sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A brincar se constrói a personalidade


JOGO DO PIÃO (c. 1930). Fotografia de João Martins. Negativo em nitrato. Divisão
de Documentação Fotográfica / IMC. Número de Inventário do Objecto: 155.001.122

O presente post, fruto da nossa reflexão pessoal sobre jogos e brincadeiras infantis, é a síntese dialéctica de dois posts anteriores: BRINCADEIRAS D'OUTRORA, editado em 9 de Março de 2010 e DIA MUNDIAL DA CRIANÇA, editado em 1 de Junho de 2011. Trata-se do nosso contributo para o debate que se impõe em torno do tema que é objecto deste post.

                                                   Todo o mundo é composto de mudança,
                                                   Tomando sempre novas qualidades.
                                                                   Luís de Camões (c.1524 – 1580)

Porque fomos crianças ontem, devemos pensar nas crianças de hoje e apostar fortemente nas crianças de amanhã.
A brincadeira é o trabalho da criança. É a brincar que a criança aprende a ser homem ou mulher e constrói a sua personalidade.
As brincadeiras de hoje não são as brincadeiras de ontem. Nos meus tempos de miúdo, éramos capazes de nos divertir com um simples apito. Com ele, podíamos imitar um pássaro, um polícia ou um árbitro. Dependia da nossa imaginação momentânea e daquilo que nos desse na real gana. Exercitávamos assim a nossa imaginação criadora e praticávamos o exercício da liberdade.
Outras brincadeiras e jogos eram colectivos. Jogávamos aos amalhões, à mosca, à pateira, à roda, ao botão, ao pião, ao berlinde, à bola, etc., etc. Com eles, desenvolvíamos a nossa socialização e reforçávamos o espírito colectivo. E às vezes desentendíamos e jogávamos ao soco uns com os outros e todos levavam no focinho, porque lá diz o rifão: “Quem vai à guerra, dá e leva”. Passado algum tempo, fazíamos as pazes e continuávamos a brincar juntos.
Nas nossas brincadeiras, o que contava era a imaginação sem limites e a arte do desenrasca, em que o português ainda hoje é mestre.
Havia também a ida aos grilos e partidas que se pregavam aos tansos como a “ida aos gambozinos” ou fazer de estribo na “brincadeira do rei coxo”.
Hoje em muitos casos não é assim. São as consolas, os jogos de vídeo, de computador e de telemóvel. Tudo envolvendo jogos que na sua esmagadora maioria foram concebidos para serem praticados individualmente, visando fomentar o individualismo e para programarem e vincularem os seus praticantes, a estereótipos de egoísmo, do salve-se quem puder, do vale tudo, da violência, do terror e do medo. É isso que interessa à sinistra alta finança mundial, que a nível global, controla os governos de cada país.
Não lhes interessa que haja cidadãos que se possam sentir homens livres, criativos, com carácter, com coragem, amantes da Paz, solidários com o próximo, com respeito pelo colectivo, que reconheçam o valor do esforço, do trabalho e do mérito. Isso para eles é subversivo. Para eles, interessa-lhes que em criança, os cidadãos sejam programados de maneira diferente.
Interessa-lhes cidadãos dóceis, submissos, governados pelo medo, obedientes, egoístas, sem respeito pelo colectivo e que aceitem acefalamente a violência e a guerra.
Nos meus tempos de miúdo, para além das brincadeiras de rapazes e tanto quanto me permite a memória dos tempos idos, sempre tive gosto por colecções, entre elas, botões, cromos, moedas, selos, postais, panfletos publicitários e mais tarde, aí pelos 12 anos, livros.
A estas colecções vieram-se juntar outras, mas as colecções primitivas ainda hoje perduram. Entre elas, as colecções de cromos montadas nas respectivas cadernetas, como é o caso das RAÇAS HUMANAS, da HISTÓRIA DE PORTUGAL, da HISTÓRIA NATURAL e dos TRAJES TÍPICOS DE TODO O MUNDO, entre eles os de Portugal.
As cadernetas de cromos constituíam a nossa iniciação à leitura e à literatura, a nossa primeira abordagem à História de Portugal, a nossa partida à descoberta do mundo, de outros povos e de outros costumes.
Decerto que foi com a caderneta dos TRAJES TÍPICOS DE TODO O MUNDO, que eu fiquei fascinado pela Etnografia, antes de saber que entre nós, Garrett tinha sido o percursor, Leite de Vasconcellos o fundador e Luís Chaves e outros mais, os continuadores.
As cadernetas de cromos, foram as minhas pastilhas de Cultura. Foram o meu software, antes de terem inventado as consolas electrónicas que programam e condicionam o divertimento, assim como a raça maldita dos Magalhães, que põem os putos convencidos que fazer um trabalho de pesquisa, não é mais que uma mera operação de corte e colagem.
Não trocava uma caderneta de cromos por 10 Magalhães, nem sequer o meu talego de botões (com mirôlas e chapéuzinhos de chumbo) por consolas.
Nos meus tempos de miúdo, as meninas, salvo alguma Maria Rapaz, que as havia e algumas delas encantadoras, brincavam às donas de casa, passando a ferro, fazendo jantarinhos e dando banho e biberão aos bonecos.
Hoje, reconheço que o sistema estava montado para gerar diferença de género e havia coisas que, apesar de puto, eu tinha a noção que não deveriam ser assim.
É preciso que os pais e educadores tenham cada vez mais consciência destes problemas e se empenhem em dar a volta ao que está errado, para que a formação daqueles que serão os homens e mulheres de amanhã, se possa efectuar sem desvios nem distorções.
Torna-se necessário retomar jogos e brincadeiras antigas, algumas das quais têm milhares de anos e adoptar outras novas, que ajudem a formar homens e mulheres de carácter, livres, verdadeiros, justos e solidários. Essa é uma revolução permanente que temos de tomar nas nossas mãos. É a nossa grande batalha pela cidadania. E havemos de vencer, porque quem não se rende, vence sempre. De resto, o registo das memórias passadas é o melhor investimento cultural que podemos legar aos nossos netos.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 26 de Agosto de 2011

