sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Brinquedos de louça de Estremoz


Fig. 1 - Pote com tampa. Finais do séc. XIX.

Algures em 2012 recebi um telefonema da barrista Maria Luísa da Conceição, minha vizinha e amiga, a qual me disse:
- “Por motivo de saúde, uma amiga minha vai passar a viver com a filha e está a desfazer-se de coisas pelas quais não tem interesse especial. É o caso de umas louçinhas de Estremoz, que talvez lhe possam interessar.”
Perguntei-lhe então:
- “Quem é a senhora?”
Resposta da barrista:
- “Você conhece. É a Isolete Correia que foi telefonista e colega da senhora sua mãe”.
Nessa altura o meu coração deu um baque. É que eu sabia que a senhora herdara a colecção de Bonecos de Estremoz do Tenente-coronel Pinto Tavares, a qual vendeu a um comerciante do Mercado das Velharias, que por sua vez a vendeu ao pintor Armando Alves. É uma colecção extraordinária que foi adquirida pelo Armando e me escapou das mãos porque eu cheguei ao Mercado às 8 horas e ele tinha chegado mais cedo. Acreditem ou não, andei doente uma semana por causa dessa perda. Valeu-me a abertura do Armando que me franqueou as portas da sua casa, a fim de fotografar os bonecos, para estudar posteriormente. Tive que recorrer ao Luís Mariano Guimarães, já que eu e as máquinas fotográficas não nos damos lá muito bem. No conjunto fotografado havia três loucinhas, ou seja, três “Brinquedos de louça de Estremoz”. Pressenti então que a senhora podia ter ficado ainda com alguns desses brinquedos. Depois da barrista Maria Luísa da Conceição me ter dado o número de telefone da senhora e eu ter combinado com ela a hora de ir a sua casa, lá fui. O meu pressentimento estava certo. Comprei-lhe então aqueles brinquedos, o que me deu imensa satisfação.
Os “Brinquedos de louça de Estremoz” que ilustram este texto são uns do Armando e outros meus. Pertenceram todos à colecção do Tenente-coronel Pinto Tavares e passo a apresentá-los: Pote com tampa (Fig. 1), Panela com tampa (Fig. 2), Cântaro com tampa (Fig. 3), Bilha (Fig. 4), Bule (Fig. 5), Bule (Fig. 6), Fogareiro (Fig. 7), Apito de água (Rouxinol) (Fig. 8), todos dos finais do séc. XIX.
De “Brinquedos de Louça de Estremoz” nos fala Virgílio Correia (1)-pág. 80: “Na feira de S. Tiago — a grande feira estremozense — do ano que passou, apareceram á venda, ao lado dos bonequinhos de barro pintado e dos usuaes pucarinhos e rouxinoes para creanças, uns brinquedos de tipo especial, fortemente policromados, que, segundo afirmava a sua única vendedora, não vinham ao mercado havia muitos anos.
Fora o caso que um seu parente, oleiro, preso nas cadeias da vila, mandara ir para a sala onde temporariamente pousava, uma porção de reduções de utensílios, de uso infantil, e entretivera-se enchendo os pequeninos bojos e tampas de pinturas de gosto antiquado. Sobre a chacota, pintara ramos e linhas cruzadas, empregando o branco, o azul brando e o azul carregado, o verde, o vermelho e o côr de vinho, as mesmas cores adotadas no colorido dos bonecos. A ideia, porém,não era dele; lembrara-se de que, anos atraz, em Estremoz, este tipo de decoração era ainda corrente...”
E mais adiante (1): “Tive, dias depois da feira, ocasião de ver a oficina onde pintavam os brinquedos. Sentada numa cadeirinha baixa, deante de uma daquelas minúsculas mezinhas onde o alentejano come, sob a chaminé, rodeada de tijelinhas, a artista — era uma mulher que então trabalhava — ia colorindo, riscando, pontuando e borrando a chacota avermelhada dos brinquedos.
No meio de todas aquelas conchas de cores diferentes, lembrava um iluminador, preparando
uma capitular, ou uma cercadura naturalista.”
O tema dos “Brinquedos de Louça de Estremoz” viria a ser retomado mais tarde por Virgílio Correia (2)-pág.105, que dá a conhecer a imagem de nove desses brinquedos com diferentes morfologias e decorações.

