quinta-feira, 16 de maio de 2019

Sai uma passadeira vermelha para o comendador!


José Berardo no decurso da audição na Comissão Parlamentar de Inquérito à Caixa
Geral de Depósitos no passado dia 10 de Maio. Fotografia da ARTV.

Estremoz vai ter não um, mas dois museus Berardo. Cumprindo-se a máxima de que não há duas sem três, há-de somar-se aos dois anunciados mais um museu Berardo, quiçá do anedotário nacional. Berardo é, como se sabe, um amigo do povo português e, logo, há-de incluir-se no seu ramalhete de afetos o povo cá do burgo, que espera que o dito personagem trágico--cómico nos remeta para um novo mundo, de primeiríssima categoria. Berardo é, pois, um amigo de Estremoz e como tal homenageado e, como tal, são-lhe lambidas as botas até brilharem luzidias de um lustro nunca visto. É assim que, orgulhosos, os estremocenses mais ilustres fazem gala em serem vistos ao lado do grande senhor, grande empresário, grande colecionador, grande amante da arte e, claro está, grande amigo do povo português em geral e dos estremocenses em particular, grande comendador em dose dupla.
Berardo não tem nada. Mas diz “minha” quando fala da coleção que, afinal, não é dele. Berardo faz Ah! Ah! na Assembleia da República e o advogado puxa-lhe o braço: o menino comporte-se! Que figurinha tão triste. Há uns anos alguém me diria “o homem não tem propósito nenhum!”, querendo dizer que não tem maneiras, que é, de facto e irremediavelmente, um homem sem maneiras, um boçal. Mas tem uma coleção de arte, que afinal não tem, mas que porque ele quer, preencherá as salas do Palácio Tocha, ou talvez não.
Berardo tem uma garagem. Pasme-se! Como é que ele não conseguiu não ter uma garagem? Como se deu tão inusitado descuido? Berardo não tem dívidas, ou, se as tem, não estão em seu nome, não senhora. Três bancos, entre os quais o nacional, uniram-se para cobrar a dívida que não é de Berardo porque não está no seu nome. O Palácio Tocha não é de Berardo, não está no seu nome. Só a desavisada garagem vai direitinha, para alegria dos três bancos cobradores, servir a grandiosa penhora que retirará à dívida que não é de Berardo um átomo talvez.
Berardo é assim um enorme e fenomenal logro. Um homem de esquemas. Um ilusionista. Em suma, o protagonista de uma grande vigarice que saiu cara aos portugueses.
Por cá, estendam mais umas passadeiras vermelhas para o comendador passar, tudo protocolado como manda o figurino. Ah! E não esquecer as inaugurações, as palmadinhas nas costas e as fotografias, que estas, para o bem e para o mal, sempre documentarão quem está com quem, onde e a fazer o quê.

Ivone Carapeto
(Jornal E nº 223 – 16-05-2019)

quarta-feira, 15 de maio de 2019

COLECÇÕES BERARDO: Cama, mesa e roupa lavada


No decurso da inauguração da fachada do futuro Museu Berardo de Estremoz,
ocorrida no passado dia 18 de Janeiro, o Senhor José Berardo cumprimenta o
então Presidente da CME, Senhor Luís Mourinha.