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

A origem das alheiras


                              

À  Manuela Mendes:                      

Por diligência de D. João III junto da cúria romana, o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, foi imposto em Portugal pela bula "Cum ad nihil mugis", de 23 de Maio de 1536 e só seria extinto em 1821.
A Inquisição foi singularmente activa em Lisboa, Coimbra e Évora, com poder religioso, político, social e cultural, que institucionalizou o espírito de intolerância, particularmente anti-judaico e organizou um autêntico genocídio cultural através da censura literária.
Quando o pesado braço da Inquisição iniciou a perseguição aos judeus portugueses, estes viram-se na necessidade de se converter ao cristianismo, adoptando os seus costumes, pelo menos na aparência.
Como a tradição judaica, recusava o consumo da carne de porco, em virtude de esta ser considerada "impura", os nossos judeus viram-se na contingência de inventar a alheira, enchido no qual a carne de porco era substituída por uma extensa gama de carnes, que incluía galinha, peru, pato, perdiz, vitela, carneiro, cabra,os quais eram envolvidos por uma massa de pão, que lhes conferia consistência.
A alheira é, hoje, um dos mais afamados ex-libris transmontanos. Lá diz o rifão: "A necessidade é mestra de engenho". Na verdade, as disposições regimentais do Tribunal do Santo Ofício, em contraposição com as leis e garantias do direito civil, permitiam o secretismo das testemunhas de acusação, a inviabilização da defesa do réu, a viciação do sistema de provas admissíveis e a validade da tortura, muitas vezes pelo fogo, na ratificação das confissões, ainda que estas fossem posteriormente desmentidas. Muitas vezes, as sentenças acarretavam a confiscação de bens e a morte pelo fogo.
Foi nesse contexto repressivo, que os nossos “marranos”, temerosos de perderem os bens e a vida, criaram a saborosa alheira. É caso para dizer:
- "Bem hajam, por isso!"
- "Honra e glória à criatividade da comunidade judaica portuguesa!"

BIBLIOGRAFIA
- DIVERSOS. Dicionário ilustrado da História de Portugal. Publicações Alfa, Lisboa, 1985.
- DIVERSOS. História da Arte em Portugal. Publicações Alfa, Lisboa, 1986.
- DIVERSOS. Marcos da Arte Portuguesa. Publicações Alfa, Lisboa, 1986
- SARAIVA, José Hermano. Imagens da História de Portugal. Publicações Alfa, Lisboa, s/d.

Publicado inicialmente em 19 de Agosto de 2011

quarta-feira, 17 de agosto de 2011

A menina quer bailar?




Esta é a 2ª edição do post A MENINA QUER DANÇAR?,
editado em 20 de Fevereiro de 2010, agora revisto, reformulado e ampliado,
com a introdução de mais vinte quadras do cancioneiro popular alentejano,
ligadas à temática do baile popular, assim como três provérbios desse tema e
mais duas referências bibliográficas. Quanto ao título, ele próprio foi reformulado.


