o Menino Jesus, são outros dos atributos deste Santo. De salientar que nesta imagem há elementos amovíveis (auréolas, Menino Jesus, Cruz e lírio), que eram retirados da imagem e guardados, até o devoto ver o ser desejo satisfeito. Daí que em muitas destas imagens faltem alguns destes elementos. A pressão sobre o Santo a fim de que produzisse milagres, ia ao ponto de alguns porem a sua imagem de castigo, virada para a parede, como outrora os mestres-escola procediam com os alunos cábulas. Em casos extremos, a imagem era posta de cabeça para baixo e até mesmo atada a um cordel e mergulhada num poço. Seria para o Santo refrescar as ideias e fazer o milagre pretendido? Vejam lá o extremo a que podia chegar a religiosidade popular…

(1) - O padre António Vieira pregou dois sermões sobre Santo António: um em Roma, na Igreja dos Portugueses, outro na Baía, na Igreja de Santo António. Vêm ambos na edição dos “Sermões” publicada em Lisboa no ano de 1855.

BIBLIOGRAFIA
[1] – ESPANCA, Túlio. Inventário Artístico de Portugal. Distrito de Évora. Concelhos de Arraiolos, Estremoz, Montemor-o-Novo, Mora e Vendas Novas. I volume. Academia Nacional de Belas Artes. Lisboa, 1975.
[2] - GAMA, Estanislau Martins. Santos de Portugal. Edição de Luís G. Martins Gama. Estremoz, 1971.
[3] - PINHEIRO CHAGAS, M. Portugueses Ilustres. Lello e Irmão, Editores. Porto, 1983.
[4] - THOMAZ PIRES, A. Cantos Populares Portugueses, vol. I. Typographia Progesso. Elvas, 1902.
Publicado inicialmente em 13 de Junho de 2011

segunda-feira, 6 de junho de 2011

O carapuço na barrística popular estremocense

Fig. 1 - Pastor a fazer as migas, sentado. Peça da barrística popular estremocense, da autoria das Irmãs Flores. 


Fig. 2 - Pastor a fazer as migas, deitado. Peça da barrística popular estremocense, da autoria das Irmãs Flores. 
Fig. 3 - Matança do porco. Peça da barrística popular estremocense, da autoria das Irmãs Flores.

Quando em Dezembro passado dei à estampa a segunda edição do meu livro “BONECOS DA GASTRONOMIA”, fui questionado por um leitor, em virtude de em três peças da barrística popular estremocense, da autoria das Irmãs Flores, figurarem camponeses de barrete na cabeça, o que segundo o meu interpelador, não seria característico do Alentejo (Fig. 1, Fig. 2 e Fig. 3).
Eu na altura respondi-lhe que o barrete se usou em todo o país. Do Norte para o Sul e do Litoral para o Interior. Todavia, as imagens habitualmente veiculadas pelos nossos ranchos folclóricos, associam mais o barrete às zonas piscatórias (Póvoa de Varzim, Aveiro, Nazaré), bem como ao Ribatejo.
Hoje tenho oportunidade de esclarecer o assunto duma forma mais aprofundada duma tripla maneira, com recurso a referências etnográficas, de literatura oral e fotográficas, que passo de imediato a referir.
No Alentejo, o vestuário do trabalhador do campo, incluía em 1896, em vez do chapéu e principalmente de Inverno, o barrete, também chamado gorro (Tolosa, Barrancos) ou carapuço (Estremoz, Alandroal, Montemor-o-Novo) [1].
O cancioneiro popular alentejano refere o uso do gorro preto:



“Ó rapaz da cinta verde,
Ó rapaz do gorro preto,
Vou cantar uma cantiga,
E vai ser a teu respeito.” [2]



“Ó rapaz do gorro novo,
Ó rapaz do gorro preto,
A respeito do que cantam,
Preciso é falar com jeito.” [2]



“Ó rapaz do gorro preto,
Volta-o de dentro p’ra fora;
Inda estou do mesmo lado,
Inda me não volto agora.” [2]



“Ó rapaz do gorro, gorro.
Ó rapaz do gorro preto,
A respeito de namoro
É preciso muito jeito.” [2]



O mesmo cancioneiro refere igualmente o uso do gorro verde:



“Ó fêra de S. Mateus,
Onde se vendem pinhões,
Anda agora muito em moda
Gorros verdes à Camões.” [2]



