sexta-feira, 9 de março de 2018

O rato roeu a rolha da garrafa do rei da Rússia


Imagem reproduzida com a devida vénia
de Crescer (https://revistacrescer.globo.com).


À Catarina, minha filha:


É bem conhecido o especial carinho que nutro pelas manifestações orais da cultura popular: cancioneiro, provérbios, gíria, lengalengas, adivinhas, etc. Daí que ninguém estranhe que as procure divulgar de uma forma pedagógica, através da sua integração nos meus escritos. Por isso vos falo hoje dos trava-línguas. Trata-se de frases difíceis de pronunciar como resultado da semelhança sonora das suas sílabas. Daí que sejam utilizados por educadores de infância, visando aperfeiçoar a pronúncia e exercitar a oralidade da língua. Acabam por se tornar numa brincadeira que motiva as crianças e as desafia a reproduzi-los sem errar, o que acontece com frequência, causando risos e alegria. Por fim, acabam por perceber que quanto mais rápido procuram verbalizar, maior é a probabilidade de se enganarem.
Um trava-línguas que tem para mim especial significado é este:
- O rato roeu a rolha da garrafa do rei da Rússia.
A minha filha que hoje tem hoje 32 anos, em miúda pronunciava os "r" como se fosse chinesa. O resultado fonético era este:
- O lato loeu a lolha da galafa do lei da Lúcia.
Então eu repetia tudo de novo e ela pedia-me para repetir também, porque já ia dizer bem. E para meu desespero dizia exactamente a mesmo coisa, sem tirar nem pôr.
 O "r" para ela era "l". Contudo, a vontade que ela tinha de ultrapassar aquela dificuldade que eu lhe apontava, levou a convencer-se que já dizia bem, quando continuava a dizer exactamente a mesma coisa. Mas eu continuei a insistir, até que um dia, saiu cristalino da sua voz doce, o resultado esperado:
- O rato roeu a rolha da garrafa do rei da Rússia.
Foi para mim um raro momento de felicidade, por ela ter conseguido dar um salto dialéctico, só comparável ao que passou quando um dia estava a gatinhar em casa de um amigo meu que já lá está e de repente se pôs em pé, a andar, para nunca mais gatinhar.
São coisas que marcam um homem na vida...



quinta-feira, 8 de março de 2018

Chove em Santa Maria


Estremoz - Igreja Matriz de Santa Maria

Chove que Deus a manda. A chuva tudo molha, inclusive a Casa de Deus (Leia-se Igreja Matriz de Santa Maria no Castelo). Chove em Estremoz, chove no Castelo, chove em Santiago. Só não estamos no filme de HelvioSoto, com Jean-Louis Trintignant e Annie Girardot, datado de 1975. Estamos em Estremoz, onde no Ano de Graça de 2018, os pombos vadios têm livre-trânsito municipal para defecarem onde lhes der na real gana, por tal convir à sua natural necessidade.
Há muitas vítimas de tal monumental e continuada defecação. Desta feita foi o Templo situado no coração do Centro Histórico da cidade. Os telhados povoados pelas necessidades dos columbídeos foram lavados pela chuva abundante e os dejectos escorreram por aí baixo, causando entupimentos, que fizeram com que chovesse no interior da Casa de Deus. Eu sei, porque passei por lá. Que querem que vos diga? Apenas uma coisa. Que estes animais de penas não deviam ter livre-trânsito municipal para arrear o calhau onde lhes aprouver.

Hernâni Matos
Cronista do E, ambientalista e tudo.
(Texto publicado no jornal E nº 195, de 08-03-2018)

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Pedonalização da rua de Santo André


Uma imagem habitual do estacionamento na rua de Santo André.