Nos bailes populares alentejanos dos finais do séc. XIX – princípios do séc. XX, era sacramental a pergunta endereçada pelo rapaz, à moça que lhe enchera as medidas:
- A menina quer bailar?
A resposta, podia assumir a forma dum rotundo “Não!”, tradicionalmente conhecido por “cabaço”. Mas a resposta podia igualmente revestir a forma dum rasgado sorriso, acompanhado dum entregar de corpo, às mãos e braços do varão inquiridor, que conduziria a moça durante o baile.
Eles bailavam de chapeirão, de bota cardada e calças com boca-de-sino. Elas, de saia a rasar o chão, o que levava alguns rapazes a confessar que:

"Toda a vida me agradou
Moça de saia rasteira,
Porque pranta o pé no chão
Devagar, não faz poeira." [3]

Todavia, os rapazes não gostavam que as moças dançassem de socos:

“Os sóccos para dançar
Fazem mui ruim effêto,
Ainda que as damas usem
Ricas jóias em sê pêto. ” [3]

No descanso, dava para eles enrolarem um paivante e tirar umas quantas fumaças, que isso de ser homem dá para fumar. E é sempre bom levar o varapau, que o diabo às vezes assume a forma de maltês. Também dava para elas comporem as saias à cinta, aperaltar os colares e compor os carrapitos.
Como vêem existia uma grande diferença de género.
Eu tenho uma certa pena das moças, porque os aprestos dos homens deviam ser algo incómodos, a menos que eles fossem ágeis e cuidadosos. De contrário, dançar de botifarras, devia dar para pregar cada pisadela que fervia. Uma botas alentejanas que se prezem, não são propriamente uns sapatos à Fred Astaire.
Também o chapeirão devia ser uma grande chatice, a menos que a moça fosse mais baixa.
Se a moça fosse mais alta, o chapeirão batia-lhe no peito e mantinha as distâncias, o que convenhamos era um grandessíssimo inconveniente para o homem.
Se a moça fosse da mesma altura, o chapeirão devia estar sempre a embirrar com a cabeça dela, a menos que dançassem de cabecinha ao lado, correndo o risco de dar um jeito ao pescoço. E o dinheiro que sobrara da romaria já não dava para ir ao endireita.
Um dos locais mais afamados para bailar no Alentejo, era o terreiro das Festas de S. Mateus, em Elvas:

“Eu também já fui à festa
e fiz promessas a deus
de cá voltar outra vez
a dançar no São Mateus.” [2]

Os bailes populares eram abrilhantados por tocadores de viola ou de acordeão, que eram também cantadores.
O bailar chegava a ser apontado como recomendação divina:

“Deus do céu mandou à terra
Um aviso à mocidade,
Que cantassem e bailassem,
Divertissem-se à vontade.” [1] (Amareleja)

A maioria dos rapazes gostava de bailar e versejar:

“Canto saias, bailo saias,
Eu saias ando bailando,
Gosto de bailar as saias
Com quem as andas trajando.” [3]

Alguns indicavam minuciosamente, as características a que devia obedecer o baile:

“O bailar quer-se mexido,
Puladinho e bem cantado,
Quer-se alegre e chegadinho
Ao par que levo ao meu lado.” [1] (Beja)

Bailar bem, era uma virtude a que os rapazes aspiravam:

“Quatro coisas ha no mundo
Que eu desejava apprender:
Cantar bem, tocar viola,
Báilhar bem e saber ler.” [3]

Algumas das moças seriam vaidosas. Pelo menos, era essa a opinião de alguns dos rapazes:

“Estas meninas d’gora
São bonitas, bailam bem;
Mas em tendo um fato novo,
Já não falam a ninguém.” [3]

Algumas moças recusar-se-iam mesmo a bailar:

“Menina que é cabaceira,
Tantos cabaços tem dado,
Veja lá se tem algum
Também para mim guardado.” [3]

Por vezes, a rapariga não sabia dançar:

“Oh! Que pernas, oh! que boca,
Henriqueta, vossê tem!
P´ra que quer vossê as pernas,
Se vossê não dança bem?” [3]

Havia rapazes que sabendo cantar e bailar, não percebiam porque é que as raparigas não gostavam deles:

“Tu dizes que não me queres,
Meu amor diz-me porquê,
Eu sei cantar e bailar,
E rir e falar tambem.” [3]

Havia rapazes que lamentavam não saber cantar tão bem, quanto sabiam versejar:

“S’eu soubesse cantar bem,
Como sei fazer cantigas,
Andava de bàlho em bàlho
Divertindo as raparigas.” [1] (Aljustrel)

