sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Crónica da Casa do Alcaide-Mor de Estremoz


Fachada da Casa do Alcaide-Mor do Castelo de Estremoz (Fotografia SIPA-1995).

Era uma vez uma medieva Casa do Alcaide-Mor de Estremoz, que deixou de o ser, passou a ser residência popular e no século passado albergou mesmo um bordel. 
Apesar de o edifício ter sido classificado como Monumento Nacional em 1924, desde essa data que a CME tem revelado autismo em relação a políticas da sua preservação e valorização. Não é de admirar pois, que a seta do tempo o tenha maltratado inexoravelmente, pelo que abateu primeiramente o telhado, seguindo-se o segundo e o primeiro andar.

A lei de Lavoisier e a seta do tempo
Como corolário de uma política errada em relação ao património e com exclusão da fachada, o edifício é um monte de ruínas. Ainda que a lei de Lavoisier registe: “Na natureza, nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”, a seta do tempo tem um sentido único, pelo que o tempo não volta para trás, como no fado de António Mourão. Daí que o imóvel esteja como está.
Desde a adesão à CEE nos anos 80 do século passado, que o Município de Estremoz desperdiçou oportunidades sucessivas de financiamento de projectos, visando a recuperação da edificação. Consequentemente, à boca cheia ou pelos cantos, surgiram tesouradas e alfinetadas à sua olímpica passividade. A edilidade tinha um menino nos braços, do qual se tinha que ver livre. Em alternativa, tinha dois caminhos a seguir: pegar o boi pelos cornos ou delegar noutros, aquilo que era competência sua. Tragicamente para os munícipes, escolheu o caminho mais fácil, olvidando valores identitários locais, numa atitude que ao alienar património, é equiparável à de Esaú, que trocou a progenitura por um prato de lentilhas. Foi assim que deliberou vender aquela Casa em hasta pública.  Nesta e pela importância de 279.000,00 €, o imóvel foi provisoriamente adjudicado a um finório residente no concelho, em representação duma corporação americana, sediada numa caixa de correio dum paraíso fiscal e sucursal num edifício devoluto em Estremoz. Porém, o arrematante efectuou o pagamento inicial com um chegue careca, pelo que a venda não se concretizou e o menino ficou novamente nos braços de quem se queria ver livre dele, ao mesmo tempo que reforçava a provisão dos cofres municipais.

A virgem violada
Entrementes, um grupo de “Cidadãos pela Defesa do Património de Estremoz”, qual virgem violada, decide assumir-se no terreno como travão à venda. Nesse sentido, elabora uma petição à Câmara local, a qual recolhe um número irrisório de subscritores, relativamente ao universo populacional do concelho. Foi a sua primeira fraqueza. A segunda, foi promover uma Sessão Pública com deputados da “geringonça”. Não foi um tiro no pé, mas foi um tiro com pólvora seca. Dali saíram os deputados, transpirando boas intenções e os intervenientes com a alma aliviada pelo desfilar do seu rosário de mágoas. Foi pouco mais que quase coisa nenhuma. Lá diz a gíria popular: “Fica tudo como dantes, quartel-general em Abrantes”. Entretanto, uma pessoa que eu cá sei, terá largado o bitaite: “São os do costume”. O séquito apoiou e todos terão ficado contentes. Nesse meio-tempo, o “Grupo de Cidadãos” promoveu uma vista guiada à cerca medieval de Estremoz, a qual foi bastante participada e teve muita qualidade. O Município agradece, já que alguém está a fazer aquilo que ele não faz.

Ministério da Cultura questionado
O Grupo Parlamentar do BE dirigiu ao Governo, através do Ministério da Cultura, perguntas pertinentes sobre a postura da CME, as quais decorridos que são mais de 3 meses, carecem de respostas, talvez devido à inoportunidade das perguntas. É que o Governo PS, maioritário na “geringonça”, também precisa de reforçar os cofres do Estado, pelo que iniciou em Agosto um “Programa de Valorização do Património”, através do lançamento de 30 concursos de concessão da exploração de edifícios públicos, que são espaços históricos únicos, muitos dos quais abandonados ou em mau estado de conservação. Manuel Caldeira Cabral, ministro da Economia, argumentou a esse propósito ao Expresso que “Isto é a nossa herança histórica, temos a responsabilidade de olhar por este património, que não pode continuar ao abandono e a apodrecer, face ao estado a que chegou”. Por outras palavras, o Governo não tem chavo para fazer obras e precisa daquilo com que se compram os melões, para os utilizar noutras direcções que não as do Património Histórico. Por isso, estou convicto que as respostas do Ministério da Cultura ao BE vão demorar e ser provavelmente inconclusivas. 
De salientar que entre os edifícios que o Governo quer privatizar, se situam edifícios emblemáticos como o Mosteiro de Arouca, o Castelo de Portalegre e o Forte de Peniche. Relativamente a este último está a decorrer uma petição cujos subscritores lutam pela preservação da memória e resistência ao fascismo, pelo que apelam ao Governo para que o Forte permaneça património nacional, símbolo da repressão fascista e da luta pela liberdade.

A subida da parada
Como da primeira vez não houve consumação do acto, a CME decidiu lançar nova hasta pública, subindo agora a parada para uma base de licitação de 250.000 euros. Não apareceram interessados, pelo que a recuperação do imóvel continua em aberto e os cofres do Município ficaram sem o almejado balão de oxigénio.
Regime Jurídico do Património Classificado
A Lei n.º 107/2001 de 8 de Setembro, estabelece as bases da política e do regime de protecção e valorização do património cultural. De acordo com ela, os proprietários de bens classificados estão submetidos a restrições e obrigações no que respeita à sua transmissão, alienação, aquisição, direito de preferência, inscrições e afixações, projectos, obras e intervenções, conservação, deslocamento, demolições ou expropriações, estabelecidas nomeadamente nos artigos 9.º, 21.º, 31.º, 32.º, 34.º, 35º., 36.º, 37.º, 38.º, 41.º, 42.º, 45.º, 46.º, 48.º, 49.º,50º., 60º. e 99º. A transmissão de bens classificados obedece também aos artigos 416.º, 417,º, 418.º e 1410.º do Código Civil. De resto, vigora o Regime Jurídico do Património Imobiliário Público, aprovado pelo Decreto-lei n.º 280/2007, de 7 de Agosto e alterado pelos seguintes diplomas: - Lei N.º 55-A/2010, de 31 de Dezembro; - Lei N.º 64-B/2011, de 30 De Dezembro; - Lei N.º 66-B/2012, de 31 de Dezembro; - Decreto-Lei N.º 36/2013, de 11 de Março; - Lei N.º 83-C/2013, de 31 de Dezembro; - Lei N.º 82-B/2014, de 31 de Dezembro.

Que fazer?
Esta a pergunta sacramental que muitos estarão a formular. Contudo, não me cabe a mim responder. Não sou juiz com capacidade de administrar justiça, Ministério Público com competência de exercer acção penal, nem estou togado para ser advogado de defesa nem de acusação. Como jornalista, apenas me compete despertar consciências, pondo o dedo na ferida. E é nessa qualidade que, correndo o risco de ser acusado de pessimista, sou levado a citar o poeta António Aleixo: “Descreio dos que me apontam / Uma sociedade sã: / Isto é hoje o que foi ontem / E o que há-de ser amanhã.”.
A crónica vai continuar. Todavia, desconhecem-se as cenas dos próximos capítulos.

Telhados da Casa do Alcaide-Mor do Castelo de Estremoz (Fotografia SIPA-1993).

quarta-feira, 16 de novembro de 2016

Salvemos a olaria! - I


OLEIRO DE ESTREMOZ – Fotografia obtida nos anos 40 do séc. XX, pelo fotógrafo
Artur Pastor (1922-1999), natural de Alter do Chão.

A olaria é uma das mais antigas, se não a mais antiga das artes populares. A olaria estremocense é das mais ricas do mundo, pela variedade morfológica das suas peças e pela diversidade e riqueza da sua decoração. É uma das expressões mais elevadas da nossa identidade cultural local.

Referências histórico-literárias
As referências mais antigas à olaria estremocense remontam aos forais de D. Afonso III (1258) e de D. Manuel I (1512). Daqui para diante as referências histórico - literárias aos barros de Estremoz são múltiplas: António Caetano de Sousa (1543), Giovanni Battista Venturini (1571), Francisco de Morais (1572), Inventário de D. Joana (irmã de Filipe II), correspondência de Filipe II, Padre Carvalho (1708), Francisco da Fonseca Henriques (1726), João Baptista de Castro (1745), Duarte Nunes de Leão (1785), D. Francisco Manuel de Melo, Alexandre Brongniart (1854), Carolina Michaëlis de Vasconcellos (1925) e Hernâni Matos (2013).
Os barros de Estremoz têm sido cantados pelos nossos poetas: Camões, Gil Vicente, António de Vilas Boas e Sampaio, António Sardinha, Celestino David, Maria de Santa Isabel, Guilhermina Avelar e António Simões. Mas não só os poetas eruditos têm tomado a olaria como tema de composições. Também ao longo dos anos, os nossos poetas populares têm feito quadras e décimas que integram o valioso cancioneiro popular alentejano.

Uma tragédia cultural
Estremoz chegou a ter dezenas de oleiros. Na década de 60 do séc. XX apenas restavam duas oficinas: - A Olaria Alfacinha fundada em 1868 por Caetano Augusto da Conceição e que esteve na posse da família até 1987, ano em que é vendida, sendo extinta definitivamente em 1995; - A OLARIA REGIONAL, de fundação mais recente, foi propriedade de José Ourelo, que a transmitiu a Mário Lagartinho, o último oleiro de Estremoz, que morreu recentemente sem deixar continuadores, o que constituiu uma tragédia cultural, numa cidade que já foi um dos maiores centros oleiros do Alto Alentejo.

Não à extinção da olaria!
Quase sempre a transmissão de saberes oleiros foram transmitidos de pais para filhos e aprendizes. A interrupção desta cadeia é sempre uma tragédia e a olaria estremocense corre o risco de extinção. A preservação da nossa memória colectiva e dos saberes tradicionais exige da parte da comunidade local, um esforço para que tal não aconteça. Não basta a nossa olaria estar musealizada. É preciso que esteja viva.
Está em curso uma Candidatura do Figurado de Estremoz a Património Cultural da Humanidade, na qual a comunidade local se revê e que tudo indica sairá vencedora. Não faz sentido que paralelamente se deixe extinguir a olaria local, a outra componente da nossa barrística. Temos que dar as mãos e unirmo-nos, para que tal não aconteça.

Que fazer?
Vou sugerir uma estratégia, que eventualmente pode não ser única, mas que me parece ser viável:
1 – Fomento do gosto pela olaria nas escolas, tanto do ensino preparatório como do ensino secundário;
2 – Criação em Estremoz pelo IEFP de um curso de olaria;
3 – Acolhimento desse curso, sem encargos para ninguém, por parte da Escola Secundária da Rainha Santa Isabel;
4 – Apoio material pelo IEFP aos formandos desempregados ou à procura do primeiro emprego, no sentido de constituição de uma empresa, eventualmente do tipo cooperativo; 
5 - Cedência pelo Município de Estremoz de um local para a empresa funcionar, o qual poderia ser o de uma antiga olaria, a ser adquirida pelo Município;
6 - Cedência pelo Município de Estremoz de um espaço no Rossio Marquês de Pombal para instalar um stand para comercialização de peças;
7 – Apoio do Município de Estremoz no marketing da olaria.
O desafio está lançado. Quem dá o pontapé de saída?

POLIDEIRA DE ESTREMOZ – Fotografia obtida nos anos 40 do séc. XX, pelo fotógrafo
Artur Pastor (1922-1999), natural de Alter do Chão.

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

59 - O aguadeiro – 9


Aguadeiro (2016).
Ricardo Fonseca (1986-  ).
Colecção particular.
Figurado de Estremoz – 4
O aguadeiro de Ricardo Fonseca (2016) é um conjunto constituído por uma figura antropomórfica masculina (o aguadeiro) e uma figura zoomórfica (o burro).
Representa um aguadeiro da cidade, trajando ao jeito de meados do séc. XX, que nas mãos segura as rédeas para a condução da cavalgadura, representadas por fio castanho-claro. Na cabeça, dois pontos negros interpretam os olhos, encimados por dois traços castanhos de espessura diferente, que figuram as pestanas e as sobrancelhas. No nariz em relevo, estão caracterizadas as narinas. Na boca, os lábios avermelhados igualmente em relevo. O cabelo é castanho-escuro, penteado em relação ao observador, com risca do lado direito e melena que aponta para o lado esquerdo, com patilhas laterais e apresenta também volumetria, tal como as orelhas que estão a descoberto. Em cada uma das faces é visível uma roseta alaranjada. Na cabeça, um chapéu aguadeiro negro e sem fita. A figura enverga calças em relevo, de cor castanha e camisa de manga comprida, com colarinho e punhos, de fundo creme, axadrezada a preto e a castanho, com abertura frontal, sem quaisquer botões visíveis. Por cima da camisa, um colete igualmente em relevo, cinzento atrás e azul à frente, ostentando aqui dois bolsos de relógio apresentados por riscos incisos e uma abotoadura revelada por um alinhamento vertical de cinco cavidades circulares. Os botins são pretos.
Atrás do homem encontra-se um burro de cor acastanhada e cascos castanhos-escuros e em relevo, que estando a marchar para o lado direito do observador, apresenta a cauda negra e comprida, com linhas incisas, viradas para o mesmo lado. O pescoço do animal ostenta crina negra com linhas incisas. Na cabeça, são visíveis duas orelhas, dois olhos pintados, um sulco que aparenta a boca e duas cavidades circulares, num tom de cor diferente, fazendo as vezes de narinas. A cabeça e o focinho da cavalgadura estão cingidos por uma cabeçada em relevo, de cor castanho-escuro. Da cabeçada parte lateralmente fio castanho-claro, simbolizando as rédeas para a condução do jumento, que o homem agarra com qualquer das mãos. No cachaço do animal está assente uma manta em relevo e com riscas em vários tons de castanho. A ela está sobreposto um molim, também em relevo e listado em castanho, azul, amarelo e verde. O molim apresenta sete borlas esféricas, cor de zarcão. O asno está atrelado a uma carro de tracção animal, com dois varais e duas rodas de seis raios, imitando madeira pintada de vermelho. A orla exterior das rodas está pintada de cinzento-escuro, a simular aros de ferro. O estrado do carro é baixo e encontra-se dividido em doze receptáculos de forma quadrada, para transporte de igual número de cântaros de barro, com tampa igualmente de barro e que terminam por uma saliência de forma semiesférica, visando facilitar o seu manuseamento.
O conjunto assenta numa base rectangular de cor verde bandeira, pintada lateralmente a castanho avermelhado.
À semelhança do que já tinha afirmado relativamente ao aguadeiro de Jorge da Conceição (2014), estamos novamente em presença de uma figura de manufactura mais difícil e morosa que o aguadeiro do núcleo base do figurado de Estremoz. Ricardo Fonseca é perfeccionista, o que o leva a dedicar-se aos pormenores, não só na manufactura das figuras, como na sua pintura. Catapulta assim o figurado de Estremoz a um patamar mais elevado, que aqui se assinala e elogia, já que ocorreu aqui uma nova mudança de paradigma.
Hernâni Matos

domingo, 6 de novembro de 2016

Manifesto anti-gralha


Cerca de 1450, Johannes Gutenberg (1400-1468) inventor da Imprensa, examina
uma página impressa. Ilustração do séc. XIX. Com a composição tipográfica e a
 impressão, nasceria a gralha.

A gralha continua a ser aquela ave atrevida que pousa no texto, sem pedir autorização ao seu autor. Daí que eu tenha composto o seguinte:

Manifesto anti-gralha

Quem trabalha
o seu texto,
como em talha,
o arabesco,

sem falha,
quer primor
e batalha
pelo seu amor.

Mas vem a gralha
e sem pretexto,
feita canalha,
deturpa o texto.

Extirpar a gralha
é o contexto
de quem batalha
para elevar o texto.

O Manifesto chegou ao fim.
Morra a gralha! Morra! Pim!

PÓS-TEXTO: No número anterior do jornal E, na entrevista “ANTÓNIO GUTERRES VISTO POR COELHO RIBEIRO”, deveria ter aparecido “O despertar de Coelho Ribeiro” em vez do subtítulo “O despertador de Coelho Ribeiro”, que o entrevistador não subscreve, uma vez que não se reconhece em títulos sensacionalistas. Aqui fica pois, a correcção que se impunha. De resto, o leitor mais atento, decerto terá percebido, que o importante ali é ter acontecido “O despertar de Coelho Ribeiro” para a intervenção cívica e política e não as forças policiais ao serviço do Fascismo, já que embora a acção destas forças tenha funcionado como “O despertador de Coelho Ribeiro”, o que se pretende exaltar é o “O Despertar de Coelho Ribeiro” para a intervenção cívica e política, a qual até poderia ter ocorrido de outra maneira.

Hernâni Matos

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Estremoz – Rota dos Museus


MUSEU MUNICIPAL DE ESTREMOZ (Fotografia da Wikia do Museu)

“Quando chega o domingo, / faço tenção de todas as coisas mais belas / que um homem pode fazer na vida.” Assim começa o “Poema de Domingo” do neo-realista Manuel da Fonseca. Daí que no passado dia 23 de Outubro, dia de São João de Capistrano, eu e a minha companheira, tenhamos resolvido levar à prática a máxima do Turismo de Portugal, que recomenda fazer turismo cá dentro. Enfarpelados com os nossos fatos de ver a Deus, resolvemos ir almoçar fora e visitar os nossos museus. Foi uma aposta num dia diferente, independentemente do que viesse a ser o balanço final da opção tomada, já que como nos diz o pedagogo-poeta Sebastião da Gama: “Pelo sonho é que vamos, / Comovidos e mudos. / Chegamos? Não chegamos? / Haja ou não frutos, / Pelo Sonho é que vamos.”. Trata-se de um excerto do seu poema “Pelo sonho é que vamos”, que de acordo com J. R. Ribeiro, se assumiu como “…a metáfora da esperança, da coragem e da vontade de correr riscos…”.

Alecrim, alecrim aos molhos
A gastronomia alentejana é património culinário legado pelos nossos ancestrais. É património para mastigar, para saborear e para lamber os beiços, a comer e a chorar por mais, já que barriga vazia não conhece alegrias. Daí que seja de importância primordial a escolha do local onde se quer honrar simultaneamente Héstia e Baco. Para tal, escolhemos o restaurante Alecrim. Lá diz o rifão: “Quem pelo alecrim passou e um raminho não apanhou, do seu amor não se lembrou”. É que para os romanos esta planta aromática simbolizava o amor, para além da utilização plural que ainda hoje tem: culinária, medicina, perfumaria, religião e religiosidade popular. Daí que o nome de baptismo do restaurante seja merecedor dos meus encómios. O mesmo posso dizer do ambiente, do cardápio, da carta de vinhos, da confecção e do padrão de atendimento, os quais são excelentes e nos cativam para voltar. O périplo turístico a que nos propusemos, não poderia ter começado melhor.

Museu Municipal de Estremoz
Visitar um Museu é um acto de cidadania, já que ali e para nosso deleite, é possível educar o espírito na observação dos testemunhos materiais do homem e de aquilo que o circunda. Daí que seja imperativo conhecer e aprofundar o conhecimento que temos sobre os nossos museus.
Na rota a que nos apresentáramos, a primeira visita foi ao Museu Municipal de Estremoz, actualmente Centro UNESCO para a Valorização e Salvaguarda do Boneco de Estremoz. Aqui o seu director Hugo Guerreiro tem desenvolvido um trabalho notável, sendo ele o mentor da Candidatura do Figurado de Barro de Estremoz a Património Cultural Imaterial da Humanidade.
Pese embora as conhecidas dificuldades de acesso para pessoas com mobilidade reduzida, é um templo de Cultura Popular que há muito despertou o meu culto, já que os bonecos de Estremoz me estão na massa do sangue. Ali vou com frequência para observação dos mesmos, visando a recolha de elementos para a elaboração de estudos que desde 2014 têm sido publicados numa secção mantida em permanência no jornal “Brados do Alentejo”. É a minha forma de proclamar que subscrevo com alma e coração, a Candidatura dos Bonecos de Estremoz a Património Cultural Imaterial da Humanidade. Visitar o Museu Municipal é gratificante, uma vez que saio de lá sempre revigorado e com a alma cheia.

Galeria Municipal D. Dinis
Para aqui nos dirigimos para visitar "DA MEMÓRIA", exposição de artesanato de Manuel Serrano, patente ao público até 13 de Novembro deste ano. A Galeria equiparada a Museu, está fechada às segundas-feiras, que é o dia de descanso semanal dos museus. Surpreendentemente estava fechada também ao domingo. Algo frustrados, continuámos a rumo traçado.

Palácio dos Marqueses de Praia e Monforte
Chegado aqui e por ter a mobilidade reduzida, procurei utilizar o elevador para subir ao 1º andar, o que não foi possível, uma vez que a porta de acesso ao mesmo se encontrava fechada à chave. Viria a ser informado posteriormente que se tratava de uma questão de segurança, uma vez que ali se encontra armazenado o espólio do desactivado Museu Rural de Estremoz. A solução foi subir a pé dois lances de escada. Mereceu a pena o esforço, já que está ali patente ao público até ao próximo dia 27 de Novembro, a exposição “BRINQUEDO PORTUGUÊS", do coleccionador Hélder Máximo Martins. Trata-se de uma viagem aos tempos da nossa infância, a revisão dos brinquedos com os quais construímos a nossa personalidade, que muitas vezes exigiam actividade física e com os quais exercitávamos a nossa imaginação criadora, praticávamos o exercício da liberdade, desenvolvíamos a nossa socialização e reforçávamos o espírito colectivo. A exposição permite ainda despertar consciências de pais e educadores para os riscos sociais representados pelas consolas, os jogos de vídeo, de computador e de telemóvel. Uma exposição que se recomenda.

Núcleo Museológico da Alfaia Agrícola
O fascínio da ruralidade levou-nos a dirigir para ali, visando uma revisitação das memórias dos ciclos de produção da faina agro-pastoril (pastorícia, trigo, azeitona, cortiça, vinha, etc.), através dos utensílios utilizados pelo Homem e dos aprestos usados pelos animais. Não fomos bem sucedidos, uma vez que à semelhança da Galeria Municipal D. Diniz, o Núcleo Museológico se encontrava igualmente encerrado.

Algo vai mal no reino da Dinamarca
O propósito inicial de fazer turismo cá dentro foi globalmente positivo, ainda que não tenha sido integralmente cumprido. Todavia, isso para nós não constituiu problema, uma vez que temos disponibilidade para efectuar as visitas noutro dia qualquer. Lá diz o adágio: “O que não se faz no dia de Santa Maria, faz-se noutro dia”. Contudo, o problema existe e é pertinente para forasteiros, nacionais e estrangeiros. Ficam com a má imagem de espaços exposicionais que deveriam estar abertos ao público e se encontram fechados ao domingo, num fim-de-semana, que é quando as famílias têm disponibilidade para estar juntas e viajarem. Não sei se este encerramento é fruto de falta de pessoal ou de baixas por doença. O que sei dizer é que acho estranho. Sou levado a parafrasear o provérbio "Vinho e linho não têm domingo”, dizendo que “Museus não têm domingo” e à semelhança de Hamlet na peça homónima de William Shakespeare, sou levado a proclamar que: “Algo vai mal no reino da Dinamarca”.

Hernâni Matos

PRIMAVERA - séc. XIX (Museu Municipal de Estremoz)
PALÁCIO DOS MARQUESES DE PRAIA E MONFORTE (Fotografia de Jorge Mourinha)
BRINQUEDO POPULAR (Colecção particular)

terça-feira, 25 de outubro de 2016

58 - O aguadeiro - 8


Aguadeiro (2014).
Jorge da Conceição (1963-  ).
Colecção particular.
Figurado de Estremoz – 3
Vimos que o núcleo base do figurado de Estremoz inclui um exemplar conhecido por “Aguadeiro”, conjunto constituído por uma figura antropomórfica masculina (o aguadeiro) e uma figura zoomórfica (o burro). Trata-se de uma peça produzida pelos sucessivos barristas, utilizando as suas próprias marcas de identidade, mas sem fugir aos traços gerais do modelo original. Todavia, nem todos assim procederam, quando ao modo de Estremoz, manufacturaram figuras, que duma forma insofismável, continuam a traduzir a identidade cultural regional e local, observável em tempos ainda não muito recuados.
O aguadeiro de Jorge da Conceição (2014) é um conjunto constituído por uma figura antropomórfica masculina (o aguadeiro), um carrinho de mão para transporte de cântaros e a fonte na qual se abastece de água. Representa um aguadeiro rural trajando à maneira de meados do séc. XX, com o braço direito pendente, empunhando um cocho de cortiça para beber água e o braço esquerdo erguido, com a mão segurando um lenço branco com que limpa o suor. Na cabeça, dois pontos negros em fundo branco, representam os olhos, encimados por dois traços castanhos de espessura diferente, que figuram as pestanas e as sobrancelhas. No nariz em relevo, estão representadas as narinas. Na boca, os lábios avermelhados igualmente em relevo. O cabelo é castanho-escuro, penteado para trás, com patilhas laterais e apresenta também volumetria, tal como as orelhas que estão a descoberto. A figura enverga calças em relevo, de cor castanha e camisa ainda em relevo, de cor cinzenta, com as mangas arregaçadas, fechada no peito por três botões brancos de forma semiesférica e é atada à frente, à moda dos eguariços. Os botins são analogamente castanhos, ainda que duma tonalidade diferente das calças.
À frente do homem encontra-se um carrinho de mão, com dois pés e dois braços, de cor castanha, sugerindo madeira. A roda com seis raios, similarmente castanhos, apresenta o aro exterior cinzento-escuro, lembrando ferro. O estrado do carrinho apresenta duas cavidades para transporte de cântaros, orladas com um anel em relevo e de cor cinzento-escuro, alvitrando borracha. No buraco da frente está encaixado um cântaro de tom avermelhado, evocando barro e cujo gargalo se encontra vedado por uma tampa de cor castanho-claro, supostamente de cortiça. O buraco de trás, está parcialmente encoberto por um chapéu aguadeiro preto, de fita igualmente preta.
A fonte, de cor branca, aparentando alvenaria caiada, tem um depósito em forma de urna ornamentada por grinaldas de flores, é encimada por uma vieira e ostenta duas gárgulas antropomórficas, tudo em relevo. Das bocas das gárgulas saem tubos de cor cinzento-escuro, aparentando ferro e dos quais jorra “água” de tom prateado. A urna está emoldurada a azul do Ultramar. Sob a bica da direita encontra-se um cântaro semelhante ao anterior, a recolher água e cuja tampa está assente no bordo da taça, em cor branca de mármore com veios.
O conjunto assenta numa base rectangular de cor verde bandeira, pintada lateralmente num tom castanho-avermelhado.
O exemplar de figurado de Estremoz aqui descrito exige uma confecção mais complexa e morosa do que o espécimen anteriormente descrito. Para além disso e já não é pouco, corresponde em termos de imaginário do seu criador, a uma ruptura com aquilo que vinha sendo feito, elevando assim a nossa barrística a um novo patamar, como já tinha acontecido na criação de outros modelos. É caso para dizer que ocorreu aqui uma mudança de paradigma, a qual se regista e se valoriza.

Hernâni Matos

sábado, 22 de outubro de 2016

ANTÓNIO GUTERRES VISTO POR COELHO RIBEIRO (Entrevista conduzida por Hernâni Matos)

Hernâni Matos (entrevistador) e Coelho Ribeiro (entrevistado).

José Coelho Ribeiro, 82 anos, bancário aposentado e membro do Partido Socialista, foi Presidente da Câmara Municipal do Fundão no mandato 1976-1979 e Presidente da Assembleia Municipal de Estremoz no mandato 1986-1989, cidade em que se fixou em 1980. Natural de Medelim (Idanha-a-Nova), mantém relações de estreita amizade com António Guterres, eleito recentemente Secretário-geral da ONU. Daí a razão da presente entrevista.

O DESPERTAR DE COELHO RIBEIRO
Como e quando, é que o cidadão Coelho Ribeiro despertou para a intervenção cívica e política?
A questão que me coloca leva-me a recuar até ao ano de 1954. Se me permite e para responder à sua pergunta, vejo-me obrigado a invocar esta data, tendo em conta a gravidade dos acontecimentos em que me vi envolvido. Foi, sem dúvida, o marco que gerou a minha repulsa à ditadura de Salazar e de Caetano. No mês de Junho desse ano, estando em Lisboa, caminhava para o café Martinho, para me encontrar com conterrâneos. Ao aproximar-me do Teatro Dona Maria II, ouvi  nas proximidades do Coliseu dos Recreios, uma gritaria cujo teor não consegui perceber. Curioso como os demais, interrompi o meu caminho, para perceber o que se estava a passar. Ao aproximar-se o pequeno grupo de manifestantes, ouviram-se com clareza, palavras de ordem contra a ditadura, exigindo a liberdade de todos os povos das colónias portuguesas (É que na Índia Portuguesa, tinha ocorrido a penetração de Satiagrais, que entravam com uma conduta pacífica, mas pretendiam uma progressiva ocupação do território). Foi então  que surgiu a GNR a cavalo, agredindo à  bastonada todos os que se atravessavam no seu caminho. Tentando fugir, subi a Rua Nova do Almada e junto dos Armazéns do Chiado fui interceptado por uma brigada da PSP, que me obrigou a parar e me levou debaixo de prisão para o Governo Civil. Na sequência desta ocorrência, associei-me aos opositores da ditadura.  
Quando, como e porquê, ingressou no PS?
Foi em Junho de 1974, que pelo motivo apontado e a convite de um médico e amigo fundanense, me filiei no Partido Socialista. 
Como é que o bancário Coelho Ribeiro se transformou em Presidente da Câmara Municipal do Fundão?
Em 1976, no decurso do processo eleitoral para as primeiras eleições autárquicas, ocorreu na sede do PS do Fundão um intenso debate, com vista à indigitação do candidato à Presidência da Câmara Municipal do concelho. Nesta discussão encontrava-se presente o meu amigo António Guterres. Numa dessas reuniões, alguém fez surgir o nome de um militante que viria a ser rejeitado. Foi então que outra pessoa indicou o meu nome, tendo eu declinado o convite. Perante tal impasse, apareceu mais tarde o camarada Mário Soares, que me convenceu a aceitar a indigitação, argumentando que com a eleição não sairia do Fundão, ao contrário do que teria acontecido se tivesse aceite ser candidato a Deputado nas eleições para a Assembleia Constituinte e para a 1ª Assembleia Legislativa. Foi assim que vim a ser eleito Presidente da Câmara Municipal do Fundão.