BIBLIOGRAFIA
1 - CORREIA, Virgílio. Brinquedos de Louça de Estremoz in Revista Terra Portuguesa - Revista Ilustrada de Arqueologia Artística e Etnografia,, nº 3, Abril de 1916. Lisboa, 1916 (pág.80).
2 - CORREIA, Virgílio. Brinquedos de Louça de Estremoz in Revista Terra Portuguesa - Revista Ilustrada de Arqueologia Artística e Etnografia, nº 10 e 11, Novembro e Dezembro de 1916 (pág. 105).

 Fig. 2 - Panela com tampa. Finais do séc. XIX.

 Fig. 3 - Cântaro com tampa. Finais do séc. XIX.

 Fig. 4 - Bilha. Finais do séc. XIX.
Colecção Armando Alves.

 Fig. 5 - Bule. Finais do séc. XIX.
Colecção Armando Alves.

 Fig. 6 - Bule. Finais do séc. XIX.
Colecção Armando Alves.

 Fig. 7 - Fogareiro. Finais do séc. XIX.

Fig. 8 - Apito de água (Rouxinol). Finais do séc. XIX.

sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Olaria enfeitada


Fig. 1 - Cantarinha enfeitada. Irmãs Flores (2000).


A olaria enfeitada não integra o figurado de Estremoz. Trata-se de peças produzidas na roda pelos oleiros e enfeitadas “à maneira de Estremoz” e na qual predominam cores como o zarcão, o azul, o verde e o vermelho. São peças com dupla autoria, que ostentam por vezes na base, as marcas dessa dupla autoria.
Na olaria enfeitada é possível distinguir dois sub-conjuntos com funcionalidades distintas:
- VASILHAME ENFEITADO: Cantarinha enfeitada (Fig. 1), Púcaro enfeitado ou Fidalguinho (Fig. 2), Terrina enfeitada (Fig. 3), Chávena e pires enfeitados (Fig. 4) e Vaso enfeitado (Fig. 5);
- ILUMINÁRIA ENFEITADA: Candelabro enfeitado (Fig. 6), Castiçal enfeitado (Fig. 7) e Palmatória enfeitada (Fig. 8).
A cantarinha enfeitada e o púcaro enfeitado integram a Sistemática dos Bonecos de Tradição por serem comuns à produção de todos os barristas. Já exemplares como Terrina enfeitada, Chávena e pires enfeitados, Vaso enfeitado, Candelabro enfeitado, Castiçal enfeitado e Palmatória enfeitada, são incluídos na Sistemática dos Bonecos da Inovação, por não serem comuns à produção de todos os barristas.



 Fig. 2 - Púcaro enfeitado (ou Fidalguinho). Olaria Alfacinha (sd).


Fig. 3 - Terrina enfeitada. Olaria Alfacinha (sd).

Fig. 4 - Chávena e pires enfeitados. Autor desconhecido (finais do séc. XIX).
Colecção Armando Alves.
  
 Fig. 5 - Vaso enfeitado. Mariano da Conceição (sd).
Colecção Jorge da Conceição.

 Fig. 6 - Candelabro enfeitado. Olaria Alfacinha (sd).
Colecção Irmãs Flores.

 Fig. 7 - Castiçal enfeitado. Irmãs Flores (2018).

Fig. 8 - Palmatória enfeitada. Liberdade da Conceição (1983).

quarta-feira, 24 de julho de 2019

Bonecos de Estremoz: Sabina da Conceição Santos


Sabina da Conceição Santos (1921-2005) nos anos 70 do séc. XX, tendo à sua
direita as discípulas Maria Inácia Fonseca (1957- ) e Perpétua Sousa (1958- ).
Fotografia de Xenia V. Bahder. Arquivo fotográfico do autor.

