sexta-feira, 4 de maio de 2018

Bonecos de Estremoz: não há identidades puras


Álvaro Borralho (Sociólogo)

Em 1993, no âmbito do curso de Sociologia no ISCTE (Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa), hoje ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa, apresentei uma dissertação de licenciatura, obrigatória na altura, designada As Artes do Barro. Contribuição para o estudo dos Bonecos de Estremoz. Realizada no espaço académico de um Seminário de Sociologia da Cultura, pretendia com este estudo, tal como se diz na Introdução, alargar a pesquisa ao conjunto dos barristas que na altura se dedicavam à produção de bonecos, assim como ao conjunto de agentes individuais e institucionais que difundiam, comercializavam e que, de alguma forma, tinham contacto com a barrística. Um ano antes tinha realizado um estudo apenas com os Irmãos Ginja – devido ao facto de o seu enquadramento ser completamente distinto dos restantes – e o alargamento permitia inquirir não só o quadro da produção e comercialização bonequeira, nas mãos dos barristas, mas sobretudo da difusão, lógica que, como se defende na dissertação, escapa aos barristas. Tudo possibilitado pelo olhar de dentro de Joaquim Vermelho, sempre disposto a partilhar os seus conhecimentos coms os outros, incansável no disponibilizar de informação e de debater os temas que sempre o apaixonaram. Ficará para sempre na memória uma visita que fizemos ao Museu em que ele foi falando de cada local, de cada vitrine, de cada material exposto e assim o percorremos todo. Mais de 2 horas de visita, na qual toda a informação foi gravada, pois de outra forma seria impossível registá-la.
O estudo é de Sociologia e este é o seu compromisso central. Quer isto dizer, que não se trata de uma defesa dos bonecos, nem de um ataque, mas de uma visão problematizadora e crítica desta produção artesanal. Quem quiser lá encontrar um discurso de defesa da patrimonialização ou de justificação ideológica da barrística, o que vai dar no mesmo, sairá desiludido. Por outras palavras, o estudo prossegue objectivos que não se limitam ao uso instrumental, simbólico e político dos bonecos. Aliás, esta é justamente uma dimensão de análise, aquela talvez que gere mais controvérsia por inquirir os quadros mentais subjacentes à defesa, valorização e revalorização do artesanato em geral, e da barrística em particular. Em suma, e para lá do discurso ahistórico e vago, os bonecos de Estremoz não escaparam, nem escapam, às tendências mais gerais de valorização do artesanato, de uso instrumental e ideológico e de enquadramento político que cruzam com certos desenvolvimentos históricos nacionais. Em especial, em certos períodos: nos finais do século XIX, altura em que são recuperados pelo patriarca da família Alfacinha, cruzam com o movimento romântico de recuperação de tradições por oposição à sociedade científica-industrial a despontar. Depois, com o início do Estado Novo, como revalorização do ser português e base da ideologia do regime, que coincide com a recuperação encetada por Sá Lemos. E, finalmente, já no período democrático, aproveitando da valorização geral do artesanato como expressão do povo – “arte do povo” – na senda da revalorização de tudo o que é popular. O conjunto de feiras, certames, exposições, o museu municipal (com dois barristas ao vivo), as publicações, etc., tudo isto junto contribuiu e reforça o carácter de uma difusão assente na patrimonialização e na apropriação ideológica duma produção com vista à sua manutenção, mas fora do controlo dos próprios barristas. Ou seja, e o estudo conclui assim: não há identidades puras, as identidades são sincréticas, quer dizer, impuras, com contradições, confusas. E os bonecos de Estremoz não escapam a esta lógica: não há uma identidade dos bonecos, há identidades (no plural), quer dizer, tendências diversas, várias visões, concepções e estratégias para as quais concorrem diversos agentes que não só os barristas.
É este, em resumo, a conclusão do estudo. De como a partir de uma mera produção em barro, quase desaparecida em finais do séc. XIX, e sobretudo realizada e recuperada para proveito económico, se chegou ao séc. XX, com várias visões, tendências e investimentos, materiais e simbólicos, num campo (o conceito sociológico nuclear da pesquisa) atravessado por concepções contraditórias (sociologicamente, as lutas), muito marcada pelo enquadramento institucional do Estado (instituto de emprego, câmara, etc.), e de como se procura assentar esta produção a uma identidade local (sociologicamente, identidade social).
Os bonecos de Estremoz de hoje, não são os bonecos dos princípios do séc. XX e muito menos os dos finais do séc. XX. Eles obedecem a outras ideias, são feitos a partir de outros elementos, quer materiais, mas sobretudo simbólicos (as ideias investidas na sua produção e preservação). Há continuidades e permanências, por exemplo, os temas com que são feitos, mas isso é muito pouco para reduzir a realidade da barrística apenas à unidade temática. Eles são diferentes dos do passado, apesar de aparentemente não o serem, contribuem para objectivos diferentes e obedecem as lógicas sociais diferentes. Para não ir mais longe, quem nos anos 1970, sonharia fossem classificados agora pela UNESCO ou pensasse, sequer, na possibilidade de uma candidatura? E quando for feita a história social deste processo de candidatura e de classificação não se irá, de novo, deparar com algumas destas e de outras tendências e estratégias? De velhas e de novas visões e concepções? A realidade muda, a tradição muda e só na aparência tudo se mantém igual. Os bonecos não são apenas bonecos, são a expressão material de uma vivência social. E foi isso que se pretendeu restituir com a análise.
Agora que fui obrigado a revisitar um texto que não lia há vários anos, mas cujo convite por Hernâni Matos, em boa hora, me levou a isso, para este pequeno texto – que temo fique maior do inicialmente desejado –, continuo a gostar das conclusões. Porventura seria possível ir um pouco mais longe, mas, no geral, revejo-me, apesar de alguns erros que por lá estão, passados estes 25 anos. Permito-me apenas destacar dois traços que estão na Conclusão e que ligo com a recente classificação da UNESCO e o pretexto para este texto. A obediência à disciplina tradicional como uma regra social imposta pela unidade estilística e que obriga os barristas a seguirem-na e a necessidade de patrimonialização e de museificação que caracterizam a sociedade moderna. As duas coisas andam juntas e não são fruto do acaso: resultam de processos sociais complexos. Mas, mesmo desconhecendo os documentos oficiais da candidatura, julgo não errar muito se afirmar que talvez tenham sido estas duas tendências as mais valorizadas na candidatura e na classificação. Os significados disso teriam de ter suporte de análise, o que obviamente não fiz, e por isso me escuso a comentar. Num certo sentido, o que está no estudo que elaborei em 1993 antecipou algum do seu desenvolvimento recente.
Uma última observação vai para o facto de me ter arrependido de não ter publicado o estudo em livro. A isso fui convidado por José Guerreiro, quando foi vereador da Câmara Municipal de Estremoz, no mandato de 1994-97. Devia tê-lo feito, não por vaidade ou orgulho pessoal, que dispenso, mas pelo possibilitar de um outro olhar sobre a barrística. Espero que este resumo, ainda assim, possa contribuir para um outro conhecimento sobre os bonecos de Estremoz.


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