A rua de Santo André, que na parte baixa do Centro Histórico de Estremoz, liga a Praça Luís de Camões ao Largo dos Combatentes da Grande Guerra, irá ser encerrada ao trânsito automóvel e ficará reservada ao trânsito pedonal.
PEDU inicial e PEDU final
A pedonalização da rua de Santo André está prevista no Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano do Município de Estremoz (PEDU ETZ). Este foi objecto de um contrato celebrado a 31 de Maio de 2016, em Santa Maria da Feira, entre a Autoridade de Gestão do Programa Operacional Regional do Alentejo e o Município de Estremoz.
O PEDU inicial contém a medida “4.5 Promoção de estratégias de baixo teor de carbono para todos os tipos de território, nomeadamente as zonas urbanas, incluindo a promoção da mobilidade urbana multimodal sustentável e medidas de adaptação relevantes para a atenuação”. É nesta medida que se insere a Intervenção “Criação de Via Pedonal - Rua de Santo André”, a ser promovida pelo Município de Estremoz, a que corresponde um investimento público de 150.000 €, dos quais 127.000 € (85%) são financiados pelo FEDER.
Por sua vez, o Plano Estratégico de Desenvolvimento Urbano 2015 | 2020 do Município de Estremoz – PEDU final, reitera a intenção da referida intervenção, que se traduzirá no encerramento do trânsito na rua de Santo André. Com tal intervenção, visa o Município eliminar os problemas relacionados com o estacionamento ilegal, que provoca congestionamento no atravessamento do trajecto, bem como incentivar a mobilidade pedonal e a dinamização do comércio local. Este último documento fixa o período temporal da intervenção em 2016-2018 e revela o custo da intervenção como sendo 170.000 €, montante que substituiu o investimento público de 150.000 €, anteriormente previsto.
Consultando o website do “ALENTEJO 2000”, Programa Operacional Regional do Alentejo para o período 2014-2020, disponível em: http://www.alentejo.portugal2020.pt/index.php/projetos-aprovados/category/73-projetos-aprovados, constata-se que aquela intervenção não integra o conjunto de operações aprovadas à data de 30 de Setembro de 2017, o que causa alguma perplexidade, uma vez que já nos encontramos no ano em que deveria findar o período temporal da intervenção. Faço votos para que a pedonalização prevista para a rua de Santo André, transvaze do papel para a rua, do que tenho dúvidas, uma vez que não é conhecido qualquer projecto de pormenor.
História possível duma rua
A rua de Santo André recebeu esta designação, por se localizar nas traseiras da monumental Igreja Paroquial de Santo André, imponente no seu estilo barroco, cuja construção foi iniciada em 1705 e que viria a ser inaugurada em 15 de Setembro de 1725. A 8 de Outubro de 1940, abateu a nave central da Igreja, que reconstruída em 1944, viria a ser demolida em 1960, para ali ser edificado o actual Palácio da Justiça, inaugurado a 3 de Abril de 1964.
A rua de Santo André remonta ao séc. XVIII e tem início no nº 1, casa setecentista com sacadas de ferro, a que há que juntar outras duas em iguais circunstâncias, situadas nos nºs 12 e 30, bem como outra mais modesta, identificada com o nº 10, cuja fachada exibe um registo de 4 azulejos com duas alminhas e a inscrição P.N.A.M. Trata-se de uma manifestação de religiosidade popular, envolvendo uma representação de almas de defuntos no Purgatório, implorando aos vivos que orem por elas, a fim de se poderem purificar e ascender ao Céu.
