terça-feira, 28 de junho de 2011

Ganchos de meia e meias de cinco agulhas


Ganchos de meia (Séc. XX). Arte pastoril, em madeira. Colecção do
autor. Da esquerda para a direita: Bota finamente lavrada, encimada
por uma cruz (3,7 cm); Bota finamente lavrada, encimada por uma
lira (3,7 cm); Tarro articulado numa folha estilizada de sobreiro (8,8 cm).

                                   À minha filha Catarina, alentejana como eu
                                              e que decerto, como mulher,
                                              saberá honrar a ancestral tradição das meias de cinco agulhas.

Uma das características mais importantes das peças de arte pastoril é a de corresponderem a uma necessidade sentida por alguém, o que leva essa peça a desempenhar uma função. É o caso dos chamados “ganchos de meia”, que as mulheres das nossas famílias usavam quando faziam croché ou tricotavam peças de vestuário, de lã ou algodão, como era o caso das chamadas “meias de cinco agulhas”.
Independentemente da sua forma geométrica e decoração, estes ganchos de meia, confeccionados em madeira ou osso, eram pregados na blusa ou no vestido da mulher, na parte superior do peito, geralmente do lado esquerdo. Aí eram fixados através dum alfinete-de-ama ou cozidos com linha. Todos estes ganchos têm um sulco ou um buraco, por onde passava o fio, que do novelo era redireccionado para as agulhas.
Com cinco agulhas se fazia o tricô circular usado na manufactura de meias. Estas, eram lisas ou lavradas com motivos diversos, monocromáticas ou multicolores, decoradas com barras ou motivos florais ou geométricos.
Sempre houve quem manuseasse com mestria as cinco agulhas, com a mesma rapidez e precisão que as mãos dum virtuoso, percorrem o teclado dum piano. Mãos que falavam e davam resposta às necessidades caseiras, mas que também faziam para vender para fora, pois era necessário engrossar o magro orçamento familiar.
Havia quem começasse as meias de cima para baixo, em direcção à calcanheira e à biqueira, mas também havia quem as começasse exactamente em sentido contrário.
Quando as meias se gastavam pelo uso, geralmente na calcanheira ou na biqueira, eram reparadas, recorrendo novamente às cinco agulhas. A vida não dava para extravagâncias e poucos se podiam dar ao luxo de desperdícios inúteis. Apesar disso, o aparecimento no comércio de meias baratas, de fabrico industrial e a pressão da vida moderna, conduziram ao decaimento em desuso da manufactura artesanal das meias de cinco agulhas.
Na região onde me insiro, Estremoz, a manufactura das meias de cinco agulhas era uma prática corrente nas suas treze freguesias. Bem próximo de nós, eram famosas as meias manufacturadas pelas mulheres da Aldeia da Serra.
Actualmente, a reacção ao consumo desenfreado suscitado pela sociedade capitalista, tem levado mulheres, especialmente jovens, a um “regresso às origens”, manufacturando meias para si e para as suas crianças. São estilos de vida alternativos e salutares, que se saúdam. É o retomar de práticas que retiram das vitrinas, jóias da arte pastoril, como os ganchos de meia que estiveram na génese do presente texto.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 28 de Junho de 2011


Ganchos de meia (Séc. XX). Arte pastoril, em madeira. Colecção do Museu
Nacional de Etnologia (Lisboa). Da esquerda para a direita: Coração, bordado
com motivos geométricos (4,8 cm); Botim feminino, bordado (3,7 cm); Haste
com duas argolas, bordada com motivos geométricos (7,5 cm).

Meias de cinco agulhas, em fio de algodão (Anos 50 do séc. XX).
Dimensões – Cano: 34 cm; Pé: 21 cm. Manufacturadas pela minha
mãe, integravam o meu traje de campino, com o qual me mascarei
na minha infância, em dois Carnavais sucessivos. Colecção do autor.

Ceifeira alentejana. Aguarela de Alfredo de Morais (1872-1971).
O traje representado inclui meias de cinco agulhas, às listas
vermelhas e amarelas.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Estradas de luto e árvores com cuecas