“Ó rapaz do gorro verde,
Quem te mandou cá entrar?
Se não cantas ‘ma cantiga,
Já te podes retirar.” [2]



“Eu venho detrás da serra
Com o meu gorro à campina;
Quem é mestre também erra,
Quem erra também se ensina.” [2]



O uso do gorro preto ou vermelho, está de resto referenciado como tradição popular nesta região. [3]
A nível fotográfico, o uso do barrete no Alentejo, está documento por bilhetes-postais ilustrados referentes a actividades agro-pastoris: lavra e sementeira (Fig. 4), apanha da azeitona (Fig. 5) e maioral e ajuda, figuras da pastorícia alentejana (Fig. 6).
Julgamos que com estas considerações tenha ficado demonstrado duma forma insofismável, o uso do barrete no Alentejo, o que legitima as representações da barrística popular estremocense que o utilizam. Caso das peças citadas: “Pastor a fazer as migas sentado”, “Pastor a fazer as migas deitado” e “Matança do porco”. Barristas como Mariano da Conceição, Liberdade da Conceição, Sabina Santos, Quirina Marmelo, Irmãs Flores e Fátima Estróia, cobriram a cabeça destas figuras com o tradicional barrete. Já José Moreira, substituiu nas mesmas figuras e a partir de uma certa altura, o barrete pelo tradicional chapéu aguadeiro, conforme ilustramos com a “Matança do porco" (Fig. 7), de sua autoria.

BIBLIOGRAFIA
[1] – LEITE DE VASCONCELLOS, J. Etnografia Portuguesa, Vol. VI. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Lisboa, 1975.
[2] - THOMAZ PIRES, A. Cantos Populares Portuguezes. Vol. IV. Typographia e Stereotipía Progresso. Elvas, 1912.
[3] - THOMAZ PIRES, A. Tradições Populares Transtaganas. Tipographia Moderna. Elvas, 1927.
 fig. 4 - A lavra e a sementeira no Alentejo, no início do século XX. Postal edição Malva (Lisboa). 
 Fig. 5 - A apanha da azeitona no Alentejo, no início do século XX. Postal edição Tabacaria Gonçalves (Lisboa).
Fig. 6 - Maioral e ajuda, figuras da pastorícia alentejana, no início do séc. XX. Postal edição Malva (Lisboa).
Fig. 7 - Matança do porco. Peça da barrística popular estremocense, da autoria de José Moreira.

sábado, 4 de junho de 2011

Estremoz – Mercado das Velharias




À minha amiga Manuela Mendes:

Dizem que eu sou um respigador nato, um cão pisteiro, um farejador de coisas velhas. Talvez seja algo de epidérmico, se não mesmo genético. E perante os meus olhos nascem coisas que parece que estavam ali circunspectas, à espera que eu me abeirasse delas. Ainda há dias foi a 1ª edição da "SUBERICULTURA" (1950) e a nova edição (1942) de "POMARES" do Prof. Vieira Natividade, que ali comprei ao preço da uva mijona.
Para fechar com chave de ouro, essa manhã de sábado, comprei ainda ao preço da dita uva, uma "ANTOLOGIA DE FIALHO DE ALMEIDA", organizada por Manuel da Fonseca e com extensa dedicatória autografa, deste último. A minha biblioteca já incorporava outros livros com dedicatórias autógrafas de outros grandes escritores portugueses, nomeadamente alentejanos, como o Conde de Monsaraz ou António Sardinha, mas quanto ao Manuel da Fonseca, o nosso "Manel", estava às escuras.
Quando as minhas mãos nervosas, tactearam o livro descoberto pela cirurgia do meu olhar, senti uma espécie de calafrio na espinha, seguido dum deslumbramento como terão porventura sentido os nossos navegadores, quando aportarem ao novo mundo.
À semelhança do que acontecia com o meu vizinho Sebastião da Gama, que conheci ainda eu era uma criança, sábado é o dia mais belo da semana. Não troco por nada, a ida ao mercado de sábado.
Num dos seus poemas que relembro de memória, o Manel diz: "Domingo que vem, vou fazer as coisas mais belas que um homem pode fazer na vida". Pois eu, que sou "sabadeiro", digo para mim mesmo: "Sábado que vem vou comprar as coisas mais belas que um homem pode comprar na vida" e de sexta para sábado, mal durmo, farto-me da dar voltas na cama, à espera que o dia nasça. Então ergo-me, de súpalo e com toda a adrenalina dos meus sessenta e cinco anos, aí vou eu, respigador nato, cão pisteiro, farejador de coisas velhas, em passo acelerado, a caminho do mercado de sábado, em Estremoz. E quando muito mais tarde, perto da hora de almoço, regresso a casa com o estômago vazio, a minha alma vai cheia. E aguenta-se uma semana, até ao sábado que vem.
Publicado inicialmente em 4 de Junho de 2011

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Dia Mundial da Criança


ASSOBIOS - Bonecos de Estremoz (Séc. XX). Museu Nacional de Etnologia, Lisboa.