Sabina Augusta da Conceição nasceu às 22 horas de 1 de Julho de 1921 num prédio da calçada da Frandina, em Estremoz. Filha legítima de Narciso Augusto da Conceição, oleiro, de 50 anos de idade, natural da freguesia de Santo Antão, Évora e de Leonor das Neves, doméstica, de 45 anos, exposta, natural da freguesia de Santo André, Estremoz. Neta paterna de Caetano Augusto da Conceição, oleiro e de Sabina Augusta, doméstica. Neta materna de avós incógnitos (8). Com 12 anos de idade e com o pai já falecido (suicídio por enforcamento a 10 de Junho de 1933, com a idade de 61 anos), candidata-se em 23 de Agosto de 1933 ao exame de admissão à Escola Industrial António Augusto Gonçalves e, tendo sido aprovada, matricula-se no Curso de Tapeceira (3 anos), após o Dr. Lourenço Marques Crespo ter atestado que Sabina tem robustez física, não sofre de doença suspeita ou contagiosa e foi vacinada há menos de 5 anos (7).
Em 5 de Julho de 1942, com 21 anos de idade, casa-se na Igreja de Santa Maria em Estremoz, com Joaquim Luiz de Matos Santos, empregado de escritório, de 24 anos de idade. Adopta então o apelido Santos do marido (5). Em 1960, depois da morte do seu irmão Mariano da Conceição, dá continuidade à manufactura dos Bonecos de Estremoz na Olaria Alfacinha, conjuntamente com as suas cunhadas, Maria José Cartaxo da Conceição (1923-2013) e Teresa Cabaço Cid da Conceição (1922-1962)[1]. A oficina era então na Rua da Campainha, nº 18. Depois do falecimento de Teresa Cid em 1962 (9), Sabina continua a trabalhar com Maria José, até que motivos de natureza pessoal a levam a romper a sociedade e a trabalhar sozinha. Passa a fazê-lo no armazém da Olaria Alfacinha, situado na Rua Pedro Afonso, nº 1, donde transitou posteriormente na segunda metade dos anos 60 para a oficina da Rua Brito Capelo, nº 35. Esta era propriedade dum tio de Octávio Palmela, marido de Maria Luísa da Conceição e foi usado inicialmente como armazém da Sapataria Palmela, que ficava situada ao fundo da Rua Brito Capelo. Desactivado o armazém, o espaço foi arrendado a Sabina Santos. Ali trabalhou até se aposentar, em 1988, fixando-se então em Ribamar, Lourinhã.
A importância de Sabina na barrística popular estremocense é incomensurável. Por um lado, tomou a atitude corajosa de prosseguir com estilo muito próprio, a manufactura dos Bonecos de Estremoz, depois da morte de Mariano, fazendo assim com que a arte não se perdesse. Sabina nunca tinha confeccionado Bonecos, apenas vira o irmão fazê-los. Formou-se a ela própria, usando como modelos os Bonecos do seu irmão. Porém, os Bonecos de Sabina não se confundem com os de Mariano. As figuras não são tão corpulentas como as de Mariano, são mais magras e a representação dos olhos é completamente diferente. Em substituição duma pestana tangente à menina do olho, encimada por uma sobrancelha, Sabina, na representação do olhar, afasta da menina do olho, não só a sobrancelha como a pestana. Por outro lado, Sabina foi a barrista que mais discípulas formou: Isabel Carona, Fátima Estróia, Maria Inácia Fonseca e Perpétua Fonseca (Estas últimas com ela na fotografia). Algumas aparecem com ela no filme “Bonecos de Estremoz” (1), (2) que Lauro António realizou em 1976 e que se encontra disponível no YouTube.
Os Bonecos de Sabina eram comercializados, entre outros lugares, na Loja de Artigos Regionais da Olaria Alfacinha (Largo da República, 30) e no Stand da Olaria Alfacinha no Rossio Marquês de Pombal, em Estremoz.
A 13 de Setembro de 2004, morre o marido de Sabina Santos. Sabina vem a morrer a 19 de Abril de 2005, com a idade de 83 anos, tendo sido sepultada no cemitério de Ribamar (6),(3).
Sabina Santos está fortemente representada no acervo do Museu Municipal de Estremoz Professor Joaquim Vermelho, uma vez que o Município de Estremoz adquiriu à filha de Sabina, Professora Maria Leonor da Conceição Santos (1943-2014), uma colecção de mais de uma centena de figuras que a barrista executara ao longo da sua extensa carreira. Era a chamada colecção da mãe. Todavia, a Maria Leonor, que foi minha colega de Liceu, tinha outra colecção, que era a sua. Propôs-me a sua aquisição em 2012 e, embora não tenha adquirido tudo, adquiri um número bastante significativo de figuras, facto que me encheu e enche de orgulho, pois além, de gostar do trabalho de Sabina, conhecia-a pessoalmente, desde os meus tempos de juventude.

BIBLIOGRAFIA
1 - ANTÓNIO, Lauro. Entrevista a Sabina Santos. Estremoz, 1976. Arquivo de Lauro António.
2 - ANTÓNIO, Lauro. Filme Bonecos de Estremoz. Estremoz, 1976.
3 - GUERREIRO, Hugo. Morreu Sabina Santos in Brados do Alentejo nº 616, 29/04/2005. Estremoz, 2005 (pág. 16).
4 - MATOS, Hernâni. Entrevista a Maria Luísa da Conceição. Estremoz, 7 de Fevereiro de 2013. Arquivo de Hernâni Matos.
5 - Sabina Augusta da Conceição - Assento de Casamento nº 81 de 1942, da Conservatória do Registo Civil de Estremoz.
6 - Sabina Augusta da Conceição - Assento de Óbito nº 51 de 2005, da Conservatória do Registo Civil da Lourinhã.
7 - Sabina Augusta da Conceição - Processo Individual de aluna nº 174.
8 - Sabina Augusta da Conceição - Registo de Nascimento nº 351 de 1921, da Conservatória do Registo Civil de Estremoz.
9 - Teresa Cabaço Cid – Assento de Óbito nº 73 de 1962, da Conservatória do Registo Civil de Estremoz.




[1] Amélia, mulher de Jerónimo da Conceição e cunhada de Sabina, já havia falecido. Liberdade da Conceição também foi convidada para integrar a sociedade, mas não aceitou porque era uma pessoa muito doente. Esteve 6 anos internada no Sanatório do Outão, devido a uma tuberculose óssea na espinha dorsal e que a deixou paralítica. No fim do tratamento teve que aprender a andar (4).
Hernâni Matos

Berço do menino Jesus (dos putto). Sabina Santos.


Nossa Senhora da Conceição. Sabina Santos.


Nossa Senhora ajoelhada. Sabina Santos.


Pastor de tarro e manta. Sabina Santos.


Pastor das migas. Sabina Santos.


Pastor a comer. Sabina Santos.


Maioral e ajuda a comer. Sabina Santos.


Ceifeira. Sabina Santos.

Mulher da azeitona. Sabina Santos.

Mulher dos carneiros. Sabina Santos.


Mulher dos perus. Sabina Santos.


Mulher das galinhas. Sabina Santos.


Aguadeiro. Sabina Santos.


Leiteiro. Sabina Santos.


Mulher das castanhas. Sabina Santos.

Mulher a vender chouriços. Sabina Santos.


Homem do harmónio. Sabina Santos.


Lanceiro. Sabina Santos.


Lanceiro com bandeira. Sabina Santos.


Mulher a lavar a roupa. Sabina Santos.


Bailadeira pequena. Sabina Santos.


Amazona (assobio). Sabina Santos.


Peralta a cavalo (assobio). Sabina Santos.


Ceifeira. Sabina Santos.


Semeador. Sabina Santos.


Polícia do Exército. Sabina Santos.

sexta-feira, 19 de julho de 2019

Poesia Portuguesa - 093


José Régio. Lauro Corado (1908-1977).


TOADA DE PORTALEGRE
JOSÉ RÉGIO (1901-1969)

Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Morei numa casa velha,
velha grande tosca e bela
À qual quis como se fora
Feita para eu Morar nela...

Cheia dos maus e bons cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
- Quis-lhe bem como se fora
Tão feita ao gosto de outrora
Como ao do meu aconchego.

Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De montes e de oliveiras
Do vento suão queimada
(Lá vem o vento suão!,
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão...)
Em Portalegre, dizia,
Cidade onde então sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem fôr,
Na tal casa tosca e bela
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela,
Tinha, então,
Por única diversão,
Uma pequena varanda
Diante de uma janela

Toda aberta ao sol que abrasa,
Ao frio que tolhe, gela
E ao vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda
Derredor da minha casa,
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos oliveiras e sobreiros
Era uma bela varanda,
Naquela bela janela!

Serras deitadas nas nuvens,
Vagas e azuis da distância,
Azuis, cinzentas, lilases,
Já roxas quando mais perto,
Campos verdes e Amarelos,
Salpicados de Oliveiras,
E que o frio, ao vir, despia,
Rasava, unia
Num mesmo ar de deserto
Ou de longínquas geleiras,
Céus que lá em cima, estrelados,
Boiando em lua, ou fechados
Nos seus turbilhões de trevas,
Pareciam engolir-me
Quando, fitando-os suspenso
Daquele silêncio imenso,
Eu sentia o chão a fugir-me,
- Se abriam diante dela
Daquela
Bela
Varanda
Daquela
Minha
Janela,
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Na casa em que morei, velha,
Cheia dos maus e bons cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
À qual quis como se fora
Tão feita ao gosto de outrora
Como ao do meu aconchego...

Ora agora,
Que havia o vento suão
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão,
Que havia o vento suão
De se lembrar de fazer?

Em Portalegre, dizia,
Cidade onde então sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for,
Que havia o vento suão
De fazer,
Senão trazer
Àquela
Minha
Varanda
Daquela
Minha
Janela,
O testemunho maior
De que Deus
É protector
Dos seus
Que mais faz sofrer?

Lá num craveiro, que eu tinha,
Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem vida,
Poisou qualquer sementinha
Que o vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda,
Achara no ar perdida,
Errando entre terra e céus...,
E, louvado seja Deus!,
Eis que uma folha miudinha
Rompeu, cresceu, recortada,
Furando a cepa cansada
Que dava cravos sem vida
Naquela
Bela
Varanda
Daquela
Minha
Janela
Da tal casa tosca e bela
Á qual quis como se fora
Feita para eu morar nela...

Como é que o vento suão
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão,
Me trouxe a mim que, dizia,
Em Portalegre sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for,
Me trouxe a mim essa esmola,
Esse pedido de paz
Dum Deus que fere ... e consola
Com o próprio mal que faz?

Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for
Me davam então tal vida
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,
Me davam então tal vida

- Não vivida! sim morrida
No tédio e no desespero,
No espanto e na solidão,
Que a corda dos derradeiros
Desejos dos desgraçados
Por noites do vento suão
Já varias vezes tentara
Meus dedos verdes suados...

Senão quando o amor de Deus
Ao vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda,
Confia uma sementinha
Perdida entre terra e céus,
E o vento a trás à varanda
Daquela
Minha
Janela
Da tal casa tosca e bela
À qual quis como se fôra
Feita para eu morar nela!

Lá no craveiro que eu tinha,
Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem vida,
Nasceu essa acàciazinha
Que depois foi transplantada
E cresceu; dom do meu Deus!,
Aos pés lá da estranha casa
Do largo do cemitério,
Frente aos ciprestes que em frente
Mostram os céus,
Como dedos apontados
De gigantes enterrados...
Quem desespera dos homens,
Se a alma lhe não secou,
A tudo transfere a esperança
Que a humanidade frustrou:
E é capaz de amar as plantas,
De esperar nos animais,
De humanizar coisas brutas,
E ter criancices tais,
Tais e tantas!
Que será bom ter pudor
De as contar seja a quem for!

O amor, a amizade, e quantos
Sonhos de cristal sonhara,
Bens deste mundo! que o mundo
Me levara,
De tal maneira me tinham,
Ao fugir-me, Deixando só, nulo, atónito, A mim que tanto esperara
Ser fiel,
E forte,
E firme,
Que não era mais que morte
A vida que então vivia,
Auto-cadáver...

E era então que sucedia
Que em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Aos pés lá da casa velha
Cheia dos maus e bons cheiros
Das casa que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
- A minha acácia crescia.

Vento suão! obrigado...
Pela doce companhia
Que em teu hálito empestado
Sem eu sonhar, me chegava!

E a cada raminho novo
Que a tenra acácia deitava,
Será loucura!..., mas era
Uma alegria
Na longa e negra apatia
Daquela miséria extrema
Em que eu vivia,
E vivera,
Como se fizera um poema,
Ou se um filho me nascera.

JOSÉ RÉGIO (1901-1969)
Hernâni Matos


Praça do Príncipe Real. Lauro Corado (1908-1977). Câmara Municipal de Portalegre.