Quando faltavam raparigas no baile, havia rapazes que procuravam desfazer os pares, originando frequentes zaragatas:

“Camarada, dá licença,
Um bocadinho, faz favor?
Quero dar palavra e meia
Ó seu par, que é meu amor.” [3]

Alguns rapazes faziam do cantar e tocar nos bailes, o seu ganha-pão:

“A cantar e a bailar
É que o meu bem ganha pão,
De viola a tiracolle
E panderêta na mão.” [3]

Havia quem exteriorizasse a sua liberdade de poder cantar e bailar:

“Inda canto, inda bailo.
Inda cá não ha tristeza,
Inda cá não ha quem tenha
Minha liberdade presa.” [3]

Havia mulheres que desejavam ficar sem o marido, a fim de poderem cantar e bailar, tal como em solteiras:

“Já não canto, já não bailo,
Que não quer o meu marido,
Deixem-no ir embora,
Restaurarei o perdido.” [3]

Havia quem, talvez por despeito de não ter par, considerasse que quem estava a bailar, não tinha dinheiro:

“Dos pares que andam bailando
Ali no meio do terreiro,
Não se me dá de apostar:
Nenhum d’elles tem dinheiro.” [3]

Havia quem, por estar triste, desejasse que os pares a bailar, caíssem, a fim de se divertir:

“Os pares que andam bailando,
Quem m’os dera ver cair!
Tenho o meu coração triste,
Q’ria fartar-me de rir.” [3]

Os rapazes reconheciam que, bailar de empreitada, dava cabo deles:

“Não é o cantar que dá
Cabo da rapaziada;
É o muito andar de noite
E o bàlhar de empreitada.” [1] (Odemira)

Enquanto houvesse cantadores, havia baile:

“Eu vejo o baile acabado
À falta de cantadores:
Agora começo eu,
Com licença, meus senhores.” [3]

Uma coisa é certa: nem todos os homens gostavam de bailar:

“Para bailar doe-me um dente,
Para cantar uma perna,
Onde tenho algum alívio
É à porta da taberna.” [3]

Alguns homens, por questões anatómicas, dançariam mesmo mal. Lá diz o rifão: "Barrigudo não dança, só sacode a pança". Todavia, também por questões anatómicas, ainda hoje persiste a crença de que: “Homem pequenino, ou velhaco ou dançarino”. De resto, o rifão “Assim como cantares, assim dançarás", talvez possa significar que “Se tiveres voz de cana rachada, então terás, decerto, pé de chumbo”.
Era este o contexto sociológico e lúdico dos bailes populares, nas feiras, festas e romarias do Alentejo, de finais do séc. XIX – inícios do séc. XX.

BIBLIOGRAFIA
[1] – DELGADO, Manuel Joaquim Delgado. Subsídio para o Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo. Vol. I. Instituto Nacional de Investigação Científica. Lisboa, 1980.
[2] - SANTOS, Victor. Cancioneiro Alentejano. Livraria Portugal. Lisboa, 1959.
[3] - THOMAZ PIRES, António. Cantos Populares Portugueses. Vol. IV. Typographia e Stereotypia Progresso. Elvas, 1910.

Inicialmente publicado a 17 de Agosto de 2011

sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Cancioneiro popular da água


Camponesa do Redondo. Bilhete-postal ilustrado, edição do Museu de Ovar, reproduzindo aguarela de Alfredo Moraes (1872- 1971).

PREÂMBULO

A importância da água é incomensurável, já que é utilizada como simples bebida ou com fins medicinais, na preparação e confecção de alimentos, no banho, na lavagem de roupa e de loiça, na rega, etc. Daí que seja natural que no cancioneiro popular alentejano, existam múltiplos registos que referem a água. Seleccionámos, sistematizámos e estudámos algumas dessas referências, fruto da nossa pesquisa em quatro fontes bibliográficas distintas, cujos autores, cada um na sua época, as recolheu da tradição oral. Sistematizámo-las em quatro grupos distintos:

1 – Mitologia no Cancioneiro Popular
2 – A obtenção da água
3 – O vasilhame de água
4 – Matar a sede

Passemos, de seguida, em revista, estes grupos:

MITOLOGIA NO CANCIONEIRO POPULAR

Faz parte da Mitologia Popular Portuguesa, a crença de que no princípio do mundo, a água foi condenada a correr sempre [2]. Daí que o cancioneiro popular alentejano constate que a água corra sempre, naturalmente, para baixo:

“A agua p’ra baixo corre,
P’ra cima não faz corrente;
Meu amor, se estás zangado,
Eu também não ‘stou contente.” [3]

Por isso e em contrapartida, para cima, a água só segue forçada:

“Água de ladeira acima,
Sem a levarem não vai.
Se queres qu´ê seje tua,
Vai-me pedir ò mé pai.” [1] (Vale de Santiago – Odemira)

A chuva faz correr água nos barranquinhos e revitaliza a natureza:

“Graça a Deus que já chove,
Já correm nos barranquinhos,
Já os campos ‘stão alegres,
Já cantam nos passarinhos.” [1] (Beja)

A água que corre na ribeira tem peixes:

“O barranco leva água.
Há peixinhos na ribeira.
Nesse teu peito amoroso,
Amizade verdadeira.” [1] (Montes Velhos - Aljustrel)

É frequente, o desejo de que a água fique retida:

“Agua, sustem-te nos valles,
Não sejas tão corredia;
Ja não há amor’s leaes,
Como n’outro tempo havia.” [3]

Integra igualmente a Mitologia Popular Portuguesa, a crença de que, no princípio do mundo, a água também tinha fala [2] e comunicava com quem junto a ela manifestava as suas emoções:

“Puz-me a chorar saudades
A’beira d’agua que corre,
A agua me respondeu:
Quem tem canceiras não dorme.” [3]

A própria água podia falar até dos seus progenitores:

“A minha mãe é ribeira,
O meu pae é rio corrente,
Sou filha das aguas claras,
Não tenho nenhum parente.” [3]

Pertence também ao domínio da Mitologia popular portuguesa, a convicção de que a água dorme todas as noites [2].

“Dormes ao pé da ribeira,
Hás-de-me saber dizer
Quantas horas dorme a água
Antes da manhã romper.” [1] (Mértola)

Daí que também alguém responda:

“Contas horas drome a água,
Isso nã’ le sê dezer:
Qu’é drumo à bêra do rio,
Toda a noite oiço correr.” [1] (Odemira)

Daí que alguém pergunte:

“Menina, que sabe tanto,
Há-de-me saber dizer:
Contas horas drome a água
Entes da manhã romper?” [1] (Mértola)

A OBTENÇÃO DA ÁGUA

É considerado uma ventura, morar próximo de água:

“É um regalo na vida,
Ao pé da água morar,
Quem tem sêde vai beber,
Quem tem calor vai nadar.” [3]

Por vezes, bebia-se água do pego:

“Tinha sêde e fui beber
Lá no pêgo de Vianna;
Val’ mais uma hora d’amor,
Que o ganho d’uma semana.” [3]

Bebia-se muita água do poço, o qual era um local de encontros amorosos:

“Quanto mais fundo é o pôço,
Mais fresca n’el’ são as aguas
Quanto mais falo contigo,
Mais gosto das t’as palavras.” [3]

Alguns conseguiam escapar às tentações de amor junto ao poço:

“Adeus, poço do terraço,
Onde eu mato a minha sede,
Armaram-me lá um laço
Mas eu não cahi na rede.” [3]

O poço podia ser um local de infidelidade amorosa:

“Vi-te ao poço mai-la outra,
enquanto eu ceifava o trigo;
ai quem pudesse ceifar
a dor que trago comigo.” [4]

Havia quem admitisse por saudade, arrojar-se ao poço:

“Hei-de-me deitar ao poço,
Fazer de mim caldeirão.
As saudades são tantas,
Que elas por mim puxarão.” [1] (Beja)

Havia poços que tinham um engenho para tirar água, a nora:

“Como alcatruzes de nora
São as vaidades do mundo,
Os que enchem vão a cima,
Os que vasam vão ao fundo.”  [3]

As fontes à beira dos caminhos sempre foram muito apreciadas pelos viajantes:

“Benditas sejam as fontes
À beirinha dos caminhos,
Onde vão matar a sede
Os alegres passarinhos.” [1] (Amareleja)

Poder beber água de todas as fontes era motivo de inveja:

“Nã’ m’enleva de quem tem
Carros, parelhas e “montes”;
Só m’enleva de quem bebe
Água de todas as fontes.” [1] (Beja)

Nenhuma fonte se podia menosprezar:

“Ninguém diga eu não hei-de
Desta fonte água beber;
Pode a sede apertar muito,
E outro remédio não ter.” [1] (Vale de Santiago – Odemira)

A fonte era um local de encontro, onde se bebia sem ter sede:

“Fui à fonte beber agua,
Por baixo da canna verde,
E só p’ra vêr os teus olhos
Bebi agua sem ter sede.” [3]