Nos anos sessenta do século passado, corria no Alentejo, a seguinte versão da suprema felicidade aldeã:
- “A gente quer as estradas de luto e as árvores com cuecas.”
Significava isto que o bom povo alentejano, farto de caminhos municipais degradados, via com bons olhos, a chegada das estradas de alcatrão ou pavimentadas com paralepípedos, sob a supervisão da Junta Autónoma das Estradas. A imagem de marca desta instituição, era a caiação no tronco e por vezes nas pernadas das árvores que ladeavam as estradas. Tratava-se simultaneamente duma sinalização de segurança e duma marca de posse, consumada pelos cantoneiros com cal branca e um basto pincel, aparelhado numa cana de caiar.
Nesse tempo, não tínhamos nem a “Brisa”, nem as “Estradas de Portugal” e sentíamo-nos bem. Pela minha parte, quando pela estrada fora, ia de Estremoz para Monforte, sentia-me um personagem da “Aldeia da Roupa Branca”, a progredir num estendal de alvinitentes cuecas.
Também nos montados, após a tiragem da cortiça e para memória futura, os sobreiros eram marcados com cal branca, que além de bio-degradável, era anti-séptica, como bem sabiam as sábias mulheres do povo, que as usavam na caiação dos montes e das casas de povoado. Tudo isto, foram salutares e ancestrais hábitos que se perderam.
Hoje entrei numa drogaria de bairro, para comprar uma folha de lixa para polir madeira. Já de saída, ouço um rapaz, provavelmente saído dessas novas oportunidades que por aí há, que com voz de falsete debitou ao balcão:
- “Oh amigo, arranje-me aí uma lata de cinco litros de tinta plástica branca, que é para pintar os sobreiros!”.
Cá fora, na rua estreita, outro rapazola seu comparsa, ao volante dum automóvel, atravancava a rua, enquanto esperava pelo primeiro, para carregar a penosa carga de cinco litros de tinta plástica branca.
Ia-me dando uma coisa ruim, porque sempre detestei gente estúpida que em nome duma pseudo-modernidade, que ninguém lhes ensinou o que era, revoga sensatas tradições ancestrais. De resto, nunca pude com fascistas, que é o nome que dou aos egoístas, que entendem atrapalhar o trânsito por conveniência própria, ignorando olimpicamente a existência dos outros.
Nessa altura, eu que sou ateu, disse para comigo mesmo:
- “Perdoai-lhes pai, que eles não sabem o que fazem!”
Se porventura as minhas preces foram ouvidas, estou convencido que o Engº Vieira Natividade, o “Papa” da subericultura mundial, deve ter dado duas voltas no túmulo, face ao incómodo da situação. E vocês:
- "Que dizem?"

domingo, 26 de junho de 2011

O pão na gíria popular


  AS PADEIRAS (MERCADO DE FIGUEIRÓ DOS VINHOS - 1898). José Malhoa (1855-1933)
Óleo sobre tela (45 x 54 cm). Colecção Particular


Esta colectânea de “dizeres” sobre o pão, fruto da nossa pesquisa em onze fontes bibliográficas distintas, mostra mais uma vez a riqueza e a vitalidade da língua portuguesa:

- Amassar-se o pão com o suor do rosto = Trabalhar no duro para ganhar a subsistência [8]
- Comer o pão alheio = Viver à custa de outra pessoa [7]
- Estar no seu pão pingado = Sentir-se muito feliz, radiante [7]
- Fazer o pão caro = Diz-se de pessoa de idade muito avançada [7]
- Fazer pão grande = Não trabalhar por indolência [7]
- Ganhar o pão com o suor do seu rosto = Ganhar a vida com o trabalho próprio [7]
- Não ver o padeiro = Não ter relações sexuais [6]
- O pão-nosso-de-cada-dia = O sustento diário = A vida quotidiana [7]
- Padaria = Nádegas = Rabo [6]
- Padeiro = Desajeitado = Trapalhão
- Padeiro = O diabo [1]
- Padeiro = Oficial de Administração Militar [4]
- Panzaria = Muitos pães (Alentejo) [11]
- Pão = Homem ou mulher bela [4]
- Pão = Indivíduo ridículo = Imbecil [1]
- Pão = Pão de centeio (Aguiar da Beira) [10]
- Pão = Murro = Soco [4]
- Pão alvo = Pão de trigo de farinha muito espuada [8]
- Pão ázimo = Pão não fermentado comido na Páscoa judaica [8]
- Pão com rosca = Casal ou amigos inseparáveis [7]
- Pão com rosca = Marido e mulher [1]
- Pão de cada dia = O sustento quotidiano [8]
- Pão de casa = Pão de amassadura doméstica [9]
- Pão de forma = Carrinha tipo furgão de caixa fechada com o formato característico deste pão [4]
- Pão de ló = Pão muito fofo de farinha de trigo, ovos e açúcar [8]
- Pão de milho = Pão fabricado com farinha de milho [8]
- Pão de quatro = Pão seccionado usado na Covilhã [8]
- Pão de rala = Pão grosseiro de que se extrai pouco farelo [8]
- Pão de sabuja = Pão que não tem mistura (Trás-os Montes) [2]
- Pão de segunda = Pão de trigo escuro [8]
- Pão de sêmea = Pão de trigo escuro [8]
- Pão de trigo da terra = Pão feito de farinha de trigo de produção madeirense [9]
- Pão do espírito = A instrução [8]
- Pão e água = Mínimo para a sobrevivência de alguém 
- Pão francês = Pão alvo = Pão de trigo [11]
- Pão meado = Mistura de milho e centeio (Beira) [8]
- Pão nas costas = Corcunda (Sabugal-Beira Alta) [5]
- Pão para peras = Dificuldades = Aflições = Atribulações [7]
- Pão para quatro = Morteiro pesado [3]
- Pão pingado = Bel-prazer (Alentejo) [11]
- Pão por Deus = Dádiva de frutas, pão e doces, feita às crianças que no dia de Todos-os-Santos andavam de saquitel ao pescoço [9]
- Pão por Deus = Esmola dada por toda a gente, no dia de Todos-os-Santos, sob a forma de pão ou fruta, etc., prIncipalmente à pequenada do povo (Porto de Mós, Alcanede) [10]
- Pão quartado = pão fabricado com quatro farinhas (trigo, milho, centeio e cevada) [8]
- Pão saloio = Pão fabricado com farinha de trigo durázio, cultivado nos arredores de Lisboa [8]
- Pão seco = Pão sem qualquer conduto [7]
- Pão sem sal = Diz-se de pessoa sensaborona, apática, abúlica [7]
- Pão, pão, queijo, queijo = com clareza e franqueza, sem deixar margem a subterfúgios ou ambiguidades [7]
- Pão-de-ló = Indivíduo efeminado [8]
- Pão-sabudo e matação = Quantidade exacta de cereal a ser paga pelos rendeiros [8]
- Pãozeiro = Indivíduo que gosta muito de pão [2].
- Pãozinho = Estudante elegante = Paposseco (Coimbra) [3]
- Pãozinho = Homem pouco esperto [3]
- Pãozinho = Indivíduo ridículo = Imbecil [1]
- Pãozinho sem sal = Diz-se de pessoa sensaborona, apática, abúlica [7]
- Pãozinho sem sal = Pessoa débil de carácter abúlico [4]
- Pãozinho sem sal = Pessoa sem carácter, incapaz de tomar uma decisão, de afirmar a sua personalidade [6]
- Perder o pão = Perder o emprego [7]
- Pôr a pão e água = Castigar alguém, dando-lhe apenas pão e água como alimento
- Ser o meu, teu, etc. pão pingado = Ser aquilo de que uma pessoa mais gosta [7]
- Ser pão-duro = Ser avarento
- Terra de pão = Terra que produz cereais [7]
- Tirar o pão (da boca) a/de alguém = Privar uma pessoa de subsistência [7]
- Vender-se como pão quente = Ter grande saída [7]

BIBLIOGRAFIA
[1] - BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Gomes de Carvalho-Editor. Lisboa, 1901.
[2] - FIGUEIREDO, Cândido de. Novo Dicionário de Língua Portuguesa. (2 vol.). Editora Portugal-Brasil Limitada, 1922.
[3] – LAPA. Albino. Dicionário de Calão. Edição do Autor. Lisboa, 1959.
[4] – NOBRE, Eduardo. Dicionário de Calão. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1986.
[5] – PINHEIRO CHAGAS, Manuel. A História Alegre de Portugal. Companhia Nacional Editora. Lisboa, 1890.
[6] – PRAÇA, Afonso. Novo Dicionário de Calão. Editorial Notícias. Lisboa, 2001.
[7] – SANTOS, António Nogueira. Novos dicionários de expressões idiomáticas. Edições João Sá da Costa. Lisboa, 1990.
[8] – SIMÕES, Guilherme Augusto. Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1993.
[9] – SOUSA. Luís de. Dizeres da Ilha da Madeira. Palavras e Locuções. Edição do autor. Funchal, 1950.
[10] - TAVARES DA SILVA, D. A. Esboço Dum Vocabulário Agrícola Regional. Separata dos Anais do Instituto Superior de Agronomia, Vol. XI. Lisboa, 1942.
[11] – THOMAZ PIRES, A. Vocabulário alemtejano. Editor – António José Torres de Carvalho. Elvas, 1913.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 26 de Junho de 2011

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Os servos da gleba e a jogatina