Comemora-se hoje o Dia Mundial da Criança. Não das crianças de ontem, mas das crianças de hoje e com uma aposta forte nas crianças de amanhã.
Ser criança é brincar. A brincadeira é o trabalho da criança. É a brincar que a criança aprende a ser homem e constrói a sua personalidade.
As brincadeiras de hoje não são as brincadeiras de ontem. Não foi por acaso que escolhi apitos de barro de Estremoz, para ilustrar esta crónica. Com um apito destes podíamos imitar um pássaro, um polícia ou um árbitro. Dependia da nossa imaginação momentânea e daquilo que nos desse na real gana. Exercitávamos assim a nossa imaginação criadora e praticávamos o exercício da liberdade.
Outras brincadeiras e jogos eram colectivos: o jogo do botão, do pião, da bola, etc. Com eles, desenvolvíamos a nossa socialização e reforçávamos o espírito colectivo.
Coleccionávamos cromos da História de Portugal, das Raças Humanas, das Bandeiras do Universo, dos Trajes do Mundo. Era a nossa iniciação à leitura e à literatura, a nossa primeira abordagem à História de Portugal, a nossa partida à descoberta do mundo, de outros povos e de outros costumes.
Hoje em muitos casos não é assim. São as consolas, os jogos de vídeo, de computador e de telemóvel. Tudo envolvendo jogos que na sua esmagadora maioria foram concebidos para serem praticados individualmente, visando fomentar o individualismo e para programarem e vincularem os seus praticantes, a estereótipos de egoísmo, do salve-se quem puder, do vale tudo, da violência, do terror e do medo. É isso que interessa à sinistra alta finança mundial, que a nível global, controla os governos de cada país.
Não lhes interessa que haja cidadãos que se possam sentir homens livres, criativos, com carácter, com coragem, amantes da Paz, solidários com o próximo, com respeito pelo colectivo, que reconheçam o valor do esforço, do trabalho e do mérito. Isso para eles é subversivo. Para eles, interessa-lhes que em criança, os cidadãos sejam programados de maneira diferente.
Interessa-lhes cidadãos dóceis, submissos, governados pelo medo, obedientes, egoístas, sem respeito pelo colectivo e que aceitem acefalamente a violência e a guerra.
É preciso que os pais e educadores tenham cada vez mais consciência destes problemas e se empenhem em dar a volta a isto, para que a formação daqueles que serão os homens de amanhã, se possa efectuar sem desvios nem distorções.
Torna-se necessário retomar jogos e brincadeiras antigas, algumas das quais têm milhares de anos e adoptar outras novas, que ajudem a formar homens e mulheres de carácter, livres, verdadeiros, justos e solidários. Essa é uma revolução permanente que temos de tomar nas nossas mãos. É a nossa grande batalha pela cidadania. E havemos de vencer, porque quem não se rende, vence sempre.


Publicado pela 1.ª vez em 1 de Junho de 2011

terça-feira, 31 de maio de 2011

O sentido da visão: Superstições, Rezas e Benzeduras

Ilustração de Manuel Ribeiro de Pavia (1907-1957) para o livro “Alentejo não tem sombra” de Eduardo Teófilo, Portugália Editora, 1954.

PREÂMBULO
No desenvolvimento do tema “O sentido da visão”, efectuámos até à presente data edição dos posts:
Chegou agora a altura de editar o post:
- O Sentido da visão: Superstições, Rezas e Benzeduras
Comecemos pelos:
OLHOS E SUAS DOENÇAS
Existem inúmeras superstições populares ligadas aos olhos:
- Quando um lobo avista alguém, antes de ser por ela visto, a pessoa perde a fala. [4]
- Passar pelos olhos um ovo quente, acabado de pôr, tem a virtude de aclarar a vista. [4]
- Olhar-se a um espelho, tendo a cara inflamada, agrava a inflamação. [5]
- Ao encontrar-se um ninho de andorinha, devem cegar-se os filhos, pois a andorinha vai buscar uma pedrinha que tem a virtude de lhes restituir a vista e que por isso deixa ficar no ninho. Subtrai-se então a pedra do ninho e não há doença de olhos que resista à sua influência benéfica. [4]
- Nascem treçolhos nos olhos de qualquer pessoa a quem uma mulher grávida peça uma coisa e não lha dê. [4]
- Para talhar o terçolho, acende-se uma fogueira numa casa que tenha duas portas. Quem tem o terçolho, entra a correr por uma porta e salta três vezes a pés juntos por cima da fogueira, gritando: “Aqui-del-rei! Fogo em casa do terçogo!” Depois sai pela outra porta, gritando o mesmo. [5]
- Um afogado começa a deitar sangue pelos olhos e pelo nariz, quando se lhe chega ao pé, um parente próximo ou remoto. [4]
- Quando um finado fica de olhos abertos, é sinal que está chamando por alguém da família. [4]
- Ver-se de noite sem luz, é ver o Diabo. [4]
- Não se deve ter uma luz acesa, numa casa sem ninguém, porque está a alumiar o Diabo. [5]
As doenças de olhos eram tratadas pelo povo com mezinhas caseiras, que não iam além da simples lavagem com água de rosas ou água de malvas. As doenças mais correntes eram:
- BOLIDAS - Manchas esbranquiçadas que apareciam na íris.
- CABRITA – Mancha de sangue no branco do olho.
- FARPÃO - Borbulha inflamatória na córnea.
- REXA – Úlcera traumática da córnea, adquirida normalmente na ceifa ou no varejo da azeitona.
- TERÇOLHO - Pequeno tumor no bordo das pálpebras.
Para a remoção de corpos estranhos dos olhos, recorria-se às chamadas pedras alguereras, ou d'alguêro, vendidas em feiras e mercados e que ao serem introduzidas nos olhos originavam produção abundante de lágrimas,as quais expulsavam qualquer corpo estranho à vista.
Para além das mezinhas, as doenças de olhos eram tratadas com benzeduras. Uma reza usada na benzedura dos olhos, diz assim:


“Em lavor de Santa Luzia
Esta vista venho benzer:
De prego, de farpa e farpão.
De cabra (?), de cabrito (?), de rôxidâo,
De vermelhidão e d'enflamação,
De bicha e de bichão!...
Ê te corto e te torno a cortar,
Rabo, cabeça e raízes do coração
P'ra que te seques e te mirres
Em lavor de Santa Luzia,
Padre-Nosso... Avém-Maria.” [6]


Mas há outras rezas empregues na benzedura de olhos, como esta:


“A mão de Deus e a da Virja Maria vá adiente da minha
P'ra qu'apagu'estas rechas, estes farpões,
Estes carnazões, estes cravos, estes pregos,
Estas bolidas, êste mal d'olhos...
Em louvor de Deus e da Virgem Maria,
Padre-Nosso… Avém-Maria.” [6]


Durante a benzedura, a benzedeira segura numa mão um objecto cortante (faca, navalha ou canivete) e na outra, um bocado de pau de loendro no qual corta, quando as palavras do ensalmo o declaram, ao mesmo tempo que aproxima dos olhos do paciente, o objecto cortante e o pedaço de loendro.
A benzedura é efectuada durante cinco, sete ou nove dias, findos os quais, a doença deve estar debelada. Faz-se então, o seguinte ofertamento: — “Ofereço estas santas benzeduras à Senhora Santa Luzia que livrou este olho do arpão, cravo e récha. Em nome de Deus Padre, de Deus Filho, de Deus 'Sprito Santo e de Santa Luzia. Padre Nosso e Avém-Maria”. [6]
Vejamos ainda mais uma reza utilizada na benzedura dos olhos:


“Eu te benzo... (nome da pessoa)
rexa, cabrita, farpão.
Santa Luzia por aqui passou,
com o seu manto borrifou;
assim tu te aches como ela se achou.
Em nome de Deus e da Virgem Maria
Pai-Nosso e Ave-Maria.” [1]


Reza-se nove vezes e ao fim de cada uma delas, a benzedeira e o paciente rezam um Padre Nosso e uma Ave Maria, oferecidos a Santa Luzia.
Existe uma reza expecífica, usada na benzedura do farpão. Uma das suas muitas variantes diz o seguinte:


Diz a benzedeira:
- “Jesus, santo nome de Jesus,
onde está o santo nome de Jesus,
não está mal nenhum“
Continua a benzedeira:
“ Eu te corto.”
Responde o doente:
“- Farpão. “
Continua a benzedeira:
“- Eu t’o corto da cabeça,
eu t’o corto dos braços,
eu t’o corto das pernas,
para que não possas reinar.
Aqui te hás-de secar,
aqui te hás-de mirrar,
daqui não hás-de passar.
Hei-de te mandar deitar
para lá das águas do mar,
onde não ouças galinhas nem galos cantar,
nem filhos bradar.
Em louvor de Deus e de Maria,
Padre-Nosso e Ave-Maria.” [3]


Enquanto são pronunciadas aquelas palavras, a benzedeira passa por cima do farpão um anel de ouro ou um dente de alho. A benzedura é feita nove vezes e ao fim de cada uma delas, a benzedeira e o paciente rezam um Padre Nosso e uma Ave Maria, oferecidos a Santa Luzia e à sagrada Morte e Paixão de Cristo.


OLHOS DE SANTA LUZIA
Como se sabe o povo é superticioso e por tradição popular era dado ao uso de amuletos. Um deles, conhecido por “Olhos de Santa Luzia”, em prata, era usado num fio ao pescoço, para prevenir as doenças de olhos, assim como ofertados à Santa, em cumprimento de promessa por graça recebida. De resto, os devotos rezavam uma “Oração a Santa Luzia”:


Ó Santa Luzia
Que saras dos olhos
Livrai-nos d’escolhos
De nout’ e de dia.


Ó Santa Luzia
Bendita sejais,
Por seres bendita,
No Céu descansais.” [6]


MAU-OLHADO
O mau-olhado é uma faculdade atribuída a certos indivíduos de trazerem desgraça àqueles para quem olham. O povo ainda hoje crê que o chamado mau-olhado pode ser comunicado a outrem, por quem tem o poder de o fazer, por querer ou mesmo sem querer. Crê ainda que o mau-olhado tanto se pode manifestar em pessoas como em animais, sob a forma de doenças como o quebranto ou então estar na origem de desastres, perdas materiais ou outros malefícios.
São correntes superstições populares relativas ao mau-olhado:
- Por causa do mau-olhado, é bom trincar um alho em jejum. [4]
- Para livrar das bruxas ou do mau-olhado, é bom pôr uma ferradura na porta. [5]
Para talhar o mau-olhado, a benzedeira tem de verificar primeiro se a doença do paciente tem ou não origem em mau-olhado. Para tal, deita um fio de azeite num pires, molha nele três dedos e deixa cair três pingos na água contida numa bacia. Se as pingas se juntarem, é mau-olhado que o paciente tem. Se não se juntarem não é. Em seguida, torna a molhar os dedos no azeite e faz sobre as pingas que estão na água o sinal da cruz, ao mesmo tempo que pronuncia as palavras rituais da reza:


“Fulano (Nome da pessoa) Deus te fez,
Deus te criou,
Deus te tire o mal
Que no teu corpo entrou.” [2]


Eis uma das muitas rezas usadas na benzedura do mau-olhado:


Começa a benzedeira:
- “Jesus, santo nome de Jesus,
onde está o santo nome de Jesus,
não está mal nenhum“
Diz depois a benzedeira:
“- Eu te benzo, criatura, do mau-olhado.
Se for na cabeça, em nome da Senhora da Cabeça,
se for nos olhos, em nome de Santa Luzia,
se for na cara, em nome de Santa Clara,
se for nos braços, em louvor de S. Marcos,
se for nas costas, em louvor da Senhora das Verónicas,
e se for no corpo, em louvou do meu Senhor Jesus Cristo
que tem o poder todo.
Santa Ana pariu a Virgem
e a Virgem pariu o meu Senhor Jesus Cristo
assim como isto é verdade
assim seja este olhado daqui tirado 
e para as ondas do mar deitado,
Onde não ouça galo nem galinha cantar
Em louvor de Deus e de Maria,
Padre-Nosso e Ave-Maria.” [3]


Esta benzedura é feita nove vezes e ao fim de cada uma delas, a benzedeira que segura um rosário na mão e o paciente, rezam uma Salve Rainha oferecidas a Nossa Senhora.


QUEBRANTO
Para o povo, o quebranto é causado pelo mau-olhado e tem sintomas próprios: bocejos, mal-estar, dores no corpo, náuseas, arrepios, debilidade, definhamento.
São vulgares as superstições populares relativas ao quebranto:
- Para livrar de quebranto, é bom pregar uma ferradura nas portas das casas, pela parte de fora. [4]
- As crianças pequenas podem ser protegidas do quebranto, pondo-lhes ao pescoço um cordão de seda preta onde estejam enfiados um signo saimão, três vinténs em prata furados, uma argola, um dente de lobo, uma meia-lua e uma figa. [4]
- Para se tratar uma criança de quebranto, juntam-se quatro pedaços de chita, quatro de algodão, quatro de sapatos velhos, quatro de pato-do-mar, quatro ramos de aroeira, quatro de rosmaninho, quatro de alecrim, deita-se tudo no lume e passa-se a criança doente pelo fumo. [5]
Para saber se um paciente tem ou não quebranto, a benzedeira começa por proferir cinco vezes seguidas, as palavras cerimoniais da seguinte reza:


“Fulano (Nome da pessoa),
Deus te remiu, Deus te criou,
Deus te livre de quem para ti mal olhou!
Deus te livre deste cobranto:
Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo! [7]


Seguidamente, a benzedeira verte cinco pingas de azeite num prato com água pura. Se é quebranto, as pingas espalham-se. Se não é, juntam-se. E sendo quebranto, existe a crença de que a pessoa começa desde logo a melhorar.
Apresentamos de seguida uma reza usada na benzedura do quebranto, de sol e de lua. Diz a benzedeira:


“ Fulano (nome das pessoa) dois olhos te olharam mal,
Três te hão-de olhar bem,
Em nome de Deus Pai, do Filho
E do Espírito Santo, Amem
Quando Nossa Senhora pelo Mundo andou,
Com Santa Margarida se encontrou,
E lhe perguntou:
— Onde vais. Margarida?
— Eu à Vossa busca ia.
Tenho um filho doente
De sol e de lua e de fito morria.
Com que o curarei eu, Senhora?
— Com a cinza do lar
O Mundo será salvo.
A lua por aqui passou
E a cor de Fulano levou,
E a dela deixou.
Ela há-de tornar a passar,
A cor de Fulano há-de deixar,
E a dela há-de levar
Para as ondas do mar
Onde não oiça
Nem galos nem galinhas cantar,
Nem mãe por seu filho bradar.” [2]


No final, benzedeira e paciente rezam um Pai Nosso e uma Ave Maria que oferecem a Nossa Senhora e à Sagrada Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.
EPÍLOGO
A medicina popular, misto de empirismo e crenças arcaicas, indepedentemente dos seus resultados práticos, é merecedora de todo o nosso respeito, não só pela riqueza da sua literatura oral, como pelo papel que desempenhou na formação das identidades culturais regionais.
E com este post damos por terminada a abordagem efectuada ao sentido da visão, através dos múltiplos domínios da nossa literatura oral. Fazemos votos para que esta nossa incursão tenha sido do agrado dos leitores.
BIBLIOGRAFIA
[1] – ALVES, Aníbal Falcato. Rezas e Benzeduras. Campo das Letras. Porto, 1998.
[2] – DELGADO, Manuel Joaquim. A Etnografia e o Folclore do Baixo Alentejo. Separata da Revista “Ocidente”. Lisboa, 1956.
[3] – OLIVEIRA, Ataíde de. “Therapeutica Mystica-Bendeduras”, A Tradição: revista mensal d’Ethnografia Portuguesa. Série I, Anno I, nº9. Serpa, Setembro de 1899,
[4] - CONSIGLIERI PEDROSO, “Supertições Populares”, O Positivismo: revista de Filosofia, Vol. III. Porto, 1881.
[5] - CONSIGLIERI PEDROSO, “Supertições Populares”, O Positivismo: revista de Filosofia, Vol. IV Porto, 1882.
[6] – ROQUE, Joaquim. Rezas e Benzeduras Populares. Minerva Comercial. Beja, 1946.
[7] – LEITE DE VASCONCELLOS, J. Etnografia Portuguesa, Vol. X. Imprensa Nacional-Casa da moeda. Lisboa, 1988.
Hernâni Matos
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