sexta-feira, 12 de agosto de 2011

Cancioneiro popular da água


Camponesa do Redondo. Bilhete-postal ilustrado, edição do Museu de Ovar, reproduzindo aguarela de Alfredo Moraes (1872- 1971).

PREÂMBULO

A importância da água é incomensurável, já que é utilizada como simples bebida ou com fins medicinais, na preparação e confecção de alimentos, no banho, na lavagem de roupa e de loiça, na rega, etc. Daí que seja natural que no cancioneiro popular alentejano, existam múltiplos registos que referem a água. Seleccionámos, sistematizámos e estudámos algumas dessas referências, fruto da nossa pesquisa em quatro fontes bibliográficas distintas, cujos autores, cada um na sua época, as recolheu da tradição oral. Sistematizámo-las em quatro grupos distintos:

1 – Mitologia no Cancioneiro Popular
2 – A obtenção da água
3 – O vasilhame de água
4 – Matar a sede

Passemos, de seguida, em revista, estes grupos:

MITOLOGIA NO CANCIONEIRO POPULAR

Faz parte da Mitologia Popular Portuguesa, a crença de que no princípio do mundo, a água foi condenada a correr sempre [2]. Daí que o cancioneiro popular alentejano constate que a água corra sempre, naturalmente, para baixo:

“A agua p’ra baixo corre,
P’ra cima não faz corrente;
Meu amor, se estás zangado,
Eu também não ‘stou contente.” [3]

Por isso e em contrapartida, para cima, a água só segue forçada:

“Água de ladeira acima,
Sem a levarem não vai.
Se queres qu´ê seje tua,
Vai-me pedir ò mé pai.” [1] (Vale de Santiago – Odemira)

A chuva faz correr água nos barranquinhos e revitaliza a natureza:

“Graça a Deus que já chove,
Já correm nos barranquinhos,
Já os campos ‘stão alegres,
Já cantam nos passarinhos.” [1] (Beja)

A água que corre na ribeira tem peixes:

“O barranco leva água.
Há peixinhos na ribeira.
Nesse teu peito amoroso,
Amizade verdadeira.” [1] (Montes Velhos - Aljustrel)

É frequente, o desejo de que a água fique retida:

“Agua, sustem-te nos valles,
Não sejas tão corredia;
Ja não há amor’s leaes,
Como n’outro tempo havia.” [3]

Integra igualmente a Mitologia Popular Portuguesa, a crença de que, no princípio do mundo, a água também tinha fala [2] e comunicava com quem junto a ela manifestava as suas emoções:

“Puz-me a chorar saudades
A’beira d’agua que corre,
A agua me respondeu:
Quem tem canceiras não dorme.” [3]

A própria água podia falar até dos seus progenitores:

“A minha mãe é ribeira,
O meu pae é rio corrente,
Sou filha das aguas claras,
Não tenho nenhum parente.” [3]

Pertence também ao domínio da Mitologia popular portuguesa, a convicção de que a água dorme todas as noites [2].

“Dormes ao pé da ribeira,
Hás-de-me saber dizer
Quantas horas dorme a água
Antes da manhã romper.” [1] (Mértola)

Daí que também alguém responda:

“Contas horas drome a água,
Isso nã’ le sê dezer:
Qu’é drumo à bêra do rio,
Toda a noite oiço correr.” [1] (Odemira)

Daí que alguém pergunte:

“Menina, que sabe tanto,
Há-de-me saber dizer:
Contas horas drome a água
Entes da manhã romper?” [1] (Mértola)

A OBTENÇÃO DA ÁGUA

É considerado uma ventura, morar próximo de água:

“É um regalo na vida,
Ao pé da água morar,
Quem tem sêde vai beber,
Quem tem calor vai nadar.” [3]

Por vezes, bebia-se água do pego:

“Tinha sêde e fui beber
Lá no pêgo de Vianna;
Val’ mais uma hora d’amor,
Que o ganho d’uma semana.” [3]

Bebia-se muita água do poço, o qual era um local de encontros amorosos:

“Quanto mais fundo é o pôço,
Mais fresca n’el’ são as aguas
Quanto mais falo contigo,
Mais gosto das t’as palavras.” [3]

Alguns conseguiam escapar às tentações de amor junto ao poço:

“Adeus, poço do terraço,
Onde eu mato a minha sede,
Armaram-me lá um laço
Mas eu não cahi na rede.” [3]

O poço podia ser um local de infidelidade amorosa:

“Vi-te ao poço mai-la outra,
enquanto eu ceifava o trigo;
ai quem pudesse ceifar
a dor que trago comigo.” [4]

