Hernâni Matos e alguns dos seus Bonecos. Fotografia de Fátima Fernandes.
Coleccionar Bonecos de Estremoz
Uma das coisas que
colecciono são Bonecos de Estremoz, os quais descobri há cerca de quarenta anos.
E digo que descobri porque, efectivamente, nado e medrado em Estremoz, tinha os
olhos abertos, mas não via, como acontece a muito boa gente. Até que um dia, os
meus olhos foram para além da missão elementar de observar o óbvio. Então, a
minha retina transmitiu às redes neuronais um impulso nervoso que se traduziu
numa emoção com um misto de estético e de sociológico. Foi tiro e queda a minha
atracção pelos Bonecos de Estremoz.
Bonecos que duplamente
têm a ver com a nossa identidade cultural estremocense e alentejana, Bonecos
que, antes de tudo, são arte popular, naquilo que de mais nobre, profundo e ancestral,
encerra este exigente conceito estético-etnológico.
Bonecos moldados pelas
mãos do povo, a partir daquilo que a terra dá - o barro com que porventura Deus
terá modelado o primeiro homem no sexto dia da criação do Mundo, tal como nos
diz o Génesis.
Foi com esse mesmo barro
que as bonequeiras de setecentos começaram a criar aquilo que se convencionou
chamar “Bonecos de “Estremoz”. Bonecos que nascem nus e depois vão sendo
vestidos e enfeitados, que os Bonecos também são vaidosos. Bonecos que depois
de secos, são cozidos no forno e pintados com cores minerais já utilizadas
pelos artistas rupestres de Lascaux e Altamira no Paleolítico, mas aqui
garridas e alegres, como é timbre das claridades do Sul. Por fim, são
protegidos com verniz.
Invariância e mutabilidade nos Bonecos
de Estremoz
Os Bonecos de Estremoz
são pela sua excelência, notórias marcas de identidade desta terra transtagana.
E são-no duma maneira que supera o estatismo e que se torna dinâmica. É que a
manufactura de cada boneco encerra em si duas componentes distintas: a
invariância e a mutabilidade.
Em primeiro lugar,
invariância, porque encerram em si mesmos traços de identidade que se mantêm de
barrista para barrista, tal como o gesto augusto do semeador reproduz
ancestrais trejeitos padrão.
Em segundo lugar,
mutabilidade, já que cada barrista tem a sua própria individualidade, o seu
próprio modo de observar o mundo que o cerca e de o interpretar à sua maneira.
Lá diz o rifão: “Quem conta um conto, aumenta um ponto”. É assim que cada barrista,
sem pôr em causa a essência temática de cada figura, acrescenta-lhe pormenores
através dos quais fixa a posição da mesma ou sugere movimento, bem como
pormenores do vestuário e dos utensílios usados, assim como particularidades da
actividade desenvolvida. Com esta mutabilidade, os Bonecos de Estremoz
transvazam a mera produção monolítica e ascendem a novos patamares em que se
revigoram, qual Fénix renascida das cinzas, o que vem acontecendo desde a sua
génese.
Marcas de identidade
A matriz
identitária do figurado de Estremoz distribui-se por quatro níveis distintos.
Em primeiro lugar a
manufactura “sui-generis” que a distingue de todo o figurado
português.
Em segundo lugar é
notória a identidade cultural alentejana. As figuras são muitas das vezes protagonistas
das fainas agro-pastoris do Alentejo de antanho, envergando os seus trajes
populares. São um relato fiel dos ciclos de produção, dos usos e costumes, bem
como da gastronomia. A identidade cultural regional está, de resto, presente no
alegre e garrido cromatismo das imagens, que reflecte as claridades do Sul.
Em terceiro lugar é
patente também uma identidade cultural local, que tem a ver com o quotidiano
das gentes, com a vida íntima na comunidade, com o respeito pela instituição
militar, com a veneração pelos santos da Igreja Católica e com a comemoração de
festas cíclicas.
Em quarto e último
lugar estão as marcas de identidade de autor, gravadas ou estampadas na base
dos Bonecos ou no interior das peças ocas. São marcas através das quais os
bonequeiros assumem a maternidade ou a paternidade de cada peça nascida das
suas mãos. Afirmação legítima da auto-estima dos barristas, que nos relembra as
siglas gravadas pelos pedreiros medievais nas pedras que afeiçoavam e que
transmitiam a mensagem “Esta pedra é Obra minha”.
As marcas de identidade
de autor, além de identificarem o artesão, permitem balizar o período de
manufactura das figuras, na medida em que os artífices no decurso da sua
actividade vão, por vezes, utilizando marcas distintas. Todavia, não só as
marcas de autor permitem identificar o bonequeiro, já que cada um tem o seu
próprio modo de observar o mundo que o cerca e de o interpretar, legando traços
de identidade pessoal nas peças que manufactura e que são marcas indeléveis que
permitem identificar o seu autor.
Tradição, inovação e mudança de
paradigma
Na galeria dos Bonecos
de Estremoz é possível identificar um núcleo central de cerca de 100 figuras
que são produzidas pelos barristas de hoje, à semelhança do que fizeram os seus
antecessores, ainda que cada um lhe confira as suas próprias marcas de
identidade. São os chamados “Bonecos da tradição”.
O trabalho de cada
barrista não se esgota, porém, na feitura dos “Bonecos da tradição”. Por sua
própria iniciativa, fruto de encomenda ou por sugestão de alguém, os barristas
são levados a criar novas figuras que até então ninguém fizera. São aquilo que
podemos designar por “Bonecos da inovação”, mas que respeitam o ancestral
processo de fabrico dos Bonecos de Estremoz.
Bonecos de Estremoz - Património
Cultural Imaterial da Humanidade
Cada boneco de Estremoz
fala-nos de um contexto antropológico, social ou religioso. Fala-nos também do
seu criador e dos sonhos que lhe povoam a mente. Fala-nos ainda das técnicas
ancestrais que o artista popular domina e que lhe brotam à flor das mãos.
Cada boneco é fruto de
uma relação de amor de quem procura fazer tudo a partir do nada que é a massa
informe de barro. Todavia é também a expressão viva do ganha-pão diário de quem
tem necessidade de assegurar a sua subsistência e a dos seus.
Cada boneco é um
panfleto de cores garridas e de claridades do sul, próprias desta terra
transtagana.
Tomar um boneco nas mãos
é criar sinestesias que envolvem os nossos cinco sentidos. É como possuir uma
bela mulher que nos enche as medidas e por quem sentimos exactamente o mesmo
desejo da semente que fecunda a Terra-Mãe. Por isso, eu amo os Bonecos de
Estremoz. Daí que tenha subscrito com alma e coração a sua Candidatura a
Património Cultural Imaterial da Humanidade.
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