Fotografia de Mário da Gama Freixo (1894-1980). Algures no Alentejo dos anos 20-30 do século passado, um grupo de camponeses que comunga o uso do chapéu, já que o cancioneiro reza que: "… / O Alentejo não tem sombra, / Senão a que vem do céu."
Estão concentrados e até mesmo vidrados pelo curso da jogatina na banca de um certo jogo de azar, que era corrente nas feiras de antanho.
Uma banca de jogo pertencente a alguém, a quem convencionalmente chamam o banqueiro. Nada de mais simples. Uma mesa com rebordo e a disposição de plano inclinado. No topo superior da mesa, o rebordo é mais volumoso e aí encaixa uma espécie de funil em lata, que comunica com um buraco existente no rebordo superior da mesa.
O jogador começa por pagar ao banqueiro o seu direito ao ingresso no jogo, através da compra de cinco bolas de madeira. Depois, à vez, com a mestria e engenho possíveis, aquele que tem a pretensão de “sangrar” o banqueiro, com a sua mão mais capaz, em geral a mão dextra, lança verticalmente uma bola do topo, em direcção ao fundo do funil. Para tal e com o auxílio da ponta dos dedos, imprime-lhe um efeito giratório, que lhe permite assegurar a queda ao longo do eixo central do funil, a que se segue uma progressão dinâmica ao longo do plano inclinado. Quando é bem sucedido, a bola acaba por entrar num buraco situado na intersecção do eixo central, com o bordo inferior da banca. Parece que é fácil, mas não é. A maioria dos jogadores não tem êxito. Daí o lucro do banqueiro, na tradição usual de os banqueiros terem êxito, com a falta de êxito dos outros.
Quanto aos escassos habilidosos e sortudos, conseguiam com retorno, multiplicar o dinheiro investido em cada bola, que virtuosamente atingia com êxito, o buraco situado junto ao bordo inferior da banca.
O dinheiro envolvido poderia até não ser muito, mas a teimosia dos que persistiam em ganhar, ajudava a engordar o lucro do banqueiro.
A atracção, o deslumbramento e o desvario pelo jogo, foram desde sempre apanágio, não só das classes sociais mais elevadas, como também dos servos da gleba, crentes de que um golpe de sorte, os conduziria a uma vida melhor. Nada de mais ilusório. É precisamente o contrário. Existe a convicção generalizada de que “Jogo de mão, jogo de vilão“ e se é certo que “Ninguém joga para perder”, não é menos certo que “Jogar e nunca perder, não pode ser”, bem como “Quando alguém perde, alguém sai lucrando”, que é o mesmo que dizer que “A sorte de uns, é o azar de outros”. Por isso o povo recomenda: “Quando perderes põe-te de lado”. O pior é que “Ninguém está contente com a sua sorte” e lá vão jogando e perdendo, quando a solução é só uma: “Quem não quer perder, não jogue”, pois “O que o jogo dá, o jogo leva” e mesmo quando se ganha “A sorte acaba um dia” e depois, se não arrepiares caminho, “Jogarás, pedirás, furtarás”, o que dá aos outros a convicção de que “Na casa de quem joga, alegria pouco mora”.
Jogos como o aqui descrito eram simultaneamente jogos de perícia e jogos de azar, por vezes bastante animados, já que com a aproximação da Guarda, cada um fugia para seu lado.
As nossas Ordenações e mais tarde o Código Penal puniram o jogo, que apenas pode ser praticado duma forma regulamentada em casinos de zonas concessionadas de jogo.
Em Estremoz, nos anos sessenta do século passado ainda existiam dois banqueiros com banca como a da imagem. Eram eles o Pengalim e o Velho Painho. O seu campo de acção centrava-se na “Feira de Santiago”, na “Feira de Santo André” e na “Feira de Maio”. Naturalmente que também faziam biscates nas festas das freguesias. Eram formas de vida, já que o português é mestre do desenrascanço…

Publicado inicialmente a 23 de Junho de 2011

domingo, 19 de junho de 2011

O meu churrião


Há cerca de 15 anos, o Quintino, negociante de velharias em Bencatel, quis vender-me um churrião, em estado impecável, por vinte contos. Eu tinha as vinte milenas para lhe dar, mas o pior, era o resto. É que moro numa casa com primeiro, segundo e terceiro andar, mas garagem, nem vê-la. Ainda se tivesse garagem, punha o automóvel ao sete-estrelo e transformava a garagem em cocheira. Arrumava lá o churrião e só tinha que arranjar um muar e uma boa provisão de palha. Sim, porque um muar é um motor de combustão a palha. Mas eu não tinha garagem e a única alternativa era alugar um guindaste para pôr o churrião na varanda, situada ao nível dum terceiro andar. