TOADA DE PORTALEGRE
JOSÉ RÉGIO (1901-1969)
Em Portalegre, cidade
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo,
cercada
De serras, ventos,
penhascos, oliveiras e sobreiros
Morei numa casa velha,
velha grande tosca e
bela
À qual quis como se fora
Feita para eu Morar
nela...
Cheia dos maus e bons cheiros
Das casas que têm
história,
Cheia da ténue, mas
viva, obsidiante memória
De antigas gentes e
traças,
Cheia de sol nas
vidraças
E de escuro nos
recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de
espantos,
- Quis-lhe bem como se
fora
Tão feita ao gosto de outrora
Como ao do meu
aconchego.
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo,
cercada
De montes e de oliveiras
Do vento suão queimada
(Lá vem o vento suão!,
Que enche o sono de
pavores,
Faz febre, esfarela os
ossos,
Dói nos peitos sufocados
E atira aos desesperados
A corda com que se
enforcam
Na trave de algum
desvão...)
Em Portalegre, dizia,
Cidade onde então sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem
fôr,
Na tal casa tosca e bela
À qual quis como se fora
Feita para eu morar
nela,
Tinha, então,
Por única diversão,
Uma pequena varanda
Diante de uma janela
Toda aberta ao sol que abrasa,
Ao frio que tolhe, gela
E ao vento que anda,
desanda,
E sarabanda, e ciranda
Derredor da minha casa,
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo,
cercada
De serras, ventos, penhascos
oliveiras e sobreiros
Era uma bela varanda,
Naquela bela janela!
Serras deitadas nas nuvens,
Vagas e azuis da
distância,
Azuis, cinzentas,
lilases,
Já roxas quando mais
perto,
Campos verdes e
Amarelos,
Salpicados de Oliveiras,
E que o frio, ao vir,
despia,
Rasava, unia
Num mesmo ar de deserto
Ou de longínquas
geleiras,
Céus que lá em cima,
estrelados,
Boiando em lua, ou
fechados
Nos seus turbilhões de
trevas,
Pareciam engolir-me
Quando, fitando-os
suspenso
Daquele silêncio imenso,
Eu sentia o chão a
fugir-me,
- Se abriam diante dela
Daquela
Bela
Varanda
Daquela
Minha
Janela,
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo,
cercada
De serras, ventos,
penhascos, oliveiras e sobreiros
Na casa em que morei,
velha,
Cheia dos maus e bons
cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas
viva, obsidiante memória
De antigas gentes e
traças,
Cheia de sol nas
vidraças
E de escuro nos
recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de
espantos,
À qual quis como se fora
Tão feita ao gosto de
outrora
Como ao do meu
aconchego...
Ora agora,
Que havia o vento suão
Que enche o sono de
pavores,
Faz febre, esfarela os
ossos,
Dói nos peitos
sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se
enforcam
Na trave de algum
desvão,
Que havia o vento suão
De se lembrar de fazer?
Em Portalegre, dizia,
Cidade onde então sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem
for,
Que havia o vento suão
De fazer,
Senão trazer
Àquela
Minha
Varanda
Daquela
Minha
Janela,
O testemunho maior
De que Deus
É protector
Dos seus
Que mais faz sofrer?
Lá num craveiro, que eu tinha,
Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem
vida,
Poisou qualquer
sementinha
Que o vento que anda,
desanda,
E sarabanda, e ciranda,
Achara no ar perdida,
Errando entre terra e
céus...,
E, louvado seja Deus!,
Eis que uma folha
miudinha
Rompeu, cresceu,
recortada,
Furando a cepa cansada
Que dava cravos sem vida
Naquela
Bela
Varanda
Daquela
Minha
Janela
Da tal casa tosca e bela
Á qual quis como se fora
Feita para eu morar
nela...
Como é que o vento suão
Que enche o sono de
pavores,
Faz febre, esfarela os
ossos,
Dói nos peitos
sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se
enforcam
Na trave de algum
desvão,
Me trouxe a mim que,
dizia,
Em Portalegre sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem
for,
Me trouxe a mim essa
esmola,
Esse pedido de paz
Dum Deus que fere ... e
consola
Com o próprio mal que
faz?
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem
for
Me davam então tal vida
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo,
cercada
De serras, ventos,
penhascos, oliveiras e sobreiros,
Me davam então tal vida
- Não vivida! sim morrida
No tédio e no desespero,
No espanto e na solidão,
Que a corda dos
derradeiros
Desejos dos desgraçados
Por noites do vento suão
Já varias vezes tentara
Meus dedos verdes
suados...
Senão quando o amor de Deus
Ao vento que anda,
desanda,
E sarabanda, e ciranda,
Confia uma sementinha
Perdida entre terra e
céus,
E o vento a trás à
varanda
Daquela
Minha
Janela
Da tal casa tosca e bela
À qual quis como se fôra
Feita para eu morar
nela!
Lá no craveiro que eu tinha,
Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem
vida,
Nasceu essa acàciazinha
Que depois foi
transplantada
E cresceu; dom do meu
Deus!,
Aos pés lá da estranha
casa
Do largo do cemitério,
Frente aos ciprestes que
em frente
Mostram os céus,
Como dedos apontados
De gigantes
enterrados...
Quem desespera dos
homens,
Se a alma lhe não secou,
A tudo transfere a
esperança
Que a humanidade
frustrou:
E é capaz de amar as
plantas,
De esperar nos animais,
De humanizar coisas
brutas,
E ter criancices tais,
Tais e tantas!
Que será bom ter pudor
De as contar seja a quem
for!
O amor, a amizade, e quantos
Sonhos de cristal
sonhara,
Bens deste mundo! que o
mundo
Me levara,
De tal maneira me
tinham,
Ao fugir-me, Deixando
só, nulo, atónito, A mim que tanto esperara
Ser fiel,
E forte,
E firme,
Que não era mais que
morte
A vida que então vivia,
Auto-cadáver...
E era então que sucedia
Que em Portalegre,
cidade
Do Alto Alentejo,
cercada
De serras, ventos,
penhascos, oliveiras e sobreiros
Aos pés lá da casa velha
Cheia dos maus e bons
cheiros
Das casa que têm
história,
Cheia da ténue, mas
viva, obsidiante memória
De antigas gentes e
traças,
Cheia de sol nas
vidraças
E de escuro nos
recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de
espantos,
- A minha acácia
crescia.
Vento suão! obrigado...
Pela doce companhia
Que em teu hálito
empestado
Sem eu sonhar, me
chegava!
E a cada raminho novo
Que a tenra acácia
deitava,
Será loucura!..., mas
era
Uma alegria
Na longa e negra apatia
Daquela miséria extrema
Em que eu vivia,
E vivera,
Como se fizera um poema,
Ou se um filho me
nascera.
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