quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Bonecos de Estremoz


Armando Alves. Pintor.
A existência dos Bonecos de Estremoz é conhecida há mais de trezentos anos e hoje são muitas as mãos de artistas populares que continuam a dar vida a estas figuras. A temática é, de uma maneira geral, baseada nas tarefas do dia a dia mas também em figuras religiosas, onde se destacam os presépios.
Foi por volta de 1945 que o escultor Sá Lemos, então director da Escola Industrial António Augusto Gonçalves, desafiou e incentivou a “Ti Ana das Peles” a trabalhar na recuperação de uma tradição adormecida que, a partir daí, se veio afirmando como uma actividade relevante na criação dos nossos artistas do barro, para o desenvolvimento do turismo local, para a economia da região, e para a afirmação do nome de Estremoz.
Muitos foram os artesãos que, depois da Ti Ana das Peles se foram afirmando e criando à sua maneira os Bonecos de Estremoz.
Sem querer ser injusto para ninguém quero referir apenas aqueles com quem tive mais proximidade. Desde logo, e porque ainda felizmente estão em actividade, “As Irmãs Flores”, a Maria Inácia Fonseca e a Perpétua Sousa Fonseca, que têm sabido dar continuidade ao que de melhor se tem feito para preservar o bom nome dos Bonecos de Estremoz sendo ainda de realçar o sentido pedagógico que manifestaram ao lançar nestes caminhos da arte do barro, o seu sobrinho Ricardo Fonseca, um jovem com talento que nos dá confiança para o futuro.
Antes tinha conhecido o José Moreira, ainda como empregado na Olaria Alfacinha, com quem privei bastante. Tinha no quintal uns tanques onde transformava a terra em barro para poder ser moldado e, depois de cozido, ser pintado pelas mãos sensíveis de sua mulher Josefina Augusta Ferreira.
Conheci ainda a Maria Luísa da Conceição que tinha uma forte ligação a esta actividade, muito influenciada pela família, tendo conseguido afirmar a sua marca pessoal no fabrico dos seus bonecos.
Por último, sendo o primeiro, o Mestre Mariano Alfacinha. Professor de olaria na Escola Industrial de Estremoz, que frequentei quando tinha treze anos e onde aprendi com ele a arte de trabalhar o barro. Estou a vê-lo com aquelas mãos grossas e sapudas, enormes e ao mesmo tempo delicadas, a mexer no barro e tratá-lo por tu porque o conhecia como ninguém. Foi com ele que aprendi também a fazer Bonecos de Estremoz. Não fiz muitos, talvez uma centena que vendia a vinte e cinco tostões na Papelaria Ruivo, da minha tia Joana Ruivo em Estremoz.
Ainda hoje guardo o último exemplar desses bonecos, “O Homem do Harmónio”, a quem um dia destes ouvi tocar uma modinha a propósito da proclamação dos Bonecos de Estremoz a Património Cultural Imaterial da Humanidade.
Armando Alves
Pintor
(Texto publicado no jornal E nº 190, de 28-12-2017)

Hernâni Matos

quarta-feira, 10 de janeiro de 2018

BONECOS DE ESTREMOZ - Semear para colher


Semeador (1987). Liberdade da Conceição (1913-1990). Colecção particular.

A recente inscrição da "Produção de Figurado em Barro de Estremoz" na “Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade” integrou a cidade de Estremoz na rota do Património Cultural Imaterial da Humanidade. Daqui resultará um previsível incremento do turismo cultural, com reflexos importantes em termos da economia local. Todavia, a cidade “não se pode encostar à sombra da bananeira”. Pelo contrário, tal como sentencia o adagiário português, "Quem semeia, colhe" e "Cada um colhe segundo semeia".
Foi o Município de Estremoz que teve a iniciativa de apresentar a candidatura da “Produção de Figurado em Barro de Estremoz" à inscrição na “Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade”. É pois a ele que cabe a responsabilidade de tomar iniciativas diversificadas, visando divulgar, exaltar, salvaguardar e valorizar aquele registo, bem como a Memória dos barristas que já partiram e que com o seu trabalho também constituíram pilares duma candidatura vencedora.
Como é meu timbre, reflecti aprofundadamente em torno de toda esta temática e conclui existir uma mão cheia de iniciativas que podem ser tomadas nos sentidos atrás apontados e algumas que a meu ver, terão mesmo que inexoravelmente ser consumadas. Naturalmente que cabe ao Município e só a ele, tomar decisões, o que de modo algum é impeditivo de aqui apresentar sugestões que foram sistematizadas em 4 grandes grupos: Prioridades, Barristas, Eventos e Edições.
Prioridades
- Registar as designações “Bonecos de Estremoz” e “Figurado em Barro de Estremoz” como exclusivas do Município e as marcas homónimas como exclusivas dos barristas certificados pelo Município de Estremoz; - Instalar “outdoors” de dimensão adequada nos acessos às entradas da cidade, salientando a classificação da produção do Figurado em Barro de Estremoz como Património Cultural da Humanidade; - Criar um Centro Interpretativo do Figurado de Estremoz; - Erigir em Estremoz um monumento exaltador da produção de Figurado em Barro de Estremoz.
Barristas
- Certificar os barristas vivos cujo trabalho serviu de fundamento à candidatura apresentada à UNESCO e cuja produção artesanal se integra no processo de produção, dito “ao modo de Estremoz”; - Criar um selo certificador da condição de Património Cultural Imaterial da Humanidade a ser usado por cada barrista certificado pelo Município; - Implementar na cidade uma sinalética adequada que indique a localização das oficinas dos barristas; - Colocar uma lápide em mármore na fachada da oficina de cada um dos barristas falecidos, assinalando que trabalharam ali; - Atribuir a ruas de Estremoz nomes de barristas falecidos que foram esquecidos na mais recente atribuição de nomes a ruas da cidade. São eles: Ana das Peles, Sabina Santos, José Moreira, António Lino de Sousa, Mário Lagartinho, Isabel Carona e Aclénia Pereira;
Eventos
- Adoptar o Figurado em Barro de Estremoz como tema integrador do CARNAVAL DE ESTREMOZ 2018 e elemento de decoração na FIAPE 2018 e na COZINHA DOS GANHÕES 2018; - Promover eventos centrados na produção do Figurado em Barro de Estremoz: a) Exposição de colecções particulares; b) Exposição bibliográfica; c) Concursos de Desenho e Pintura, abertos a todos os graus de ensino do concelho, seguidos de exposições nas escolas em que foram realizados; d) Jogos Florais de âmbito nacional, na modalidade de quadra, soneto, poesia livre e décimas sujeitas a mote. Posteriormente, editar em livro as produções literárias submetidas a concurso; e) Encontro de Poetas Populares que declamariam décimas sujeitas a mote. Posteriormente, editar em livro as produções apresentadas no Encontro; f) Concurso de Fotografia, seguido de uma exposição num espaço exposicional municipal e nas sedes das Juntas de Freguesia; g) Seminário Interdisciplinar sobre Figurado de Estremoz, envolvendo professores do concelho das seguintes áreas: Artes, Biologia, Ciências Sociais, Filosofia, Física e Química, História, Português e Religião e Moral. Posteriormente, editar em livro as comunicações do Seminário; - Organizar em 2018, as 3ªs JORNADAS PARA A SALVAGUARDA DO PATRIMÓNIO CULTURAL IMATERIAL DO ALENTEJO em parceria com a Associação Portuguesa para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial; - Promover a formação de professores do concelho da área das Artes, na produção do Figurado em Barro de Estremoz, de modo que estes possam ensinar os alunos, visando assim despertar vocações; - Incentivar a realização de visitas guiadas ao Museu Municipal e às oficinas dos barristas.
Edições
- Produzir uma 2ª impressão no papel timbrado do Município (envelopes e folhas de ofícios), de modo que neles figure uma referência à classificação da produção do Figurado em Barro de Estremoz como Património Cultural da Humanidade; - Agir junto dos Correios de Portugal, visando uma emissão de selos de correio e de um inteiro postal; - Promover edições centradas na produção do Figurado em Barro de Estremoz: a) Cartaz encomendado a um artista plástico de nomeada e que poderia ser distribuído por embaixadas e consulados estrangeiros em Portugal, bem como embaixadas e consulados portugueses no estrangeiro. Poderia ser ainda distribuído por câmaras municipais, agências de viagens, estações de metro, terminais de autocarros e aeroportos; b) Livros sobre o Figurado em Barro de Estremoz;
c) Medalha em bronze, comemorativa da classificação da produção do Figurado em Barro de Estremoz como Património Cultural da Humanidade; d) Colecção de postais ilustrados reproduzindo exemplares de Figurado em Barro de Estremoz dos séc. XVIII e XIX, do acervo do Museu Municipal, a serem comercializados num estojo em cartolina, tendo impressa uma resenha histórica sobre a produção do Figurado em Barro de Estremoz; e) Colecção de postais ilustrados reproduzindo exemplares de Figurado em Barro de Estremoz, de barristas vivos ou já falecidos dos séc. XX e XXI, a serem comercializados num estojo em cartolina, tendo impressa uma resenha biográfica de cada barrista; f) Colecção de marcadores de livros, reproduzindo exemplares de Figurado em Barro de Estremoz dos sécs. XVIII e XIX, do acervo do Museu Municipal; g) Cartões de Boas Festas com presépios de Estremoz e cartões de Dia dos Namorados ilustrados com o “Amor é cego”; h) Calendários de bolso; i) Jogos (baralho de cartas, ludo, puzzles bidimensionais, puzzles de cubo); j) Objectos de uso escolar (cadernos, esferográficas, lápis, caixas de lápis de cor); k) Pin metálico, exaltador da inscrição da produção do Figurado em Barro de Estremoz na Lista Representativa do Património Cultural da Humanidade;
Nota final
Alguns dirão que pensei muito ou até demasiado nisto tudo. Pela minha parte direi que pensei e repensei bastante, já que como proclama o rifonário português “O bem pensado nunca sai errado” e “Mal pensa quem não repensa”. “Envergonhe-se quem nisto vê malícia”, uma vez que o meu envolvimento em toda esta reflexão é fruto da motivação suscitada em mim pelos Bonecos de Estremoz, os quais transporto na massa do sangue.

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Os bonecos de Estremoz


Margarida Maldonado. Educadora de Infância e Pintora

Sou alentejana de alma e coração, nascida em Estremoz onde vivi a infância e adolescência, antes de partir para a cidade grande onde me formei em Educação de Infância. Volto recorrentemente a Estremoz, os bonecos que trouxe comigo chamam-me à minha cidade. Feitos com terra-mãe e com alma são bem a expressão da beleza e do amor que os artistas artesãos da nossa terra conseguiram ao longo de séculos dar testemunho. Neles há um misto de Ternura, pela forma tão simples e ao mesmo tempo sábia, como estes nos souberam transmitir a história da vida rural e social nas suas diversas dimensões, fazendo-nos sentir emoções que são transversais a qualquer idade. Festa e Imaginação porque as cores que usam não são mais do que as cores dos nossos campos nas diversas estações do ano, das tonalidades do pôr do sol, do imenso céu azul e do branco do casario, acrescentando-lhes pormenores de beleza que nos enchem a alma e nos convidam a sonhar.
A linguagem dos bonecos tão simples e chamativa, apreciada por todas as gerações, está muito próxima das crianças parecendo as figuras terem sido concebidas a pensar nos mais pequenos. A colecção de apitos com figuras de pombas e de galos considerados brinquedos, é-lhes certamente dedicada.
A gentileza que transparece nesta arte, a todos tocou e marcou ao longo da vida. Admirando as figuras recordam-se histórias que se entretecem na nossa memória colectiva onde usos e costumes da nossa terra nos aparecem de uma forma tão natural.
Quem não conhece o famoso e delicado “Presépio de Estremoz” com os seus andares onde se colocam as figuras principais? Quem não teve já ocasião de admirar o trabalho encantatório das cantarinhas ou dos pucarinhos enfeitados (fidalguinhos), sabiamente pintados de cores garridas e ornamentados de flores?
 “A Primavera” (a minha preferida), é uma figura poética cheia de significado, lembra-nos a urgência de renovação e de esperança para que possamos renascer a cada dia como melhores pessoas.
No meu trabalho enquanto artista plástica eles foram sempre uma referência não só pelas belas cores, mas também pelas formas que me transportam para um universo poético que me é particular.
Os bonecos de Estremoz até agora só nossos e TÃO NOSSOS, foram reconhecidos como Património Cultural e Imaterial da Humanidade. Nada mais justo e expectável! Que o mundo todo possa conhecê-los e deliciar-se com tão especial beleza!
Parabéns a todos os que se implicaram nesta candidatura! Parabéns aos artistas artesãos que não deixaram morrer esta arte de que todos nos orgulhamos! Finalmente Parabéns a todos nós Estremocenses que estamos maiores e mais internacionais.
Margarida Maldonado
Educadora de Infância e Pintora
(Texto publicado no jornal E nº 191, de 11-01-2018) 


Hernâni Matos

terça-feira, 2 de janeiro de 2018

PALÁCIO TOCHA: Não bate a bota com a perdigota


Palácio Tocha em Estremoz, antes das obras de reconstrução e adaptação, visando
a instalação do Museu Berardo-Estremoz. Fotografia do autor.

De acordo com o jornal “on line” TRIBUNA ALENTEJO, do passado dia 3 de Dezembro, disponível em https://www.tribunaalentejo.pt/artigos/museu-berardo-estremoz, o Museu Berardo vai ser instalado no Palácio Tocha em Estremoz, após obras de adaptação de 2,5 milhões de euros, comparticipadas em 75% por fundos comunitários, que começarão ainda este ano. O jornal refere ainda que “A cerimónia de assinatura do contrato de empreitada da obra decorreu, esta semana, no Salão Nobre da Câmara de Estremoz, na presença do presidente da Coleção Berardo, Joe Berardo, e do presidente do município, Luís Mourinha, sendo que a abertura do museu está prevista para o verão de 2019.”.
Esmiuçando a notícia, verifica-se que “Não bate a bota com a perdigota”. Na verdade, à data de 3 de Dezembro, o presidente da edilidade Luís Mourinha não se encontrava em Estremoz, pois tinha partido para a República da Coreia, onde no Centro Internacional de Convenções Jeju, na ilha de Jeju, presidiu à delegação estremocense que ali se deslocou à 12.ª Reunião do Comité Intergovernamental da UNESCO, em apoio da candidatura estremocense à inscrição da "Produção de Figurado em Barro de Estremoz" na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade.
Para além disso, consultando o website do “ALENTEJO 2000”, Programa Operacional Regional do Alentejo para o período 2014-2020, disponível em:
http://www.alentejo.portugal2020.pt/index.php/projetos-aprovados/category/73-projetos-aprovados, constata-se que a Operação designada por “Museu Berardo Estremoz” e com código ALT20-08-2114-FEDER-000050, da qual é beneficiária a  “ASSOCIAÇÃO DE COLECÇÕES”, presidida por Joe Berardo, foi inscrita no Eixo Prioritário  do Plano Operacional “8-Ambiente e Sustentabilidade”. As “Despesas Elegíveis Totais Atribuídas à Operação” foram 3.475.871,34 euros, sendo o “Fundo Total Aprovado” 2.606.903,51 euros, ou seja 75%. Há uma diferença de 106.903,51 euros a mais em relação ao valor indicado pela notícia da TRIBUNA ALENTEJO, montante que não corresponde propriamente a uns “trocos”. 
O que a TRIBUNA ALENTEJO não diz e o público gostaria de saber, é quem é que paga os 25% que não foram financiados pelo FEDER. De salientar ainda que à data de encerramento da presente edição do “E” (26 de Dezembro), não se vislumbra o início de quaisquer obras no Palácio Tocha.

domingo, 31 de dezembro de 2017

Más-línguas contra a imprensa local


Conversa de comadres. José Lutzenberger (1926-2002).

Estremoz tem dois jornais: o “E” e o “Brados do Alentejo”. Cada um com os seus leitores e colaboradores, o que não impede que haja inúmeras pessoas como eu, que são leitoras tanto de um como do outro. E não é caso para menos, já que sendo ambos quinzenários, saem em semanas alternadas, pelo que cada um “está em cima” dos seus próprios acontecimentos.
No meu caso sou até colaborador dos dois, não só pelo prazer da escrita e pelo dever cívico de escrever, mas também porque me revejo no Estatuto Editorial de qualquer deles. São jornais plurais onde sobressai a procura da actualidade e do rigor da informação, tanto local como regional. São jornais que têm os seus próprios colunistas, cada um na sua própria trincheira, defendendo os valores que integram o seu ideário e que por lhe serem gratos, procuram legitimamente divulgar junto dos leitores.
Numa sociedade democrática é insubstituível o papel informativo e formativo duma imprensa livre e insubmissa, que tanto rejeita mordaças e grilhões, como vendas nos olhos. Daí que como corolário único dessa postura cívica, só uma atitude jornalística era possível, face à atitude do Município de, em boa hora, ter apresentado a candidatura da “Produção de Figurado em Barro de Estremoz”, visando a sua inscrição na “Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade”. Foi assim que cada um dos jornais, cada um à sua maneira, desde sempre foi relatando os comunicados de imprensa do Município, dando conta dos diversos passos duma candidatura que para nosso gáudio se foi consolidando no decurso do tempo, desmentindo os vaticínios malévolos de alguns profetas da desgraça.
Todavia há quem por desdém ou por soberba, grite aos quatro ventos: - “Jornais? Nem os lemos.”. Fazendo fé que assim seja, o que não é certo, devem ter quem os leia por eles e que omitiu que os jornais locais, desde sempre cobriram jornalisticamente aquela candidatura. Carece assim de qualquer sentido e é completamente despropositado, virem agora a terreiro, clamar que antes da vitória da candidatura, a imprensa local não se referiu a ela. Trata-se duma atoarda soez que cabe aqui denunciar.
Pela parte que me cabe, redigi textos sobre a candidatura que subscritos com o meu nome, foram publicados no jornal “E” e não fui o único. Para além disso, desde 2014 e durante 70 quinzenas, mantive no jornal “Brados do Alentejo” uma secção onde, como franco-atirador e guerrilheiro ao serviço de causas nobres, pus o meu verbo e o resto da gramática ao serviço da candidatura dos Bonecos de Estremoz a Património Cultural Imaterial da Humanidade. Essa secção foi uma trincheira e uma tribuna que visou potenciar e levar a bom termo, através do seu contributo, a candidatura com a qual desde sempre me identifiquei, já que os bonecos de Estremoz me estão na massa do sangue.


sábado, 30 de dezembro de 2017

Poesia portuguesa - 087




Ano Novo
Fernando Pessoa (1888-1935)

Ficção de que começa alguma coisa!
Nada começa: tudo continua.
Na fluida e incerta essência misteriosa
Da vida, flui em sombra a água nua.
Curvas do rio escondem só o movimento.
O mesmo rio flui onde se vê.
Começar só começa em pensamento.

Fernando Pessoa (1888-1935)

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Eu e os Bonecos de Estremoz


Hernâni Matos e alguns dos seus Bonecos. Fotografia de Fátima Fernandes.

Coleccionar Bonecos de Estremoz
Uma das coisas que colecciono são Bonecos de Estremoz, os quais descobri há cerca de quarenta anos. E digo que descobri porque, efectivamente, nado e medrado em Estremoz, tinha os olhos abertos, mas não via, como acontece a muito boa gente. Até que um dia, os meus olhos foram para além da missão elementar de observar o óbvio. Então, a minha retina transmitiu às redes neuronais um impulso nervoso que se traduziu numa emoção com um misto de estético e de sociológico. Foi tiro e queda a minha atracção pelos Bonecos de Estremoz.
Bonecos que duplamente têm a ver com a nossa identidade cultural estremocense e alentejana, Bonecos que, antes de tudo, são arte popular, naquilo que de mais nobre, profundo e ancestral, encerra este exigente conceito estético-etnológico.
Bonecos moldados pelas mãos do povo, a partir daquilo que a terra dá - o barro com que porventura Deus terá modelado o primeiro homem no sexto dia da criação do Mundo, tal como nos diz o Génesis.
Foi com esse mesmo barro que as bonequeiras de setecentos começaram a criar aquilo que se convencionou chamar “Bonecos de “Estremoz”. Bonecos que nascem nus e depois vão sendo vestidos e enfeitados, que os Bonecos também são vaidosos. Bonecos que depois de secos, são cozidos no forno e pintados com cores minerais já utilizadas pelos artistas rupestres de Lascaux e Altamira no Paleolítico, mas aqui garridas e alegres, como é timbre das claridades do Sul. Por fim, são protegidos com verniz.
Invariância e mutabilidade nos Bonecos de Estremoz
Os Bonecos de Estremoz são pela sua excelência, notórias marcas de identidade desta terra transtagana. E são-no duma maneira que supera o estatismo e que se torna dinâmica. É que a manufactura de cada boneco encerra em si duas componentes distintas: a invariância e a mutabilidade.
Em primeiro lugar, invariância, porque encerram em si mesmos traços de identidade que se mantêm de barrista para barrista, tal como o gesto augusto do semeador reproduz ancestrais trejeitos padrão.
Em segundo lugar, mutabilidade, já que cada barrista tem a sua própria individualidade, o seu próprio modo de observar o mundo que o cerca e de o interpretar à sua maneira. Lá diz o rifão: “Quem conta um conto, aumenta um ponto”. É assim que cada barrista, sem pôr em causa a essência temática de cada figura, acrescenta-lhe pormenores através dos quais fixa a posição da mesma ou sugere movimento, bem como pormenores do vestuário e dos utensílios usados, assim como particularidades da actividade desenvolvida. Com esta mutabilidade, os Bonecos de Estremoz transvazam a mera produção monolítica e ascendem a novos patamares em que se revigoram, qual Fénix renascida das cinzas, o que vem acontecendo desde a sua génese.
Marcas de identidade
A matriz identitária do figurado de Estremoz distribui-se por quatro níveis distintos.
Em primeiro lugar a manufactura “sui-generis” que a distingue de todo o figurado português.
Em segundo lugar é notória a identidade cultural alentejana. As figuras são muitas das vezes protagonistas das fainas agro-pastoris do Alentejo de antanho, envergando os seus trajes populares. São um relato fiel dos ciclos de produção, dos usos e costumes, bem como da gastronomia. A identidade cultural regional está, de resto, presente no alegre e garrido cromatismo das imagens, que reflecte as claridades do Sul.
Em terceiro lugar é patente também uma identidade cultural local, que tem a ver com o quotidiano das gentes, com a vida íntima na comunidade, com o respeito pela instituição militar, com a veneração pelos santos da Igreja Católica e com a comemoração de festas cíclicas.
Em quarto e último lugar estão as marcas de identidade de autor, gravadas ou estampadas na base dos Bonecos ou no interior das peças ocas. São marcas através das quais os bonequeiros assumem a maternidade ou a paternidade de cada peça nascida das suas mãos. Afirmação legítima da auto-estima dos barristas, que nos relembra as siglas gravadas pelos pedreiros medievais nas pedras que afeiçoavam e que transmitiam a mensagem “Esta pedra é Obra minha”.
As marcas de identidade de autor, além de identificarem o artesão, permitem balizar o período de manufactura das figuras, na medida em que os artífices no decurso da sua actividade vão, por vezes, utilizando marcas distintas. Todavia, não só as marcas de autor permitem identificar o bonequeiro, já que cada um tem o seu próprio modo de observar o mundo que o cerca e de o interpretar, legando traços de identidade pessoal nas peças que manufactura e que são marcas indeléveis que permitem identificar o seu autor.
Tradição, inovação e mudança de paradigma
Na galeria dos Bonecos de Estremoz é possível identificar um núcleo central de cerca de 100 figuras que são produzidas pelos barristas de hoje, à semelhança do que fizeram os seus antecessores, ainda que cada um lhe confira as suas próprias marcas de identidade. São os chamados “Bonecos da tradição”.
O trabalho de cada barrista não se esgota, porém, na feitura dos “Bonecos da tradição”. Por sua própria iniciativa, fruto de encomenda ou por sugestão de alguém, os barristas são levados a criar novas figuras que até então ninguém fizera. São aquilo que podemos designar por “Bonecos da inovação”, mas que respeitam o ancestral processo de fabrico dos Bonecos de Estremoz.
Bonecos de Estremoz - Património Cultural Imaterial da Humanidade
Cada boneco de Estremoz fala-nos de um contexto antropológico, social ou religioso. Fala-nos também do seu criador e dos sonhos que lhe povoam a mente. Fala-nos ainda das técnicas ancestrais que o artista popular domina e que lhe brotam à flor das mãos.
Cada boneco é fruto de uma relação de amor de quem procura fazer tudo a partir do nada que é a massa informe de barro. Todavia é também a expressão viva do ganha-pão diário de quem tem necessidade de assegurar a sua subsistência e a dos seus.
Cada boneco é um panfleto de cores garridas e de claridades do sul, próprias desta terra transtagana.
Tomar um boneco nas mãos é criar sinestesias que envolvem os nossos cinco sentidos. É como possuir uma bela mulher que nos enche as medidas e por quem sentimos exactamente o mesmo desejo da semente que fecunda a Terra-Mãe. Por isso, eu amo os Bonecos de Estremoz. Daí que tenha subscrito com alma e coração a sua Candidatura a Património Cultural Imaterial da Humanidade.