Havia quem admitisse por saudade, arrojar-se ao poço:

“Hei-de-me deitar ao poço,
Fazer de mim caldeirão.
As saudades são tantas,
Que elas por mim puxarão.” [1] (Beja)

Havia poços que tinham um engenho para tirar água, a nora:

“Como alcatruzes de nora
São as vaidades do mundo,
Os que enchem vão a cima,
Os que vasam vão ao fundo.”  [3]

As fontes à beira dos caminhos sempre foram muito apreciadas pelos viajantes:

“Benditas sejam as fontes
À beirinha dos caminhos,
Onde vão matar a sede
Os alegres passarinhos.” [1] (Amareleja)

Poder beber água de todas as fontes era motivo de inveja:

“Nã’ m’enleva de quem tem
Carros, parelhas e “montes”;
Só m’enleva de quem bebe
Água de todas as fontes.” [1] (Beja)

Nenhuma fonte se podia menosprezar:

“Ninguém diga eu não hei-de
Desta fonte água beber;
Pode a sede apertar muito,
E outro remédio não ter.” [1] (Vale de Santiago – Odemira)

A fonte era um local de encontro, onde se bebia sem ter sede:

“Fui à fonte beber agua,
Por baixo da canna verde,
E só p’ra vêr os teus olhos
Bebi agua sem ter sede.” [3]

“Fui beber a uma fonte
Debaixo da fresca murta,
Fui só para ver os teus olhos,
Que a sede não era muita.” [1] (Mina da Juliana – Aljustrel)

A fonte era, algumas vezes, um local de encontros imprevistos:

“Fui à fonte beber agua,
Julgando que não te via.
Mas fiquei tão distrahida,
Que nem a água bebia.” [3]

A fonte era ainda um local de namoro:

“Andam na eira os rapazes
O seu trigo a debulhar,
E à noite vão para a fonte,
As moças a namorar.” [3]

A fonte era também um local de brincadeiras:

“Menina, se for á fonte,
Não brinque lá com ninguém,
‘Stá a louça muito cara
Cada cântaro um vintem.” [3]

O caminho da fonte era um caminho muito percorrido:

“Adeus praça, adeus castelo,
Adeus caminho da fonte:
Por causa das raparigas
Muito calçado se rompe.” [2] (Alandroal)

Na fonte achavam-se, por vezes, objectos perdidos:

“Fui à fonte beber água,
Achi um lencinho verde.
Quem no perdeu, tinha amores,
Quem no achou, tinha sede.” [1] (Beja)

Os desentendimentos amorosos, levavam a mudar de fonte:

“Algum dia em tendo sede,
Ia beber ao teu “monte”;
Agora estou mal contigo,
Vou beber a outra fonte.” [1] (Beja)

A água muitas vezes corria da fonte para um chafariz e daqui para um lavadouro:

“Deixa lá falar, quem fala,
Deixa lá dizer quem diz,
Deixa lá correr as aguas,
Da fonte p’r’o chafariz.” [3]

Por vezes também se consumia água da chuva, guardada em cisternas:

“O regalo do soldado
É ter a cama no chão,
Beber agua da cisterna,
Comer pão de munição.” [3]

A água é um bem finito, que deve ser conservado:

“Quem quer boêr não turva a água,
Quelara a quer conservar,
Que assim faz o homem serio
Quando pretende casar.” [3]

O VASILHAME DA ÁGUA

As bilhas de barro eram conhecidas por tornar a água mais saborosa:

“Aquela bilha de barro
comprada em Vla Viçosa
p’ra matar sede de amor,
faz a água mais gostosa.” [4]

As bilhas tinham como único inconveniente, o serem frágeis:

“Caiu-me a bilha no monte.
lá deixou ficar a asa…
Culpa tem quem fez a fonte
tão longe da minha casa.” [4]

Dava-se água pelo púcaro, o que não era privilégio de todos:

“Senhora, que a todos daes
Agua por púcaro novo,
Só a mim é que deixaes
Desconsolado de todo.” [3]

Havia quem implorasse água do púcaro:

“M’nina que estás à janella,
Co’ pucarinho na mão,
Dá-lhe volta, se tem agua
Réga-me este coração.” [3]

Em casa, além do púcaro, usava-se também o copo:

“Em cima daquela mesa
Está um copo d’água fria
Onde se baptizou a Cristo,
Filho da Virgem Maria.” [1] (Amareleja)

MATAR A SEDE

A sede leva a pedir água:

“Dá-me uma pinguinha d’agua,
Que eu bem na sinto correr,
Onde há silvas e montrastos
Alguma pinga ha de haver.” [3]