Um Protocolo que dá que falar
Na sua reunião de 17 de Abril, a Câmara Municipal de Estremoz (CME), deliberou por unanimidade (MIETZ e PS), aprovar a celebração de um Protocolo de Cooperação entre o Município de Estremoz e a Associação de Colecções (ADC), visando a realização de exposições de arte africana da "Colecção Berardo" no edifício da antiga Fábrica da Companhia de Moagem e Electricidade de Estremoz e Veiros", sito na Rua Serpa Pinto, n.ºs 83, 85 e 87 e Traseiras da Rua Serpa Pinto, em Estremoz, o qual é propriedade da ADC. O edifício encontra-se em processo de classificação na categoria de Monumento de Interesse Municipal, por deliberação da CME de 6 de Fevereiro de 2019.
A assinatura do Protocolo teve lugar no dia 29 de Abril, sendo a CME representada pelo Presidente Francisco Ramos e a ADC pelo Presidente do Conselho de Administração, José Berardo. Ao acto compareceu ainda o anterior Presidente do Município, Luís Mourinha, afastado do cargo por razões conhecidas.
Nos termos dos respectivos pressupostos, o Protocolo visa a introdução de uma forte componente cultural e artística no Município de Estremoz, a fim de colocar o concelho entre os destinos de lazer de maior sofisticação, capaz de atrair um turismo de qualidade, representando, simultaneamente, uma mais valia económica no que respeita à relação entre Cultura e Turismo;
O Protocolo encontra-se ligado e só será válido e definitivo com a aprovação do projecto de candidatura ao abrigo dos apoios financeiros comunitários do Portugal 2020, no âmbito da reabilitação daquele edifício, com vista à instalação ali do “Museu Berardo Estremoz – Arte Africana”. A validade do Protocolo é de 5 anos, com início na data de abertura do Museu e renovável automaticamente por iguais períodos, caso não seja denunciado por qualquer das Partes.

Obrigações da Câmara Municipal de Estremoz
CME obriga-se a: - Pagar todos os custos de manutenção relativos ao bom funcionamento do Museu, tais como: água, luz, aquecimento, ventilação, ar condicionado, telefone, Internet e elevador, bem como outros que aqui possam estar omitidos; - Contratar e custear os vencimentos do pessoal afecto ao Museu; - Pagar toda e qualquer despesa relativa a serviços que, eventualmente, sejam realizados por empresas exteriores. A título de exemplo: vigilância e segurança, contabilidade, limpeza, manutenção de elevadores e manutenção geral do edifício, entre outros; - Pagar a despesa total relativa à produção das exposições, nomeadamente, embalagem e acondicionamento das obras de arte, transporte, seguros das obras de arte pelo período a determinar, desembalagem ou abertura de caixas, montagem de exposições, material museográfico, informativo e comunicativo, ou outras que aqui possam estar omissas, a acordar caso a caso entre as partes; - Contratar um seguro de responsabilidade civil que cubra, em cada momento, todos os riscos de perecimento, furto e roubo das obras de arte expostas no Museu; - Efectuar a gestão geral e cultural do Museu; - Conceptualizar, produzir e divulgar um plano de comunicação do Museu, que crie notoriedade e um posicionamento consistente, quer do produto museológico e expositivo, quer da zona de influência onde está enquadrado, explorando as suas potencialidades de Turismo Cultural; - Assegurar a colocação de sinalética direccional no Concelho e se possível nos Concelhos vizinhos; - Usar de toda a diligência para que a utilização, temporária ou permanente, do espaço envolvente do edifício não perturbe, mas antes assegure, a dignidade do Museu; - Estabelecer relações com terceiros em nome do Museu; - Negociar com terceiros os serviços de dinamização do Museu, nestes se incluindo a organização de exposições temporárias, serviço educativo, seminários, colóquios, workshops e outro tipo de eventos culturais.

Obrigações da Associação de Colecções
A ADC obriga-se a: - Disponibilizar o edifícipara o funcionamento do Museu a título gratuito; - Assegurar a disponibilidade das obras integrantes das diversas colecções, que compõem o acervo de arte africana da “Colecção Berardo” para serem expostas no Museu; - Ceder gratuitamente as obras de arte que vierem a compor as exposições; - Apoiar a gestão cultural do Museu através do acompanhamento da concepção, produção e montagem das exposições em articulação com a Direcção do Museu; - Ceder todas as informações disponíveis relativas às obras de arte, nomeadamente, fichas de inventário, fotografias e pareceres técnicos; - Implementar um circuito de vídeo vigilância digital, de monotorização e controlo via internet, mediante equipamento assegurado no âmbito do projecto de reabilitação; - Contratar e manter em seu nome um seguro de responsabilidade civil que cubra todos os riscos relativos ao edifício; - Contratar e manter em seu nome e no da “Colecção Berardo” um seguro de responsabilidade civil que cubra, em cada momento, todos os riscos de perecimento, furto e roubo das obras de arte armazenadas no edifício.

Proveitos
Pertencerão à CME todas as receitas de visitas ao Museu, cujo preço será por ela fixado. Constituem proveitos da ADC todas as receitas provenientes de rendas dos estabelecimentos de apoio ao Museu (cafetaria, livraria e serviços similares) que venham a ser instalados no espaço físico do edifício e cujo montante será por ela fixado.

Comentários Finais
O Senhor José Berardo é um finório afamado, perito em negócios da China com gestores do erário público, o qual recebe um chouriço por cada porco que lhe dá. Primeiro foi o Governo Português, presidido por outro José – o Sócrates, que lhe serviu de barriga de aluguer e lhe albergou a colecção de Arte no Centro Cultural de Belém. Depois foi o Município de Estremoz que se disponibilizou a dar “cama, mesa e roupa lavada” à sua colecção de Azulejos no Palácio Tocha e à colecção de Arte Africana na antiga Fábrica de Moagem e Electricidade.
A Câmara Municipal de Estremoz com o orçamento apertado, não tem dinheiro para mandar cantar um cego, mas deixou-se cair no conto do vigário do Senhor José Berardo. Os nossos edis podem como escuteiros ter praticado uma boa acção com este Senhor, convictos das dificuldades que ele atravessa, visto ser devedor à Banca de 980 milhões de euros. Todavia por essa boa acção não vão receber bem aventuranças no Reino dos Céus, mas manifestações de desagrado cá na Terra.
Os munícipes são sugados até ao tutano com impostos e taxas, de âmbito nacional ou municipal, cuja listagem me dispenso de enumerar, uma vez que esta crónica já vai longa. São esses impostos e taxas, que conjuntamente com o financiamento europeu quando o há, asseguram o orçamento municipal. Aos munícipes desagrada-lhes serem forçados a contribuir para o peditório do Senhor José Berardo. No meu caso, o desagrado transformou-se em repúdio que aqui fica registado para que conste.
Depois da berardização da paisagem na Herdade das Carvalhas na Glória, tudo indica que vamos assistir à berardização da Museologia em Estremoz. Ao que isto chegou.
Estremoz, 10 de Maio de 2019
(Jornal E nº 223 – 16-05-2019)

O Senhor José Berardo tendo a seu lado o actual Presidente da CME, Senhor
 Francisco Ramos. Fotografia obtida no decurso da inauguração da fachada do
futuro Museu Berardo de Estremoz, ocorrida no passado dia 18 de Janeiro.

CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS – Fotografias recolhidas no Facebook do Município de Estremoz e aqui reproduzidas com a devida vénia.

segunda-feira, 13 de maio de 2019

Bonecos de Estremoz: os assobios


Fig. 1 - Pomba no choco - Ana das Peles (1938)

Os modelos tradicionais de assobio, em número de quinze, distribuem-se por três grandes categorias:
- ASSOBIOS ZOOMÓRFICOS [Pomba (Fig. 2), Galo (Fig. 3), Galo no disco (Fig. 4), Galo na árvore (Fig. 5), Galo no pinheiro (Fig. 6), Galo no arco (Fig. 7), Galo no poleiro (Fig. 8), Galinha no choco (Fig. 9) e Cesto com ovos (Fig.  10)];
- ASSOBIOS ANTROPOMÓRFICOS [Senhora (Fig. 11), Peralta (Fig. 12) e Sargento (Fig. 13)];
- ASSOBIOS COMPOSTOS (ZOOMÓRFICOS E ANTROPOMÓRFICOS) [Amazona (Fig. 14), Peralta a Cavalo (Fig. 15) e Sargento a Cavalo (Fig. 16)].
Os assobios compostos têm base rectangular e o bocal de sopro está localizado na cauda do cavalo. Um rolo de barro foi aí colado com barbotina e depois furado com um arame grosso da base exterior do rolo para o interior, até cerca de metade do comprimento. Na parte superior
do rolo foi depois efectuado outro furo, até encontrar o primeiro.
Os assobios zoomórficos e antropomórficos têm uma base cilíndrica de altura diminuta ou em forma de menisco convexo, nos quais está inserido o bocal de sopro. Desde sempre que este bocal era manufacturado, montando e furando um rolo de barro, tal como era feito para os assobios compostos. Todavia, Maria Inácia Fonseca, uma das Irmãs Flores, introduziu uma técnica diferente: o menisco convexo passa a ser mais alto e dele, por estiramento numa determinada direcção, resulta o indispensável tubo, que é furado da maneira anterior. O bocal de sopro passa então a ser mais curto e a proeminência correspondente, mais suave e mais discreta.
O interesse despertado pelos assobios (apitos) em barro de Estremoz, não é consensual entre os estudiosos. Assim, Pires de Lima (2), Director do Museu Etnológico e de História do Porto, não os incluiu entre os “Brinquedos Musicais” no seu estudo sobre “Brinquedos”, ao passo que António Ferro (1), Director do Secretariado de Propaganda Nacional, os distinguiu com uma referência no Prefácio de “Vida e Arte do Povo Português”: “Aqueles bonecos de barro, por exemplo, continuam a dizer-nos, na voz dos seus apitos, que Santo António, com o Menino Portugal nos seus braços, era de Lisboa e não de Pádua.”

BIBLIOGRAFIA
(1) - FERRO, António. Prefácio in Vida e Arte do Povo Português. Secretariado da Propaganda Nacional. Lisboa, 1940 (pág. 3).
(2) - PIRES DE LIMA, Fernando de C. Brinquedos in A Arte Popular em Portugal, vol III. Editorial Verbo. Lisboa, 1975 (pág. 250 a 290).


 Fig. 2 - Pomba – José Moreira (sd).

Fig. 3 - Galo – José Moreira (sd).

Fig. 4 - Galo no disco – José Moreira (sd).

 Fig. 5 - Galo na árvore – José Moreira (sd).

Fig. 6 - Galo no pinheiro – José Moreira (sd).

Fig. 7 - Galo no arco – Maria Luísa da Conceição (sd).

 Fig. 8 - Galo no poleiro – Sabina Santos (sd).

Fig. 9 - Galinha no choco – Maria Luísa da Conceição (sd).

Fig. 10 - Cesto com ovos – Jorge da Conceição (2017).

Fig. 11 - Senhora – Irmãs Flores (2010).

Fig. 12 - Peralta – José Moreira (sd).

 Fig. 13 - Sargento – José Moreira (sd).

Fig. 14 - Amazona – Sabina Santos (sd).

Fig. 15 - Peralta a cavalo – Sabina Santos (sd).

Fig. 16 - Sargento a cavalo – Irmãs Flores (2018).

sexta-feira, 10 de maio de 2019

O amor é cego


O Amor é cego (s/d). Sabina Santos (1921-2005).

“O Amor é cego” é um Boneco de Estremoz cuja origem remonta ao séc. XIX. É considerado uma figura de Carnaval e uma alegoria à cegueira do amor e ao Cupido de olhos vendados. Trata-se de um tema recorrente na pintura universal, onde conheço os seguintes quadros: - Cupido com os olhos vendados (1452-1466) - Piero Della Francesca; - Primavera (c. 1482) - Sandro Botticelli (1445-1510); - Cupido, o pequeno amor com os olhos vendados perfura o peito de um jovem (séc. XVI) – Clément Marot; - O julgamento de Páris (1517-1518) – Niklaus Manuel; - Vénus e Cupido (c. 1520) – Lucas Cranach, o Velho; - Vénus a vendar Cupido (c. 1565) - Vecellio Tiziano; - Cupido castigado (séc. XVII-XVII) - Ignaz Stern; - Vénus a punir o amor profano (c. 1790) – Escola alemã.
 “O amor é cego” é um provérbio que traduz a cegueira do amor (falta de objectividade), relativamente à qual são conhecidos outros provérbios: “A amizade deve ser vidente e o amor, cego”, “O amor é cego e a Justiça também”, “O amor é cego, a amizade fecha os olhos”, “O amor é cego, mas vê muito longe”, “O amor não enxerga as cores das pessoas”, “O amor vem da cegueira, a amizade do conhecimento”, “Quem anda cego de amores não vê senão flores”, “Quem o feio ama, bonito lhe parece”.
O provérbio “O amor é cego” é muitas vezes atribuído ao filósofo grego Platão (427-348 aC), porque em “As Leis” escreveu “Aquele que ama é cego para o que ama”. No entanto, é errado, atribuir às palavras de Platão o significado que o provérbio tomou, porque naquele texto, o filósofo fala de amor-próprio como fonte de erro.
 “Amor é cego” é o título do soneto 137 de William Shakespeare (1564-1614) cuja primeira quadra traduzida pelo poeta António Simões nos diz que: “Tolo e cego Amor, a meus olhos que fazes agora, / Que eles olham e não vêem o que a ver estão? / Conhecem a beleza e onde ela se demora, / Mas, o que é pior, por melhor tomarão.”
A cegueira do amor está também retratada no cancioneiro popular alentejano (2): “O Cupido anda às cegas, / Cahe aqui, cahe acolá; / Em má hora eu te amei. / Em má hora, hora má.”
 “O amor é cego e vê” é o título de uma ária cantada por Tomás Alcaide (1901-1967) no filme “Bocage” a qual teve música de Afonso Correia Leite / Armando Rodrigues e letra de Matos Sequeira / Pereira Coelho. Roberto Alcaide (1903-1979), irmão de Tomás Alcaide tinha o hábito de afirmar que o boneco “O Amor é cego” tinha sido criado por Mariano da Conceição em homenagem ao irmão [Entrevista à barrista Maria Luísa da Conceição (1)]). Tal afirmação não tinha fundamento algum, já que a figura remonta ao séc. XIX e Mariano da Conceição nunca modelou “O Amor é cego”.

BIBLIOGRAFIA
(1) - MATOS, Hernâni. Entrevista a Maria Luísa da Conceição. Estremoz, 7 de Fevereiro de 2013. Arquivo de Hernâni Matos.
(2) - THOMAZ PIRES, A. Cantos Populares Portugueses. 4 vol. Typographia e Stereotypia Progresso. Elvas, 1902 (vol. I), 1905 (vol. II), 1909 (vol. III), 1012 (vol. IV).
Publicado inicialmente a 10 de Maio de 2019
Este texto integra o meu livro "BONECOS DE ESTREMOZ" publicado em 2018

quarta-feira, 8 de maio de 2019

Bonecos de Estremoz - Figuras de negros


 Fig. 1 - Preto a cavalo (s/d) – 
- José Moreira (1926-1991).