A rua, de sentido único, nos anos 50 do séc. XX chegou a ter circulação automóvel no sentido inverso. Actualmente vocacionada para o comércio, desde o derrube da Igreja de Santo André em 1960 que não dispõe à entrada de uma placa toponímica. Foi uma das poucas que na parte baixa do Centro Histórico não foi vítima da sanha alcatroadora do Município, nos anos 90 do séc. XX.
Estado actual da rua
A degradação da rua é notória, sendo de salientar múltiplas situações chocantes: - Estacionamento ilegal por parte de quem não respeitando os direitos de cidadania dos outros, congestiona o trânsito sem ser penalizado, devido a inércia da PSP local; - Piso irregular, devido a múltiplos abatimentos causados pela travessia de veículos pesados e pela cedência de esgotos com tampa de laje, provavelmente do 1º quartel do século passado; - Passeios que aqui e além têm pedras soltas ou ausência de pedras, devido a múltiplas intervenções de prestadores de serviços, que a fiscalização do Município por inércia não monitorizou; - Restauração e comércio da zona, que vertem todos os desperdícios em 4 contentores ali existentes, à excepção das garrafas que depositam no vidrão, ignorando olimpicamente os ecopontos situados no largo da República e na rua 5 de Outubro; - Lixo junto aos contentores e que cai dos mesmos, quando o seu conteúdo é vazado pelos cantoneiros de limpeza na camioneta do lixo; - Contentores que são lavados e desinfectados com pouca frequência; - Falta de remoção de vegetação espontânea por parte de cantoneiros de limpeza; - Varredura cuja qualidade oscila entre a deficiência e a ausência da mesma; - Depósito pelo público de lixos grossos junto aos contentores, fora dos dias a isso destinados; - Bêbados que vão urinarem junto às paredes do Palácio da Justiça; - Deficiente iluminação da rua; - Autismo por parte de quem devia fazer cumprir a lei e não faz, fingindo desconhecer todo o desperdício e porcaria que por ali grassa.
Pedonalizar, sim! Mas como?
Morador na rua desde 1973 (há 45 anos), encaro com bons olhos a pedonalização equacionada pelo Município, uma vez que a mesma se pode traduzir no aumento da qualidade de vida de quem por aqui vive e trabalha. Todavia e uma vez que desconheço a existência de qualquer projecto de pormenor, não posso assegurar que entre mim e o Município possa existir identidade de pontos de vista acerca da pedonalização.
A meu ver, esta deveria passar por: - Remover toda a calçada e passeios; - Renovar os esgotos e a rede de distribuição de água às casas; - Utilizar a abertura de valas para implantar uma conduta que pudesse alojar cabos de fornecimento de sinal eléctrico, telefónico ou de televisão, que permitisse eliminar toda a parafernália de cabos que inesteticamente cruzam a rua de um lado para o outro, com os quais os fornecedores de sinal têm poluído visualmente a cidade; - Eliminar as sarjetas; - Calcetar a rua, de modo que a calçada ficasse ligeiramente inclinada da periferia para o eixo central, no qual existiriam espaçadamente grelhas de ferro para escoamento de águas pluviais; - Levar os proprietários dos edifícios a fazer escoar os algerozes dos telhados directamente para a rede de escoamento de águas pluviais; - Implementar um ecoponto no local onde se encontram actualmente os contentores; - Pavimentar a rua com calçada à portuguesa, preferencialmente com representações do Figurado em Barro de Estremoz, já que a sua Produção integra a Lista Representativa do Património Cultural da Humanidade; - Melhorar a iluminação da rua.
Com uma pedonalização executada do modo apontado, a rua ficaria catita e a intervenção poderia constituir um projecto-piloto para que Estremoz pudesse, de facto, ter mais encanto. Os munícipes agradeceriam.

Hernâni Matos
Morador há 45 anos na rua de Santo André
(Texto publicado no jornal E nº 194, de 22-02-2018)

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

E depois da classificação?


Francisca de Matos (Professora)

O passado dos “Bonecos de Estremoz” conta uma história multissecular que conseguiu, apesar das dificuldades, resistir à voracidade do tempo. A sua classificação como Património Cultural Imaterial da Humanidade, pela UNESCO, permitiu aos “bonecos”, e aos artesãos que restam, ganhar o presente. Isso é certo.
Mas a atribuição desse selo, por si só, não garante o futuro da arte. Esse terá que ser assegurado através de um labor consistente – e persistente - de formação, de incentivo e de mobilização por parte dos responsáveis municipais. É que os artesãos que restam – e já não são muitos – não vão para novos. Há, pois, que avançar rapidamente com medidas concretas de apoio financeiro e logístico para que eles possam transmitir o seu saber aos mais novos, pois serão estes que um dia poderão assegurar a continuidade do figurado em barro de Estremoz. Se a classificação como Património Imaterial também garantir isto, então sim, o trabalho que verdadeiramente interessa estará feito, e bem feito.
Como de costume, no calor dos momentos que antecederam a classificação pela UNESCO foram feitas muitas promessas e ao mais alto nível da hierarquia municipal: “Questionado relativamente ao que mudaria no município de Estremoz, se o Figurado em Barro entrasse para a Lista Representativa, Luís Mourinha aponta a “visão” do município, em termos de “patrocínios de várias atividades”; “Seria igualmente priorizada, como “obrigação do município” a construção de um centro “dedicado aos bonecos e ao barro”,  (Luís Mourinha, 21/11/2017, in www.radiocampanario.com). Promessas reiteradas depois dessa mesma classificação: “criação de “um equipamento” lúdico, de estudo e formação, com “permanência de pessoas que possa praticar a arte”, sendo igualmente necessário cativar os jovens para a arte.” (Luís Mourinha, 07/12/2017, in www.radiocampanario.com).
Com tantas e tão ambiciosas garantias, não restam dúvidas: as expectativas são altas, até porque os “bonecos” e os artesãos que os criaram, e criam, assim o merecem. Que o futuro nesta terra, por uma vez, não seja só “para o boneco”…

Francisca de Matos
Professora
(Texto publicado no jornal E nº 194, de 22-02-2018)


Hernâni Matos

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Estremoz - A selva urbana


ESTREMOZ - Pombos na frontaria da Igreja Conventual de São Francisco de Assis.

Foge que é pombo
Os pombos vadios hospedados na Mercearia Luís Campos foram no início de Setembro passado, desalojados do seu hotel de 5 estrelas, mesmo no centro da cidade. A isso foram obrigados pelo camartelo a soldo da edilidade estremocense. Razão pela qual se viram obrigados a migrar para outros locais, onde continuam a ser indesejáveis, mas onde impõem a sua presença, graças à passividade camarária que permite que eles continuem a ser uma praga.
Um número considerável deles alojou-se na frontaria da Igreja Conventual de São Francisco de Assis. Quem não gosta da sua presença ali, são os fiéis que movidos pela sua legítima fé, frequentam a vetusta paroquial. Alguns mais avisados e com facilidade de locomoção, entram e saem rapidamente não vá o Diabo tecê-las e faça com que sejam atingidos pelos projécteis fecais dos columbídeos. O espaço cívico de convívio que sempre foi o adro da Igreja transformou-se assim numa zona de bombardeio que inclui também o Cruzeiro de São Francisco. É grande o desagrado com a presença daquelas aves que por ali assentaram arraiais, já que todos temos consciência que não são “Pombas do Espírito Santo”, mas pombos vadios que constituem um problema real a que urge fazer frente em nome da sanidade, da higiene e do bem-estar dos cidadãos.  
Árvores, para que vos quero?
A arborização de uma urbanização exige a escolha de espécies arbóreas com características botânicas adequadas, as quais devem ser tidas em linha de conta por projectistas, urbanizadores e agentes de fiscalização. Qualquer deles deve ter presente que as árvores constituem um importante elemento natural na composição do meio urbano, contribuindo para a qualidade de vida da população residente. É que no espaço urbano, as árvores desempenham múltiplas funções: social, cultural, ambiental, ecológica, arquitectónica e patrimonial.
A escolha do tipo de árvores a plantar numa urbanização é uma questão delicada, que exige estudo prévio, já que são múltiplos os requisitos a que as árvores devem obedecerem. Um deles é o sistema radicular ser profundo, evitando-se o uso de árvores com sistema radicular superficial, que pode danificar ruas, acostamentos, calçadas, muros, pátios, fundações dos prédios, cablagem subterrânea, esgotos, canalização de água e de gás.
A situação anterior é a que está a ocorrer na Rua Padre do Carmo Martins e exige uma intervenção rápida e eficaz por parte da edilidade estremocense. Trata-se de uma medida que passa necessariamente pelo abate das árvores ali existentes e respectiva substituição por outras com as características adequadas.
Um caso que não é único
O que se passa na Rua Padre do Carmo Martins não é, infelizmente, um caso isolado. Ali perto, na Rua Frei Nuno de Santa Maria, as árvores plantadas já não são as primitivas, as quais tiveram de ser abatidas, porque além dos problemas suscitados pela arborização da Rua Padre do Carmo Martins, também largavam bagas que manchavam os muros e os automóveis dos moradores.
Cama, mesa e…roupa suja
Mais recentemente ocorreu outro abate de árvores, agora na Praceta dos Casais de Santa Maria. Quem por ali transita, vê a sua atenção despertada por um círculo de cepos, sinalizados por fita bicolor, vermelha e branca. Faz lembrar um parque de merendas com ornamentação festiva, como que a convidar excursionistas para ali comerem uma bucha.
As árvores sacrificadas pela moto serra municipal, tinham uma copa abundante e produziam bagas que levaram à instalação no local de uma basta colónia de pássaros, que ali encontrou cama e mesa. Só roupa lavada é que não, uma vez que nos estendais limítrofes, a roupa aparecia suja. No local, bagas e excrementos eram omnipresentes, causando incómodos a vários níveis.
Na sequência da intervenção municipal, supõe-se que as aves desalojadas migraram para os campos de onde tinham vindo, atraídas pelo isco mirífico das bagas.
Centro Histórico a sofrer
Estremoz já foi cidade branca no dizer inspirado do poeta Silva Tavares, nosso prestigiado conterrâneo. Acontece que hoje já não é assim, entre outras razões como consequência de toda a cablagem negra que a EDP e os fornecedores de sinal telefónico ou de televisão estenderam pela fachada dos edifícios, desfeando-os e fazendo com que uma parafernália de cabos, atravessem as ruas de um lado para o outro, lembrando lianas numa floresta tropical. Trata-se de um abjecto crime de poluição visual e não só. O mesmo começou há muito e teve continuidade assegurada, graças à inércia municipal. A edilidade revelou-se incapaz de implementar uma alternativa não agressiva, que passasse pelo enterramento de toda a cablagem em condutas, das quais irradiasse até à entrada dos edifícios. Tal não foi feito.
O auge do desfeiamento das fachadas da cidade foi agora consumado no Largo de D. Dinis, núcleo nobre do Centro Histórico de Estremoz. É caso para perguntar se é assim que o Município quer candidatar o Centro Histórico de Estremoz a Património Mundial da Humanidade? É com a actual estratégia inspirada na máxima francesa do “Laissez faire, laissez passer”? É que esta não é mais que um emblemático chavão do liberalismo económico, na versão pura e dura de capitalismo que defende que o mercado deve funcionar livremente. E vêm-nos depois com o estafado slogan: - “Estremoz tem mais encanto!”. Da minha parte, só uma resposta é possível: - “Qual encanto, qual carapuça?”.


(Texto publicado no jornal E nº 193, de 08-02-2018)

ESTREMOZ - Danos causados por árvores com sistema radicular superficial na
Rua Padre do Carmo Martins.

ESTREMOZ - Cepos de árvores abatidas na Praceta dos Casais de Santa Maria.

domingo, 11 de fevereiro de 2018

CARNAVAL DE ESTREMOZ: Oh tempo, volta para trás!


1 - Corso carnavalesco de 1919 na Praça Luís de Camões, onde ainda não existia o
passeio junto ao qual estacionam os táxis na actualidade. Na parte central ao fundo,
é visível a torre sineira da Igreja da Antiga Misericórdia, situada no local onde está
hoje sedeada a Sociedade Recreativa Popular Estremocense (Porta Nova).

Origem do Carnaval
O período de três dias que precedem a Quaresma é conhecido por Carnaval e nele decorrem alegres brincadeiras e festas populares, que assumem múltiplas formas.
Apontado por muitos como tendo uma remota origem pré-cristã, o Carnaval assumiu importância no séc. IV d.C., quando a Igreja Católica estabeleceu a Semana Santa antecedida dos quarenta dias da Quaresma. Um período de tão longa penitência e privações, incentivaria a realização de festas populares nos três dias que antecediam a Quarta-feira de Cinzas, o primeiro dia da Quaresma. Os três dias de Carnaval são conhecidos por dias gordos, especialmente a Terça-feira Gorda.
Carnavais com personalidade própria
O Carnaval é uma festa de âmbito planetário. Por esse mundo fora ocorrem Carnavais afamados como os de Veneza, Nice, Santa Cruz de Tenerife, Nova Orleães e Rio de Janeiro. Cada um deles tem a sua identidade cultural intrínseca, forjada por vezes há mais de 100 anos e consolidada pelo tempo. São Carnavais com personalidade própria, que não têm necessidade de copiar outros Carnavais. Sem sombra de dúvida que o mais famoso de todos é o Carnaval do Rio de Janeiro, considerado a maior festa do mundo, que decorre durante 5 dias e se manifesta de múltiplas formas, das quais a mais mediática é o desfile das escolas de samba no Sambódromo da Marquês de Sapucaí.
Em Portugal são inúmeros os locais onde de modos variados é comemorado o Carnaval. Deles destaco os Carnavais de Lindoso, Podence, Lazarim, Cabanas de Viriato, Guimarães, Barcelos, Torres Vedras e Loures, por terem individualidade própria e não serem decalcados de outros.
A 1ª Batalha de Flores em Estremoz
Em Estremoz, a primeira notícia conhecida e referente à realização de um corso carnavalesco, remonta a Fevereiro de 1919, na sequência do final da I Grande Guerra Mundial, travada entre 28 de Julho de 1914 e 11 de Novembro de 1918. A seguir ao horror e à destruição daquele conflito europeu e entre muitas outras coisas, alteraram-se os padrões de vida. Daí não ser de estranhar a criação de um corso carnavalesco em Estremoz. Estava-se na ante porta dos loucos anos 20 e o corso assumiu a forma de uma “Batalha de flores”. Os carros, pertencentes a lavradores e a elementos da melhor sociedade de então, iam enfeitados com flores que deles eram também lançadas sobre a assistência que se encontrava ao longo do percurso, o qual é seguido ainda hoje. Tratou-se de uma batalha amigável em que os projécteis eram flores de cores variegadas e que perfumavam o ar.
O Orfeão e a revitalização do Carnaval de Estremoz
Após a criação em 1930 do Orfeão de Estremoz "Tomaz Alcaide", este chamou a si a iniciativa de promover corsos carnavalescos designados também por “Batalhas de flores”, integradas por carros alegóricos, grupos de cavaleiros, grupos de ciclistas, grupos de foliões e ranchos folclóricos do concelho. Os corsos eram abrilhantados pelas bandas locais, Sociedade Filarmónica Luzitana e Sociedade Filarmónica Artística Estremocense, as quais tocavam música portuguesa, assegurando a animação do evento. “Cabeçudos” e “gigantones” completavam o ramalhete de animação que percorria as ruas da parte baixa da cidade, previamente engalanadas.
O primeiro corso carnavalesco organizado pelo Orfeão teve lugar em 1935 e saldou-se por um assinalável êxito, não só pela participação da população, como pelo impacto junto de forasteiros que visitaram a cidade. O sucesso reeditou-se nos anos subsequentes até 1939, ano em que em 1 de Setembro teve início a II Guerra Mundial. Após o interregno causado pelo conflito bélico, o Orfeão retomou a organização dos corsos carnavalescos em Estremoz em 1951. O auge do Carnaval de Estremoz terá acontecido nos anos 50-60 do século passado. As flores já eram de papel e os projécteis eram papelinhos, serpentinas e saquinhos com serradura. Também apareciam saquinhos com areia e dalguns carros lançavam-se tremoços ou grão-de-bico e ocorriam também as inevitáveis farinhadas e bisnagadas. A música era bem portuguesa e havia foliões que em grupo ou individualmente fizeram História: Joaquim António Chouriço, José Gancho, João Mourinha, Padre-Santo, José Manuel Figo, Francisco Chouriço, José Albano França, Joaquim Viana, António José Martins (Costeleta), Ezequiel Chouriço e António Pegado (Pendão). Não deixavam o seu crédito por mãos alheias, quer encarnassem o papel de um personagem respeitável ou pelo contrário fossem caricaturalmente exagerados. Eram a elite vanguardista e bem disposta de um Carnaval bem português: o Carnaval de Estremoz. Isto no “Tempo da Outra Senhora”. 
Abrasileiramento do Carnaval de Estremoz
Com o eclodir da Guerra Colonial em 1961, os corsos carnavalescos viriam a ser interrompidos e só seriam retomados pontualmente em 1972 e 1973, graças à iniciativa particular de um grupo de foliões estremocenses. Fruto de múltiplas condicionantes, a organização dos corsos carnavalescos só seria retomada pelo Orfeão em 1993, ano em que para além daquilo que era tradicional no Carnaval de Estremoz, alguém teve a triste ideia de acrescentar “escolas de samba”. Foi o abrasileiramento do Carnaval de Estremoz, que fez com que este se abastardasse e que por isso constituiu um atentado histórico e social à sua identidade cultural local.
Actualmente, o Carnaval de Estremoz tem o samba como música de fundo, ao som da qual os blocos de marchantes “sacodem as pulgas”, enquanto no seu imaginário é projectado um filme em que se sentem bailarinos duma escola de samba. Foram obliterados pela colonização brasileira e sentem-se como passistas no Sambódromo da Marquês de Sapucaí no Rio de Janeiro, quando afinal estão no Rossio Marquês de Pombal, em Estremoz. Querer transformar as ruas de Estremoz em sambódromo é como em Lisboa, querer meter o Rossio na Rua da Betesga.
O samba, expressão privilegiada da cultura popular brasileira, música e dança alegre para quem as sente no corpo e na alma porque é brasileiro, faz tanto sentido no Carnaval de Estremoz como um elefante numa loja de cristais. Quem desfila por aqui ao som da aparelhagem sonora, não consegue transmitir a alegria nem tem o poder de comunicação dos marchantes cariocas. É uma tristeza. É como se Domingo e Terça-feira Gorda se tivessem transformado em Quarta-feira de Cinzas. O Carnaval de Estremoz é um arremedo do Carnaval carioca. Daí que seja legítimo questionar:
- Quem te manda a ti sapateiro, tocar rabecão?
No corso carnavalesco de Estremoz constata-se a ausência de qualquer tipo de crítica social ou política. Para além disso e pese embora o Carnaval ser um período propício a consumos proscritos durante a Quaresma, não é pedagógica e eticamente aceitável que marchantes consumam álcool durante o desfile, já que esse consumo pode transmitir a ideia errada que para haver alegria é preciso haver consumo de álcool.     
É Carnaval, ninguém leva a mal
Curiosamente, no desfile deste ano, o locutor de serviço proclamava de vez em quando:
- O Carnaval de Estremoz tem o apoio incondicional da Câmara Municipal de Estremoz!
Da minha parte só uma resposta é possível:
- É Carnaval. Ninguém leva a mal.

Hernâni Matos
Cronista do Jornal E, folião e tudo
Publicado inicialmente em 11 de Fevereiro de 2018
(Texto publicado no jornal E nº 194, de 22-02-2018)

CRÉDITOS DAS FOTOGRAFIAS
1 - Fotografia de Mendes Lopes – Jaime dos Santos. Arquivo de Hernâni Matos.
2,3,6,7 – Fotografias de Rogério de Carvalho (1915-1988). Arquivo do Orfeão de Estremoz “Tomaz Alcaide”.
4 - Fotografia de Manuel Gato (1908-1994). Arquivo de Hernâni Matos.
5 - Fotografia de Rogério de Carvalho (1915-1988). Arquivo de Hernâni Matos.


  2 Corso carnavalesco de 1935. Carro alegórico da papelaria “A Tabaqueira”.

 3 - Corso carnavalesco de 1935. Carro alegórico de temática equestre frente ao
Quiosque Maniés.


4 - Anos 30 do séc. XX. Mascarados fazendo-se transportar numa Dona-elvira
descapotável e florida, com uma matrícula digna de figurar num vetusto
relicário. Ao fundo, o edifício do RC3 com uma cerca de tabuinhas,
no mesmo local onde hoje existe uma sebe de buxo.

 
 5 - Corso carnavalesco de 1951, frente ao edifício do extinto Círculo Estremocense,
sociedade recreativa frequentada pela alta sociedade da época e cuja criação
em 1850 foi autorizada por alvará régio de D. Pedro V.

6 -Corso carnavalesco de 1954. Grupo de “cabeçudos” e “gigantones”
junto ao Jardim Municipal. 

7 - Corso carnavalesco de 1957. Carro Alegórico do Orfeão de Estremoz “Tomaz Alcaide”.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

No mesmo mar navegamos…



No tempo da outra senhora
No tempo da outra senhora, a teia de interesses urdida pela aranha salazarista, obrigava quem se candidatasse a integrar a função pública, a ser forçado a subscrever um documento com assinatura reconhecida, no qual se expressava: “Declaro por minha honra que estou integrado na ordem social estabelecida pela Constituição Política de 1933, com activo repúdio do comunismo e de todas as ideias subversivas”. Estava-se no regime de partido único que através da castração política, exigia fidelidade canina e obediência cega ao então suposto bem amado chefe e dono disto tudo.
“Brados do Alentejo” e “E”
Entre nós, nesta terra transtagana, existem dois jornais locais: o “Brados do Alentejo” e o “E”, cada um deles à sua maneira, ao serviço de Estremoz e do seu termo. São jornais plurais, não só pelo que está consignado nos respectivos estatutos editoriais, mas também pela prática salutar de a um jornalismo factual e noticioso, acrescerem um jornalismo de análise e de opinião, subscrito com o nome dos seus autores, o qual chancela indelevelmente aquilo que pensam, acreditam, defendem e propõem.
A matriz pluralista de cada um dos jornais está na origem da sua bateria de colaboradores se espraiar por um espectro largo de visões do mundo e da vida, que vão do CDS ao BE, passando pelo PSD, PS e PCP, englobando também aqueles que não se revêem em nenhuma destas opções do catálogo ideológico.
Um desses jornais, o “E”, inclui uma página onde em cada número e sob a epígrafe “Parlamento”, os representantes das várias áreas ideológicas respondem a uma questão de índole local ou nacional, formulada por um deles, situação na qual se vão sucessivamente revezando. Neste “Parlamento” é notória a ausência de quem quer que seja que dê a cara pela associação local MIETZ. Não porque ali e o mesmo acontece no outro jornal, se ostracize esta Associação, mas simplesmente por que esta decidiu não participar no “campeonato”, não se sabe se por não ter argumentos sólidos ou se por excesso de auto-estima, não se querer confrontar com os outros, ao atribuir-se a si próprio o estatuto de pertencer a um escalão superior, no qual é como que um partido único.
Quem não é por nós, é contra nós
E vá daí, o Presidente da associação local MIETZ proclama que os “Brados do Alentejo” e o “E” são boletins do Partido Socialista. Trata-se de uma forma redutora de catalogar um jornalismo livre e independente que recusa algemas, mordaças e vendas, que se as aceitasse, o reduziriam à condição dócil de ser “a voz do dono”. Honra e glória, pois, aos dois jornais locais que, cada um deles à sua maneira, se comportam como os irredutíveis Astérix e Óbélix, na Gália ocupada pelo usurpador romano.
Navegar é preciso
Os “Brados do Alentejo” e o “E” são jornais pluralistas nesta terra transtagana, na qual alguém sonhou, sem todavia o conseguir, impor a “lei da rolha” e o “delito de opinião”.
Se os “Brados do Alentejo” e o “E” são boletins do Partido Socialista, todos os seus colaboradores, repórteres e cronistas, do BE ao CDS, estão na mesma nau. Somos todos “socialistas”, não necessariamente à António Costa ou à Catarina Martins, mas também à Jerónimo de Sousa, à Rui Rio ou à Assunção Cristas. No mesmo mar navegamos, à procura de bom porto.
Cronista do “Jornal E” e dos “Brados do Alentejo”