“Fui beber a uma fonte
Debaixo da fresca murta,
Fui só para ver os teus olhos,
Que a sede não era muita.” [1] (Mina da Juliana – Aljustrel)

A fonte era, algumas vezes, um local de encontros imprevistos:

“Fui à fonte beber agua,
Julgando que não te via.
Mas fiquei tão distrahida,
Que nem a água bebia.” [3]

A fonte era ainda um local de namoro:

“Andam na eira os rapazes
O seu trigo a debulhar,
E à noite vão para a fonte,
As moças a namorar.” [3]

A fonte era também um local de brincadeiras:

“Menina, se for á fonte,
Não brinque lá com ninguém,
‘Stá a louça muito cara
Cada cântaro um vintem.” [3]

O caminho da fonte era um caminho muito percorrido:

“Adeus praça, adeus castelo,
Adeus caminho da fonte:
Por causa das raparigas
Muito calçado se rompe.” [2] (Alandroal)

Na fonte achavam-se, por vezes, objectos perdidos:

“Fui à fonte beber água,
Achi um lencinho verde.
Quem no perdeu, tinha amores,
Quem no achou, tinha sede.” [1] (Beja)

Os desentendimentos amorosos, levavam a mudar de fonte:

“Algum dia em tendo sede,
Ia beber ao teu “monte”;
Agora estou mal contigo,
Vou beber a outra fonte.” [1] (Beja)

A água muitas vezes corria da fonte para um chafariz e daqui para um lavadouro:

“Deixa lá falar, quem fala,
Deixa lá dizer quem diz,
Deixa lá correr as aguas,
Da fonte p’r’o chafariz.” [3]

Por vezes também se consumia água da chuva, guardada em cisternas:

“O regalo do soldado
É ter a cama no chão,
Beber agua da cisterna,
Comer pão de munição.” [3]

A água é um bem finito, que deve ser conservado:

“Quem quer boêr não turva a água,
Quelara a quer conservar,
Que assim faz o homem serio
Quando pretende casar.” [3]

O VASILHAME DA ÁGUA

As bilhas de barro eram conhecidas por tornar a água mais saborosa:

“Aquela bilha de barro
comprada em Vla Viçosa
p’ra matar sede de amor,
faz a água mais gostosa.” [4]

As bilhas tinham como único inconveniente, o serem frágeis:

“Caiu-me a bilha no monte.
lá deixou ficar a asa…
Culpa tem quem fez a fonte
tão longe da minha casa.” [4]

Dava-se água pelo púcaro, o que não era privilégio de todos:

“Senhora, que a todos daes
Agua por púcaro novo,
Só a mim é que deixaes
Desconsolado de todo.” [3]

Havia quem implorasse água do púcaro:

“M’nina que estás à janella,
Co’ pucarinho na mão,
Dá-lhe volta, se tem agua
Réga-me este coração.” [3]

Em casa, além do púcaro, usava-se também o copo:

“Em cima daquela mesa
Está um copo d’água fria
Onde se baptizou a Cristo,
Filho da Virgem Maria.” [1] (Amareleja)

MATAR A SEDE

A sede leva a pedir água:

“Dá-me uma pinguinha d’agua,
Que eu bem na sinto correr,
Onde há silvas e montrastos
Alguma pinga ha de haver.” [3]

“Dá-me uma pinguinha d’agua
Pela tua propria mão,
Que das terras d’onde eu venho
Nem as fontes agua dão.” [3]

Todavia, o pedido pode ser recusado:

“Passei pela tua porta,
Pedi-te agua, não m’a deste;
Nem os moiros na moirama
Fazem, o que tu fizeste.” [3]

“Eu pedi uma pinga d’agua
Á ingrata d’uma prima,
Vinha com ella da fonte,
E disse-me que a não tinha.” [3]

As recordações podem fazer esquecer a sede:

“De tanta sede que tinha
Nenhuma água bebi.
Quando ia para beber
Tive lembranças de ti.” [1] (Beja)

Ver as bicas da fonte, não mata a sede:

“D’aqui onde estou bem vejo
Correr as bicas da fonte;
Ai de mim! que morro à sêde,
Tendo o remedio defronte.” [3]

Os bêbados têm sede, mas de vinho:

“Ó meu amor, vinho, vinho,
Agua não posso beber,
A agua tem sanguessugas,
Tenho medo de morrer.” [3]

Além de matar a sede, a água permite aclarar a voz:

“Dá-me uma gotinha de água
Para lavar a garganta;
Quero cantar como a rola,
Como a rola ninguém canta.” [1] (Beja)

O despeito de amor, pode levar alguém a rogar pragas, nas quais intervém a água:

“Meu amor abandonou-me
Não sei qual fosse a razão,
Ao beber lhe falte a água,
Ao comer lhe falte o pão.” [3]

BIBLIOGRAFIA

[1] – DELGADO, Manuel Joaquim Delgado. Subsídio para o Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo. Vol. I. Instituto Nacional de Investigação Científica. Lisboa, 1980.
[2] - LEITE DE VASCONCELLOS, José. Etnografia Portuguesa, Vol. V. Imprensa Nacional – Casas da Moeda. Lisboa, 1982.
[3] - PIRES, A. Tomaz. Cantos Populares Portuguezes. Vol. I. Typographia Progresso. Elvas, 1902.
[4] - SANTOS, Victor. Cancioneiro Alentejano. Livraria Portugal. Lisboa, 1959.

Hernâni Matos

sábado, 6 de agosto de 2011

Sexta-Feira Santa e rock and roll

Elvis Presley (1935-1973)

Há cinquenta anos atrás, estávamos em 1961. Os rapazes da minha geração tinham quinze anos e estavam quase a ir “tirar as sortes”. Eram nuvens negras no horizonte de cada um, pois em Fevereiro desse ano começara a Guerra em Angola.
A sociedade era bastante conservadora. Vivíamos num regime de partido único e não era permitida a expressão pública de opiniões contra o regime e contra a guerra. A censura e a polícia política controlavam toda a comunicação social, pelo que não nos era dado ouvir ou ver, nada que pusesse em causa o regime ou aquilo que era considerado por eles, os bons costumes.
Ainda não acontecera o Maio de 68 e ainda não déramos pelos Beatles. Não usávamos cabelos compridos, nem barbas crescidas. Tínhamos um ar normal na época. Vestíamos de maneira convencional, conforme as posses de cada um. Alguns já fumavam um cigarrito à escondida dos pais. Íamos ao futebol, ao hóquei e ao cinema. Elvis Presley era o nosso ídolo no celulóide, sempre divertido, a cantar e a tocar guitarra, rodeado de miúdas giras. Como nós o
invejávamos. Alguns de nós, imitavam-no, penteando o cabelo para trás, com brilhantina e a competente popa.
A América era para muitos de nós um sonho de liberdade, já que para bebermos coca-cola, tínhamos que ir a Espanha. Não havia discotecas por aqui e nos bailes as mães ficavam sentadas atrás das filhas. E os filmes do Elvis que nos continuavam a dar a volta à cabeça… Tinha que haver uma saída… E ela aconteceu precisamente numa Sexta-Feira Santa, dia de enterro do Senhor. Um de nós descobrira a pólvora sem fumo:
- Eh rapaziada, os meus pais foram de viagem e eu estou sozinho em casa. Que tal convidarmos umas miúdas para fazer lá uma matiné.
- Eh pá! Bestial! Vamos a isso!
Lá convidámos umas miúdas e dançámos ao som do Elvis, debitado pelo gira-discos do nosso anfitrião. Até foram irmãos e irmãs, tendo decorrido tudo dentro da maior compostura. E ao som do Elvis, lá descarregámos as tensões acumuladas dentro de nós, pela sociedade que nos oprimia. O pior estava para vir. As miúdas apanharam um raspanete de todo o tamanho lá em casa. E pela cidade de Estremoz, correu célere a notícia:
- Vejam lá estes hereges. Com o Senhor morto e o corpo a pedir folia!
- Excomungados é que precisavam!
- Onde é que já se viu, Sexta-Feira Santa e rock and roll?
Cinquenta anos decorridos, reconheço que foi positivo ninguém ter sido excomungado, já que muitos eram católicos praticantes e desse credo nunca se afastaram. Nem mesmo com Sexta-Feira-Santa e rock and roll…

quinta-feira, 28 de julho de 2011

Novamente o "Barbeiro sangrador"

Barbeiro sangrador, peça da barrística popular estremocense da autoria das afamadas barristas Irmãs Flores. Inspirada na imaginária popular do séc. XVIII, é uma representação ingénua do acto de sangrar.(Imagem recolhida no blogue do extinto Museu do Artesanato, Évora).


DATAÇÃO E ORIGEM
Em Junho - Julho de 1962, esteve patente ao público no palácio de D. Manuel I, em Évora, a importante exposição “BARRISTAS DO ALENTEJO”, organizada pelo Grupo Pró-Évora e que contou com o alto patrocínio da Fundação Calouste Gulbenkian. Para o prestigiado evento foi editado um catálogo de 72 páginas e 40 ilustrações a preto e branco.
Nessa interessante publicação [5] com prefácio de José Régio e Júlio dos Reis Pereira, é feito o inventário de 362 lotes de peças do figurado alentejano, pertencentes a colecções particulares de Estremoz, Azaruja, Évora e Portalegre, bem como a colecções institucionais de Estremoz, Elvas, Vila Viçosa e Redondo.
No conjunto das peças expostas havia uma vasta representação de figurado de Estremoz, pertencente a diferentes épocas. Uma delas com a tipologia da descrita por nós em post anterior, como “barbeiro sangrador”, era pertença do médico João do Couto Jardim, de Vila Viçosa. Tinha 22 cm de altura e 13 cm de largura. Foi identificada como “operação cirúrgica” e reconhecida como peça do séc. XVIII. Independentemente da designação que lhe foi atribuída e da qual discordamos, ficámos a saber que o modelo que ainda hoje é fabricado pelos nossos barristas, remonta ao séc. XVIII.
Por sua vez, Solange Parvaux [2], investigadora francesa que realizou trabalho de campo sobre cerâmica alentejana em Agosto de 1959, 1960 e 1961, chama “cirurgião" àquela peça. 
Joaquim Vermelho [6], Director do Museu Municipal de Estremoz já falecido, chama-lhe também “cirurgião”, referindo tratar-se de uma “paródia ao barbeiro numa operação de sangria”. Posteriormente, Joaquim Vermelho [7], evoluiu para a designação “barbeiro cirurgião”, que creio ser mais aceitável. Todavia, prefiro a designação de “barbeiro sangrador”, pois como referi em post anterior, segundo Manoel Leitam (1), cirurgião do Hospital Real de Todos os Santos, em Lisboa, a médicos e cirurgiões competia a prescrição das sangrias e a barbeiros sangradores e Barbeiros cirurgiões, a sua execução. Deste modo a execução duma sangria apenas legitima a meu ver, a atribuição da designação de “barbeiro sangrador”, uma vez que não está a executar qualquer cirurgia.

AINDA E SEMPRE A LITERATURA ORAL
O cancioneiro popular refere-se à sangria, executada pelos barbeiros sangradores. Assim uma filha, que provavelmente não devia ter feito aquilo que fez, implora à mãe:

“Ó minha mãe não me bata
com varas de marmeleiro
que eu estou muito doente
mande chamar o barbeiro.” [3]

A quadra seguinte está naturalmente impregnada de segundo sentido. Trata-se, provavelmente, de um pai ou de uma mãe, que vociferam para um barbeiro sangrador, que sangrou uma menina onde não o devia ter feito:

“Mal hajas tu barbeiro
e mais a tua navalha!
foste sangrar a menina
na veia mais delicada!” [3]

Luís Pina [4] estudou um “Calendário Higiénico” da autoria de Vale Carneiro (1712), repleto de singulares prudências médicas. Relativamente ao mês de Janeiro, recomenda que:

“Sem causa urgente foge da sangria,
Bebe do vinho branco e delicado,
Deixa o falso, não laves todavia
A cabeça; usa sempre o mel rosado.” [4]

Também no mês de Julho, aconselha que: “Não tomes nem sangria, que é engano”. [4]
E, por enquanto, ficamos por aqui.

BIBLIOGRAFIA
(1) – LEITAM, Manuel. Pratica de Barbeiros em Quatro Tratados em que se trata de com se ha de sangrar, & as cousas necessarias para a sangria; & juntamente se trata em que parte do corpo humano se haõ de lançar as ventosas, assi secas, como sarjadas; & em que parte compitaõ sanguixugas, & o modo de as applicarem; com outras muitas curiosidades pertencentes para o tal officio, em Lisboa, à custa de Francisco Villela, 1667.
[2] - PARVAUX, Solange – La Céramique Populaire du Haut-Alentejo. Paris: Presses Universitaires de France, 1968.
[3] - PINA, Luís. Medicina e Superstição in A ARTE POPULAR EM PORTUGAL, vol. I. Editorial Verbo, 1979.
[4] - PINA, Luís. Um poético calendário português de Higiene seiscentista. Boletim da Câmara Municipal do Porto, XIII. Porto 1950.
[5] – PRÓ-ÉVORA, Grupo. Barristas do Alentejo. Évora, 1962.
[6] - VERMELHO, Joaquim – Barros de Estremoz. Limiar. Porto, 1990.
[7] – VERMELHO, Joaquim. Sobre a Cerâmica de Estremoz. Arquivos da Memória. Edição Colibri. Câmara Municipal de Estremoz. Lisboa, 1995.