“Dá-me uma pinguinha d’agua
Pela tua propria mão,
Que das terras d’onde eu venho
Nem as fontes agua dão.” [3]

Todavia, o pedido pode ser recusado:

“Passei pela tua porta,
Pedi-te agua, não m’a deste;
Nem os moiros na moirama
Fazem, o que tu fizeste.” [3]

“Eu pedi uma pinga d’agua
Á ingrata d’uma prima,
Vinha com ella da fonte,
E disse-me que a não tinha.” [3]

As recordações podem fazer esquecer a sede:

“De tanta sede que tinha
Nenhuma água bebi.
Quando ia para beber
Tive lembranças de ti.” [1] (Beja)

Ver as bicas da fonte, não mata a sede:

“D’aqui onde estou bem vejo
Correr as bicas da fonte;
Ai de mim! que morro à sêde,
Tendo o remedio defronte.” [3]

Os bêbados têm sede, mas de vinho:

“Ó meu amor, vinho, vinho,
Agua não posso beber,
A agua tem sanguessugas,
Tenho medo de morrer.” [3]

Além de matar a sede, a água permite aclarar a voz:

“Dá-me uma gotinha de água
Para lavar a garganta;
Quero cantar como a rola,
Como a rola ninguém canta.” [1] (Beja)

O despeito de amor, pode levar alguém a rogar pragas, nas quais intervém a água:

“Meu amor abandonou-me
Não sei qual fosse a razão,
Ao beber lhe falte a água,
Ao comer lhe falte o pão.” [3]

BIBLIOGRAFIA

[1] – DELGADO, Manuel Joaquim Delgado. Subsídio para o Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo. Vol. I. Instituto Nacional de Investigação Científica. Lisboa, 1980.
[2] - LEITE DE VASCONCELLOS, José. Etnografia Portuguesa, Vol. V. Imprensa Nacional – Casas da Moeda. Lisboa, 1982.
[3] - PIRES, A. Tomaz. Cantos Populares Portuguezes. Vol. I. Typographia Progresso. Elvas, 1902.
[4] - SANTOS, Victor. Cancioneiro Alentejano. Livraria Portugal. Lisboa, 1959.

Hernâni Matos

sábado, 6 de agosto de 2011

Sexta-Feira Santa e rock and roll

Elvis Presley (1935-1973)

Há cinquenta anos atrás, estávamos em 1961. Os rapazes da minha geração tinham quinze anos e estavam quase a ir “tirar as sortes”. Eram nuvens negras no horizonte de cada um, pois em Fevereiro desse ano começara a Guerra em Angola.
A sociedade era bastante conservadora. Vivíamos num regime de partido único e não era permitida a expressão pública de opiniões contra o regime e contra a guerra. A censura e a polícia política controlavam toda a comunicação social, pelo que não nos era dado ouvir ou ver, nada que pusesse em causa o regime ou aquilo que era considerado por eles, os bons costumes.
Ainda não acontecera o Maio de 68 e ainda não déramos pelos Beatles. Não usávamos cabelos compridos, nem barbas crescidas. Tínhamos um ar normal na época. Vestíamos de maneira convencional, conforme as posses de cada um. Alguns já fumavam um cigarrito à escondida dos pais. Íamos ao futebol, ao hóquei e ao cinema. Elvis Presley era o nosso ídolo no celulóide, sempre divertido, a cantar e a tocar guitarra, rodeado de miúdas giras. Como nós o
invejávamos. Alguns de nós, imitavam-no, penteando o cabelo para trás, com brilhantina e a competente popa.
A América era para muitos de nós um sonho de liberdade, já que para bebermos coca-cola, tínhamos que ir a Espanha. Não havia discotecas por aqui e nos bailes as mães ficavam sentadas atrás das filhas. E os filmes do Elvis que nos continuavam a dar a volta à cabeça… Tinha que haver uma saída… E ela aconteceu precisamente numa Sexta-Feira Santa, dia de enterro do Senhor. Um de nós descobrira a pólvora sem fumo:
- Eh rapaziada, os meus pais foram de viagem e eu estou sozinho em casa. Que tal convidarmos umas miúdas para fazer lá uma matiné.
- Eh pá! Bestial! Vamos a isso!
Lá convidámos umas miúdas e dançámos ao som do Elvis, debitado pelo gira-discos do nosso anfitrião. Até foram irmãos e irmãs, tendo decorrido tudo dentro da maior compostura. E ao som do Elvis, lá descarregámos as tensões acumuladas dentro de nós, pela sociedade que nos oprimia. O pior estava para vir. As miúdas apanharam um raspanete de todo o tamanho lá em casa. E pela cidade de Estremoz, correu célere a notícia:
- Vejam lá estes hereges. Com o Senhor morto e o corpo a pedir folia!
- Excomungados é que precisavam!
- Onde é que já se viu, Sexta-Feira Santa e rock and roll?
Cinquenta anos decorridos, reconheço que foi positivo ninguém ter sido excomungado, já que muitos eram católicos praticantes e desse credo nunca se afastaram. Nem mesmo com Sexta-Feira-Santa e rock and roll…

terça-feira, 26 de julho de 2011

Temos carácter. Somos alentejanos!


COSTUMES ALENTEJANOS (1923). Jaime Martins Barata (1899-1970).
Aguarela sobre papel. Museu Grão Vasco (Viseu).      
                                              

À Catarina, minha filha:

Muitos de nós, andamos cansados, pelos mais diversos e respeitáveis motivos. Todavia, a eminência de expulsão dos bofes não é compatível com o verbalismo retórico.
A ameaça de ingresso na zona meã da temperatura a que ferve o ângulo recto, ceifa-nos, quer por baixo, quer por cima. Mas isso, não importa. Somos neo-realistas obstinados, anarco-libertários do rebimba-ó-malho, à prova de combustão, seja ela qual for.
Somos homens e mulheres de sequeiro, que bebemos das raízes que mergulham no barro e no xisto e, quando é necessário, na dureza fria do mármore.
Não abdicamos, nem nos vendemos, nem tão pouco nos rendemos. O nosso lugar, é aqui.
Temos carácter. Somos alentejanos.
Recomendamo-nos!

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Barbeiro sangrador


Barbeiro sangrador. José Moreira (1926-1991).
Colecção Hernãni Matos.


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UMA SINGULAR PEÇA DA BARRÍSTICA POPULAR ESTREMOCENSE
Qualquer das figuras usa casaca de mangas estreitas, justa ao tronco, que desce atrás, protegendo o rabo, mas à frente, abaixo da cintura, deixa o resto do corpo livre, talhe que visava facilitar os movimentos, eventualmente, o porte de espada. A casaca do barbeiro sangrador acha-se completamente abotoada e a sua gola cinge o pescoço. Já no caso do paciente, a casaca está aberta, revelando a utilização de um colete abotoado, usado por cima de uma camisa, enfeitada com uma gravata.
Na cabeça, o barbeiro sangrador usa um tricórnio, ao passo que o paciente usa uma atadura de pano, à laia de turbante. Qualquer deles é portador de farta cabeleira. No caso do barbeiro sangrador, esta pende livre sobre a cabeça, enquanto que no paciente, assume a forma de rolos de cabelo que lhe tapam as orelhas.
O barbeiro sangrador usa calções até ao joelho, assim como meias claras. Já o paciente usa calças, justas ao corpo. Qualquer deles calça sapatos pretos, lisos e tem as vestes enfeitadas por bordados, como era corrente nas classes superiores. Este facto, que poderia ser natural no paciente, correspondia decerto a uma utilização falaciosa por parte do barbeiro sangrador, que por vezes utilizava o traje característico da classe social mais elevada, como forma de assumir ardilosamente, o estatuto de cirurgião, que de facto não era.
Os tecidos bordados usados na época pelas classes mais elevadas eram sedas, brocados e veludos, enquanto que as classes mais baixas, usavam lã e algodão, que eram mais baratos.
O barbeiro sangrador com ar determinado, empunha um instrumento de corte, que mais parece um instrumento de tortura, com o qual parece perfurar as goelas do paciente. Este, com ar aterrorizado, já verteu sangue que macula a toalha que o barbeiro sangrador detém por sobre os braços.
O conjunto tem 21 cm de altura e a base mede 16,5 x 9 cm.

O OFÍCIO DE BARBEIRO SANGRADOR 
Até finais do século XVIII, os médicos portugueses, guiados pelos desígnios da medicina antiga, emitiam diagnósticos e receitavam mezinhas, convictos que cada pessoa era fruto da combinação de porções variáveis de fogo, terra, água e ar (6). Defendiam também que a combinação destes quatro elementos no organismo, dava origem a quatro humores diferentes: o sangue (produzido pelo fígado), a bílis amarela (produzida pelo fígado), a fleuma (produzida pelo cérebro) e a atrabílis ou bílis negra (produzida pelo baço). Tal como as suas qualidades originais (o quente, o frio, o seco e o húmido), esses fluidos estavam submetidos a forças internas ou externas capazes de alterá-los (os pneumas). A origem das doenças era consequência do acumular desses líquidos orgânicos numa dada região do corpo. Todavia, defendiam, que o organismo era portador de uma força restabelecedora que lhe era intrínseca, pelo que o próprio corpo procurava descartar-se naturalmente dos efeitos nocivos de qualquer desordem humoral, recorrendo às secreções. Deste modo, a fleuma (fria, húmida e transparente), era expulsa pelo nariz, nos resfriados; a bílis (amarela, quente e seca), era excretada pelo vómito, nas perturbações digestivas; a atrabílis (escura, fria e seca) era expulsa com as fezes, nas afecções intestinais, enquanto que o sangue (vermelho, quente e húmido), se libertava das feridas e acompanhava a expectoração das doenças pulmonares. Por outras palavras, a saúde era o resultado de uma combinação humoral harmoniosa e a doença era consequência de uma ruptura nesta estabilidade natural. Daí que o tratamento de qualquer doença, visasse neutralizar a acção dos humores putrefactos. Para tal, eram prescritos regimes alimentares e medicamentos com qualidades antagónicas às substâncias nocivas que dominavam o organismo, assim como a sangria, que permitia escoar os humores perniciosos que circulavam na área afectada. Práticas como a sangria e a aplicação de sanguessugas, era correntes nessa época. Eram tarefa executadas por barbeiros, cumulativamente com o corte de cabelo, a feitura de barbas e a extracção de dentes, dada a sua grande habilidade manual.
Em Lisboa, a partir de 1572, por regulamento outorgado pelo Senado Municipal (3), o desempenho das funções de “barbeiro sangrador” oficial, actuando por conta própria, exigia experiência comprovada de dois anos de actividade, o que permitia vir a receber a carta de examinação do cirurgião-mor. Alguns barbeiros podiam até realizar cirurgias, eram os “cirurgiões barbeiros”. A aprendizagem do ofício processava-se por conhecimento oral e empírico, adquirido nas tendas de mestres barbeiros. O ofício estava subordinado às regras da Confraria de São Jorge e aos regulamentos da Câmara Municipal de Lisboa.
Manoel Leitam (2), cirurgião do Hospital Real de Todos os Santos, em Lisboa, era um defensor da hierarquia entre os saberes de médicos, cirurgiões e barbeiros. Aos primeiros competia a prescrição e aos últimos, a execução. Os barbeiros sangradores nunca deveriam sangrar sem ordem dos médicos, pois corriam o risco de provocar danos irreparáveis.
Manoel Leitam advogava a sangria derivativa, realizada através de corte no local mais próximo da inflamação, para evitar que o humor doentio se espalhasse pelo corpo, caso a incisão fosse efectuada longe da região afectada, como faziam os partidários da sangria volumosa.
As funções de uma sangria eram múltiplas:
- Evacuação: expulsão dos humores nocivos que agiam sobre determinado ponto do corpo;
- Diversão: enganar o fluxo sanguíneo e desviá-lo para o lado oposto, banindo derrames na parte lesada;
- Atracção: levar o humor a uma parte específica, provocando a menstruação, por exemplo;
- Alteração: modificação da qualidade do humor maligno preponderante;
- Preservação: conservação dos humores sãos, acautelando uma moléstia;
- Aliviação: minorar dores ou abaixar a temperatura do corpo, no caso de febres;
O desempenho do mester de barbeiro sangrador exigia determinado perfil: ser jovem para não lhe tremerem as mãos e ter boa vista. Ter experiência para saber distinguir uma veia de uma artéria, conhecendo quantas veias existiam no corpo humano, o seu nome, distribuição e quais eram sangráveis. Devia, de resto, estar bem provido de lancetas.
Para Manoel Leitam, a sangria exigia o conhecimento do confuso mapa do sistema venoso. Segundo ele, era possível sangrar 42 veias. Dezoito na cabeça, doze nos braços e doze nos pés. Para combater catarros e doenças da cabeça, sangrava-se atrás das orelhas. Na testa para curar oftalmias. No canto dos olhos para curar enfermidades na face, vermelhidão na vista ou cataratas. Debaixo da língua para livrar o paciente de dores de garganta. Sangrava-se também, dentro e fora do nariz e nos lábios, bem como nos braços, mãos, pernas e pés. Apenas as axilas eram poupadas. A sangria era usada como anestésico, anti-inflamatório, anti-febril e abortivo. Através dela se combatia também, cefaleias, tumores e hemorragias.
Manuel Leitam advogava a sangria derivativa, realizada através de corte no local mais próximo da inflamação, para evitar que o humor doentio se espalhasse pelo corpo, caso a incisão fosse efectuada longe da região afectada, como faziam os partidários da sangria volumosa.
A sangria era executada com o paciente deitado. Os instrumentos utilizados no corte variavam de acordo com o local a sangrar. Para uma remoção profunda eram usadas a lanceta e as sanguessugas. Já para humores superficiais, utilizava-se um recipiente de vidro, conhecido por ventosa e de tamanho variável. Recorria-se ainda a uma bacia para recolher o sangue e a pós restritivos para estancar este após o corte.
Para ser sangrado, o paciente era despojado de qualquer tipo de jóias, por se considerar que elas imobilizavam o sangue.
Antes da sangria, os pacientes eram marcados com pontos vermelhos nos locais a ser sangrados. Seguidamente, acima do local da sangria, era atada uma ligadura para que a veia inchasse e o sangrador tivesse melhor tacto e visão da mesma. A veia era depois massajada com os dedos e só então o barbeiro fazia um golpe rápido, não muito profundo, para ser indolor e não atingir nenhum nervo ou tendão, o que afectaria os movimentos do paciente. Também não poderia ser atingida nenhuma artéria, já que o fluxo sanguíneo poderia ser impossível de controlar, o que originaria a morte do paciente.
Uma vez retirada a quantidade de sangue aconselhada, o golpe era estancado com uma compressa de pano e esta envolvida com uma ligadura para a suster.
Quando o paciente não suportava mais cortes, eram-lhe aplicadas sanguessugas, que previamente tinham permanecido em água limpa durante um dia, para que expulsassem todas as excreções e melhor sugassem o sangue. As sanguessugas eram, de resto, indicadas para sangrar o nariz, os lábios, as gengivas e as veias do ânus. Para estimular o apetite natural das sanguessugas, massajava-se a pele do paciente até esta ficar vermelha ou aplicava-se no local a ser sugado, um pouco de sangue de galinha ou de outro animal.
As ventosas eram utilizadas na sangria por vácuo, para o que se aquecia a parte bojuda da ventosa com estopa a arder, assentando-se depois sobre a pele, o orifício da parte oposta. O uso de ventosas tinha uma vasta gama de indicações. Aplicadas sobre o ventre curavam colites, sobre as costas tratavam dores ciáticas e incorrecções da coluna vertebral. Dispostas nas coxas, debaixo ou sobre os seios da mulher, provocavam a menstruação. Permitiam ainda curar doenças pulmonares em estado avançado, mau hálito, feridas abertas, mordeduras de animais venenosos, etc.
Depois de sangrado, o paciente ficava em repouso e não podia dormir durante a primeira hora, nem deitar-se sobre a zona do corte, devendo abster-se do consumo de alimentos indigestos, devendo seguir a dieta prescrita pelo médico.
Em 1628, o inglês William Harvey (1587-1657), comprovou a circulação sanguínea, lançando as bases para contestar o fundamento da sangria. Todavia, afamados médicos e cirurgiões portugueses, persistiam em encarar a sangria como uma rotina de tratamento, não só eficaz, como imprescindível, que era executada por barbeiros sangradores, nas suas tendas, nos domicílios dos pacientes, assim como nas prisões e hospitais.
A resistência em adoptar teorias resultantes de estudos experimentais persistiu para além da Reforma Pombalina da Universidade, em 1772. A prática da sangria levaria ainda cerca de cem anos até deixar de ser prescrita por médicos e cirurgiões. É de salientar que o ofício de sangrador só foi extinto por lei de 13 de Julho de 1870. Até lá, cumpria-se o adágio: “Sangrai-o, purgai-o, e se morrer, enterrai-o.” (5) Também o cancioneiro popular, ainda no início do séc. XX, proclamava que:

“Venho da Serra da Estrella
De apprender a surgião.
Para sangrar as meninas
Na veia do coração.” [4]

BIBLIOGRAFIA
(1) - GRANDE ENCICLOPÉDIA PORTUGUESA E BRASILEIRA. Vols. 4, 6, 17, 26. Editorial Enciclopédia, Limitada. Lisboa, s/d.
(2) – LEITAM, Manuel. Pratica de Barbeiros em Quatro Tratados em que se trata de com se ha de sangrar, & as cousas necessarias para a sangria; & juntamente se trata em que parte do corpo humano se haõ de lançar as ventosas, assi secas, como sarjadas; & em que parte compitaõ sanguixugas, & o modo de as applicarem; com outras muitas curiosidades pertencentes para o tal officio, em Lisboa, à custa de Francisco Villela, 1667.
(3) - NUNES LIAM, Duarte. Livro dos Regimentos dos Officiaes Mecanicos da Mui Nobre e Sempre Leal Cidade de Lisboa (1572), Coimbra, Imprensa da Universidade, 1926.
[4] - PIRES, A. Tomaz. Cantos Populares Portuguezes. Vol. IV. Typographia e Stereotipía Progresso. Elvas, 1912.
(5) – ROLAND, Francisco. ADAGIOS, PROVERBIOS, RIFÃOS E ANEXINS DA LINGUA PORTUGUEZA. Tirados dos melhores Autores Nacionais, e recopilados por ordem Alfabética por F.R.I.L.E.L. Typographia Rollandiana. Lisboa, 1780.
(6) – SANTOS, Georgina Silva. A Arte de Sangrar na Lisboa do Antigo Regime, in Tempo, nº 19. Rio de Janeiro, Julho de 2005.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 22 de Julho de 2011


"Botique de Barbier", gravura de Jean Baptiste Debret (1768-1848), francês que viveu no
Brasil de 1816 a 1831 e que representa a fachada de uma barbearia, encimada por placa
com os dizeres: “Barbeiro, Cabeleireiro, Sangrador, Dentista e Deitão Bixas”.

Bacia de barbeiro sangrador, em latão (38 cm de diâmetro x 8 cm de profundidade).
Adquirida  em Estremoz, onde ainda em meados do século passado, eram usadas para
sinalizar as barbearias. Marca de suspensão na extremidade oposta à zona de encaixe
no pescoço. Colecção do autor.

Ventosa em vidro, fabricada por sopragem. Altura: 7 cm; Embocadura: 4cm. 
Colecção do autor.

segunda-feira, 18 de julho de 2011

Adivinhário português da água

Um poço em Estremoz (Início do séc. XX). Alberto de Souza (1880-1961). Desenho a tinta da China aguarelada, utilizado como ilustração de bilhete-postal ilustrado da 3ª série de “A EDITORA”.

A presente colectânea de adivinhas sobre a água, é fruto da nossa investigação em oito fontes bibliográficas distintas, cujos autores, cada um na sua época, as recolheu da tradição oral. Sistematizámo-las em quatro grupos distintos, ainda que não divergentes:

1 – Água
2 - Poço
3 – Nora
4 – Diversos
 
Passemos, de seguida, em revista, estes grupos:

1 – ÁGUA

“Qual é a cousa, qual é ela,
Que chega à serra e se abica?” [5]
(SOLUÇÃO – A água)

“Uma coisa que tanto anda, e nunca chega onde quer.” [3]
(SOLUÇÃO – Água corrente.)

“Sem voz, encanto quem me ouve; tenho leito e não durmo; e, como o tempo, corro sempre.” [5]
(SOLUÇÃO – A água de um ribeiro.)

“Qual é a coisa, qual é ela,
Que Deus criou para andar
Sem nunca para trás voltar?” [2]
(SOLUÇÃO – A água do rio.)

“São três cousas:
Uma diz que vamos,
Outra que fiquemos,
Outra que dancemos?” [4]
(SOLUÇÃO – Água, areia, espuma.)

“Quanto mais alta,
Melhor se alcança.” [7]
(SOLUÇÃO – A água do poço.)

2 – POÇO

“Alto como um pinheiro,
Redondo como um pandeiro.” [1]
(SOLUÇÃO – Um poço.)

“Que é, que é,
Redondo como um cesto,
Comprido como uma corda?” [4]
(SOLUÇÃO – Um poço.)

“Que é, que é,
Que quanto mais se lhe tira
Maior é?” [5]
(SOLUÇÃO – Um poço.)

3 - NORA

“Qual é a coisa que anda e anda bem, e nunca sai do sítio e faz sair os que andam com ela?” [8]
(SOLUÇÃO – A nora.)

“Eu sou mãe de muitos filhos
e todos comigo tenho
e para lhes matar a fome
dou mil voltas e venho.” [8]
(SOLUÇÃO – A nora.)

“Sou mãe de muitos filhos,
E todos comigo tenho;
Para os ver fartos e cheios,
Dou uma volta, vou: e venho;
Mas, como no tempo presente
Tudo custa a sustentar,
Quando os vejo fartos e cheios,
Ponho-me então a cantar.” [6]
(SOLUÇÃO – A nora.)

4 – DIVERSOS

“Já que tens entendimento
E és amigo de saber:
Uma pedra em cima da água,
Dize lá se pode ser?” [5]
(SOLUÇÃO – O gelo)

“Que diferença há entre a água e o médico?“ [7]
(SOLUÇÃO – A água mata secura; o médico se cura, não mata.)

Adivinhas como estas, povoavam o imaginário popular, na época em que gerações, afastadas no tempo, seroavam em convívio e partilha, já que a transmissão de saberes, de uma forma natural, se processava através da oralidade. Foram práticas que se perderam…

BIBLIOGRAFIA
[1] – BRAGA, Teófilo. “As Adivinhas Portuguesas”, in Era Nova. Lisboa, 1881
[2] – GONÇALVES DAS NEVES, Serafim, PIRES DE LIMA, Augusto Castro & DACIANO, B.: “Tradições de Azurara, III — Adivinhas”, in Boletim Douro-Litoral, 4ª série, VII-VIII. Porto, 1951.
[3] – LEITE DE VASCONCELLOS, José. Ensaios Etnográficos, vol. IV. Lisboa, 1910.
[4] – LEITE DE VASCONCELLOS, José. Tradições Populares de Portugal. Livraria Portuense de Clavel e C.ª – Editores. Porto, 1882.
[5] – PIRES DE LIMA, Augusto Castro. O Livro das Adivinhas. Editorial Domingos Barreira. Porto, 1943.
[6] – PIRES DE LIMA, Fernando de Castro. Qual é a coisa qual é ela? Portugália Editora. Lisboa, 1957.
[7] – VIEGAS GUERREIRO, M. Adivinhas Portuguesas. Fundação Nacional Para A Alegria No Trabalho. Lisboa, 1957.
[8] - VIEIRA BRAGA, Alberto. “Folclore”, in Revista de Guimarães, vol. XXXIV (1934).

domingo, 17 de julho de 2011

Mitologia popular da água


Camponesa de Estremoz com cântaro de água. (c. 1940).
Ilustração de Cesar Abbott em bilhete-postal ilustrado.
Edição do Centro de Novidades, Porto.

São inúmeras as superstições relativas à água e ao seu consumo. Delas destacamos algumas:
- No princípio do mundo, a água foi condenada a correr sempre e nessa época também tinha fala. (3)
- Está ainda muito arreigada a crença nos vedores, pessoas que detectam a presença de veios de água no subsolo. (4)
- Tanto a água corrente como a de bica, descansa uma hora em cada noite, que foi a hora que Deus lhe estabeleceu para descansar. (4)
- A água dorme todas as noites e à meia-noite do dia de S. João, está benta. (3)
- Não se deve beber água depois da meia-noite, sem mexer o copo que a contém, porque a água está a dormir e de contrário, fará mal a quem a bebe. (1)
- Existe a crença de que a água, à meia-noite ou na manhã de São João, tem muitas virtudes, por isso as pessoas se lavam nela e levam os gados às pontes e rios. (3)
- Para a água se manter fresca, ata-se uma junta ao gargalo do cântaro, em que se transporta água da fonte (Alandroal). (2)
- Não se deve beber água com uma luz na mão, porque entram espíritos. (1)
- Não se deve beber água com uma luz na mão, porque provoca gota ou porque se bebe o juízo. (3)
- É mau beber água com uma luz na mão, pois que se dão acidentes. (4)
- Para não se morrer de dores de barriga, não se deve beber água em correntes, sem primeiro rezar um padre-nosso e uma ave-maria. (1)
- Quando a água que se bebe está fria, é porque não choverá. (4)
- Quem bebe água em jejum, cura o catarral. (4)
- É mau beber água antes do Sol-posto, de acordo com o adágio:
“Quem bebe água antes do almoço
Chora antes do Sol-posto.” (3)
- Beber nove [1] golos de água é remédio certo para afastar os soluços. (1)
- Aos recém-nascidos deve-se dar a beber a água em que foram lavados, para os tornar mansos. (1)

BIBLIOGRAFIA
(1) - CONSIGLIERI PEDROSO, “Supertições Populares”, O Positivismo: revista de Filosofia, Vol. III. Porto, 1881.
(2) - LEITE DE VASCONCELLOS, José. Etnografia Portuguesa. Vol. V. Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Lisboa, 1982.
(3) - LEITE DE VASCONCELLOS, José. Tradições Populares de Portugal. Livraria Portuense de Clavel e C.ª – Editores. Porto, 1882
(4) - THOMAZ PIRES, A. Tradições Populares Transtaganas. Tipographia Moderna. Elvas, 1927.
Publicado inicialmente a 17 de Julho de 2011

[1] - O número nove representa o triplo do triplo (9=3x3) e para os hebreus é o símbolo da verdade com a característica de que multiplicado por si próprio, se reproduz a si mesmo, segundo a adição mística (9x9=81). Daí que o nove, seja por excelência, o número dos ritos medicinais, uma vez que representa a tripla síntese (corporal, intelectual e espiritual).