A AMIZADE COM ANTÓNIO GUTERRES
Quando é que conheceu António Guterres?
Como já referi anteriormente, conheci o António Guterres em 1976,  no decurso do processo eleitoral para as primeiras eleições autárquicas.
Qual a natureza da sua amizade com António Guterres?
A natureza da nossa amizade foi e é essencialmente política. 
Como é que caracteriza o amigo António Guterres como pessoa e como político?
Não resisto à tentação de referir nesta entrevista uma ida com o meu camarada ao Seminário do Fundão, em Novembro de 1979, no decurso da campanha eleitoral para as eleições legislativas desse mesmo ano. Tendo em conta que a Igreja Católica sempre atacara o Partido Socialista, interroguei-o acerca do que iríamos discutir com o Reitor do Seminário. Disse-me para ter calma e assim fiz. Fomos admiravelmente recebidos pelo Reitor. Durante a conversa, estive quase sempre calado, a escutar o diálogo entre eles, até que o Reitor me solicitou que facultasse a máquina de rasto da Câmara, com vista ao alargamento do campo de futebol do Seminário, ao que eu acedi. Já fora das instalações, perguntei ao António, o que é que ele pensava beneficiar com aquela reunião. Respondeu-me que se dali se conseguisse amortecer os ataques da Igreja Católica local ao Partido, já seria um grande benefício. E assim foi, já que nessas eleições, ela não atacou o PS. Desta passagem das nossas vidas, entre muitas outras, consegui perceber que estava em presença de um homem com qualidades humanas e políticas excepcionais. A sua vitória nas eleições para Secretário-geral da ONU, constitui o melhor testemunho das suas extraordinárias competências como notável cidadão português.

DA BEIRA PARA O ALENTEJO
Depois de terminar em 1979 o seu mandato como Presidente da Câmara Municipal do Fundão, o cidadão Coelho Ribeiro fixou-se em 1980 na cidade de Estremoz, onde assumiu novamente a sua condição de bancário. A mudança de localidade foi uma mera questão profissional ou traduziu algum desencanto com o Fundão ou mesmo ruptura com o PS local?
Em 1980, por motivo da minha actividade profissional, fixei residência na cidade de Estremoz, decidido a acabar com a minha actividade política e autárquica. Todavia, no ano de 1982, o José Costa e o João Matos bateram-me à porta para me convidarem a participar numa reunião na sede local do Partido Socialista. Foi aqui, que começou o princípio do meu envolvimento nas eleições autárquicas de Estremoz, vindo a ser Presidente da Assembleia Municipal. Estes dois militantes do meu Partido, tornaram-se os meus maiores amigos nesta cidade.
Em 1986, dando a impressão de que acabou de efectuar a sua travessia no deserto, integrou com êxito a lista vencedora à Assembleia Municipal de Estremoz. Como é que o cidadão Coelho Ribeiro aparece novamente activo como autarca socialista?
Por influência dos camaradas anteriormente referidos, José Costa e João Matos.

GUTERRES VISTO POR COELHO RIBEIRO
Na sua vida política, António Guterres foi Deputado à Assembleia da República, Presidente da Assembleia Municipal do Fundão, Secretário-geral do PS, Primeiro Ministro de Portugal, Presidente da Internacional Socialista e Alto Comissário da ONU para os Refugiados. Como é que o cidadão Coelho Ribeiro encara o desempenho de todos estes cargos pelo seu amigo António Guterres?
Desempenhou com grande êxito todos os cargos para que foi designado, exercendo as suas funções de uma forma altamente competente.
Quais as expectativas que tem como corolário da eleição de António Guterres para Secretário-geral da ONU?       
Como aconteceu em todos os cargos anteriormente desempenhados, prevejo um imenso sucesso nas suas novas e futuras funções, já que as suas capacidades são enormes.
Quer enviar daqui uma mensagem ao amigo António Guterres?             
Envio-lhe daqui um fraternal abraço e reitero-lhe o meu incondicional apoio.

Encontro do PS na Covilhã, nos finais da década de 70. Da esquerda para a direita:
Coelho Ribeiro e esposa, Francisco Carlos Ferreira (Deputado do PS à Constituinte
pelo Círculo de Castelo Branco) e António Guterres. O braço que se vê à direita,
é de Mário Soares.

Hernâni Matos