A produção bonequeira dos diversos barristas dos sécs. XX-XXI tem um elo comum: os chamados “Bonecos da Tradição”. Trata-se de um conjunto de cerca de 100 figuras que são comuns à produção individual de cada barrista. Naquele conjunto existem três figuras de negros que são reveladoras da colonização africana ocorrida no Alentejo: Preto a cavalo (Fig. 1), Preta grande (Preta florista) (Fig. 2) e Preta pequena (Fig. 3).
Na freguesia de Santa Vitória do Ameixial no concelho de Estremoz, existe o chamado Monte dos Pretos, situado junto à mina abandonada que foi explorada no período da ocupação romana da região, a qual começou no séc. I, mas foi mais significativa nos sécs. III-IV. A existência dum Monte com aquela designação, é indicativo de que existiram escravos negros na região. Em Estremoz, como noutras localidades do país, existe a Rua dos Malcozinhados. Estes eram tabernas populares onde se reuniam escravos, trabalhadores braçais e prostitutas e, se consumia vinho barato e comida feita à pressa como peixe frito e iscas. A nível nacional, os malcozinhados são conhecidos desde o tempo das descobertas. O facto de existir em Estremoz uma Rua dos Malcozinhados é um indicador de que por aqui houve escravos negros. Jorge Fonseca em “Religião e Liberdade / Os negros nas irmandades e confrarias portuguesas (séculos XV a XIX)” [(2) - pág.50-51] dá conta que: “Em Estremoz houve duas confrarias do Rosário, sendo aparentemente e ao contrário do que se passa noutros locais, a dos Negros de fundação mais tardia que a outra. Segundo Frei Jerónimo de Belém foi erigida a confraria na Igreja do Convento de São Francisco, em 1545. Em 1585 D. Filipe I autorizou os respectivos confrades a pedirem esmolas pela vila e pelo termo, durante dois anos. Porém, em 1633, os homens e mulheres pretos moradores na vila de Estremoz obtiveram do rei, como governador da ordem de Avis, licença para criarem a confraria e irmandade de Nª Sª do Rosário, na igreja matriz de Nª. Sª. da Assunção, situada na vila intramuros (ao contrário do convento referido), que era da mesma ordem militar. Mas esta deve ter tido duração efémera, ou ter sido unificada com a primeira, tendo em conta um livro seiscentista pertencente à confraria do convento franciscano, com a entrada de irmãos a partir de 1676. Entre pessoas das mais variadas profissões e níveis sociais, aparece Isabel Mendes, escrava de Manuel Garcia Mendes, em 1692”. Resta na cidade, como testemunho da piedade dos descendentes de africanos, uma escultura de São Benedito, setecentista, na igreja de Nª. Sª. do Socorro.” Arlindo Caldeira em “Escravos em Portugal / Das origens ao século XIX” [(1) - pág.308], diz que “Como instituição, as irmandades já funcionavam desde o século XII na Europa, nomeadamente em Portugal, com fins religiosos e de solidariedade. No entanto, não seria no seio das já existentes que os africanos encontrariam acolhimento. Tiveram de criar, com o apoio de algumas ordens religiosas, associações completamente novas. Foi assim que proliferaram estas confrarias, com marcada distinção étnica, e em que ao nome do patrono religioso, se acrescentava “dos homens pretos” ou, sobretudo depois do século XVIII “dos homens pretos e pardos”. Na mesma obra [(1) - pág. 308] refere que: “Embora varie a invocação religiosa que aparece na designação dessas associações, a mais comum é a da Nossa Senhora do Rosário, decorrente do culto do rosário, muito popular desde o séc. XIII, promovido pela ordem dos Dominicanos.” O mesmo autor [(1) - pág. 305] informa que “Além das festas informais de rua, os músicos e dançarinos negros, nomeadamente os escravos, eram os elementos imprescindíveis das festividades anuais das confrarias ditas “de pretos e mulatos” e participavam também nos principais acontecimentos festivos da cidade, sendo uma presença sempre aguardada nas touradas, nos cortejos e nas procissões…” O mesmo historiador revela que: “A música e a dança, uma e outra de raiz claramente africana, eram o prato forte das festividades domingueiras. Estas manifestações de exotismo despertavam, por um lado, a curiosidade, mas, para outros sectores da sociedade eram vistas como sinais de barbarismo pagão ou mesmo de demonismo.” A terminar é de referir de que nos dá conta que [(1)-305]: “Algumas das festas de africanos ligadas às irmandades, mas não só, incluíam a nomeação, em geral com a duração de um ano, de um “rei” e de uma “rainha”, que, além da função decorativa, eram uma espécie de mordomos dos festejos, cabendo-lhes, por exemplo, animar os peditórios para angariação de esmolas.” Julgo ter provado de uma vez por todas e duma forma insofismável que a presença de negros na barrística popular estremocense se dever à existência desde tempos remotos de escravos negros, os quais foram representados pelos barristas.

BIBLIOGRAFIA
(1) - CALDEIRA, Arlindo M. Escravos em Portugal / Das origens ao século XIX. A Esfera dos Livros. Lisboa, 2017 (págs. 304, 305, 308 e 310).
(2) - FONSECA, Jorge. Religião e Liberdade / Os negros nas irmandades e confrarias portuguesas (séculos XV a XIX). Editora Húmus. Vila Nova de Famalicão, 2016 (págs. 50, 51).


Fig. 2 - Preta grande (Preta florista) (s/d) –
- Liberdade da Conceição (1913-1990).

Fig. 3 - Preta pequena (2018) –
- Irmãs Flores (1957, 1958- ).

domingo, 5 de maio de 2019

Estremoz - Surpresas do Mercado das Velharias - 01

O Mercado das Velharias em Estremoz continua a ser um pólo de atracção de turistas naturais e estrangeiros. Se uns o descobrem ocasionalmente, outros são seus frequentadores habituais, à procura de peças para integrar as suas colecções e que por vezes já pré-existiam no seu imaginário. Dou hoje conta de três espécimes que polarizaram a minha atenção e que por isso mesmo adquiri, visto assentarem como uma luva nas minhas colecções.

Prato raso de Estremoz, em barro vermelho vidrado, com 17, 5 cm de diâmetro. 
 Comemorativo das Festas à Exaltação da Santa Cruz de 1990. Decorado com motivos
florais e tendo no centro, em relevo, a imagem do Senhor Jesus dos Passos de Estremoz,
 obtida a partir do molde em gesso, utilizado pela Olaria Alfacinha nos anos 60 do
séc. XX, na produção de medalhas em barro, comemorativas daquelas Festas.

No parte posterior do prato, a marca manuscrita "Olaria / Alfacinha / Estremoz /
/ Portugal / Joana. De salientar que entre 1987 e 1995 (data do seu encerramento),
a Olaria Alfacinha que anteriormente era propriedade da firma Leonor das Neves da
Conceição Herdeiros, passou para a posse de Rui Barradas e sua mulher Cristina
Barradas. Aí Rui Barradas, barrista e azulejista, produziu louça vidrada de barro
vermelho que era comercializada numa loja de artesanato, propriedade do casal e
situada na Praça Luís de Camões, nº 11, em Estremoz. 

 Pisador em madeira, provavelmente manufactura de arte pastoril. Trata-se de uma
peça bi-funcional onde numa extremidade figura o pisador (pilão) e na outra uma
colher para retirar o pisado do gral. 16 cm de comprimento. 

Púcaro em barro de Estremoz com a particularidade de reunir em si, três tipos de
decoração: empedrado, riscado e picado. Dimensões em cm: 13, 5 (altura), 12 (largura),
5 (diâmetro da base), 5,7 (diâmetro exterior da boca). Embora não apresente marca de
oleiro, o picado (neste caso círculos), permite identificá-lo como exemplar da Olaria
Regional de Mário Lagartinho.

Hernâni Matos

quarta-feira, 1 de maio de 2019

Toponímia de Estremoz - Omissões que ofendem


Sá Lemos trocando impressões com Ana das Peles numa sala de aulas da Escola
Industrial António Augusto Gonçalves. Fotografia de Rogério de Carvalho
(1915-1988), publicada no semanário estremocense Brados do Alentejo”
nº 250, de 10 de Novembro de 1935. Arquivo fotográfico do autor.

Em reunião da Câmara realizada no passado dia 3 de Abril, foi aprovada uma proposta da Comissão de Toponímia do Concelho de Estremoz, no sentido de serem atribuídos novos topónimos, assim distribuídos: Estremoz (17), Glória (13), Évora Monte (10), Santa Vitória do Ameixial (3), São Bento do Ameixial (1). Entre os 13 novos topónimos aprovados para Estremoz, figura o nome da barrista Sabina da Conceição (1921-2005), que assim viu a sua memória perpetuada através da atribuição do seu nome a uma rua da cidade, situada no Monte Pistola, junto à antiga passagem de nível.
Até agora a toponímia estremocense já perpetuou o nome dos seguintes barristas: Mariano da Conceição (1903-1959), Sabina da Conceição (1921-2005), Liberdade da Conceição (1913-1990), Maria Luísa da Conceição (1934-2015) e Quirina Marmelo (1922-2009). Todavia, para além deles há outros barristas falecidos que até agora foram esquecidos. São eles:
- Ana das Peles (1869-1945), que em 1935 foi o instrumento primordial da recuperação dos “Bonecos de Estremoz”, efectuada pelo escultor José Maria de Sá Lemos (1892-1971), director da Escola Industrial António Augusto Gonçalves, uma vez que desde 1921 estava extinta a tradição de manufactura dos Bonecos de Estremoz. Em 1935 os Bonecos de Ana das Peles participaram na “Quinzena de Arte Popular Portuguesa” realizada na Galeria Moos, em Genebra. Em 1936 estiveram presentes na Secção VI (Escultura) da Exposição de Arte Popular Portuguesa realizada em Lisboa, em 1937 na Exposição Internacional de Paris e em 1940 na Exposição do Mundo Português. Nestas exposições, os Bonecos de Estremoz de Ana das Peles, foram o ex-líbris de excelência da nossa cidade e os embaixadores da nossa Arte Popular e da nossa identidade cultural local e regional. Os Bonecos de Estremoz, até então relativamente pouco conhecidos, adquiriram por mérito próprio, grande notoriedade pública.
- António Lino de Sousa (1918-1982), oleiro da Olaria Alfacinha e discípulo de Mestre Mariano da Conceição, com quem aprendeu a manufacturar Bonecos de Estremoz, a cuja confecção se dedicou em exclusivo entre 1976 e a data do seu falecimento.
- José Moreira (1926-1991), discípulo de Ana das Peles e que foi o barrista que mais contribuiu para a divulgação dos Bonecos de Estremoz. Percorreu o país de lés a lés e não houve feira ou exposição de artesanato a que ele não fosse.
- Aclénia Pereira (1927-2012), que nos anos 40 do séc. XX foi discípula de Mestre Mariano da Conceição na Escola Industrial António Gonçalves e que foi barrista até ao fim da vida, mesmo depois de se ter transferido para Santarém, em cujo distrito foi uma grande embaixadora dos Bonecos de Estremoz.
- Isabel Carona (1949-2006), que foi uma das primeiras discípulas de Mestra Sabina da Conceição e que depois de trabalhar com ela durante dez anos, se fixou em Sarilhos Grandes, Montijo, onde continuou a arte bonequeira.
- Mário Lagartinho (1935-2016), o último oleiro de Estremoz, que como barrista confeccionou Bonecos de Estremoz nos anos 70-90 do século passado e que pela sua acção continuou a cadeia de transmissão de saberes.
- Arlindo Ginja (1938-2018), discípulo de Mário Lagartinho, que conjuntamente com seu irmão Afonso exerceu o mester durante 32 anos, até se aposentar em 2011.
A atribuição de um nome a uma rua, corresponde ao reconhecimento do mérito daqueles que com o seu exemplo e esforço, contribuíram para a edificação do presente. Desde 7 de Dezembro de 2017 que a manufactura de Bonecos de Estremoz está inscrita na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade. Tal inscrição só foi possível porque a tradição foi recuperada com Ana das Peles e continuada por aqueles que lhe sucederam no tempo. Daí que todos os barristas falecidos devam ser contemplados com a atribuição do seu nome a uma rua da cidade. Não é aceitável é que se atribuam nomes de ruas da cidade só a alguns, omitindo os restantes. São omissões que ofendem a sua memória, já que cada um deles à sua maneira, contribuiu para que a manufactura de Bonecos de Estremoz esteja actualmente inscrita na Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da Humanidade. É caso para dizer, que não podem uns ser filhos e os outros enteados.

Estremoz, 25 de Abril de 2019
(Jornal E nº 222 – 02-05-2019)


Senhora de pézinhos.
Ana das Peles (1869-1945).
Arquivo fotográfico do autor.
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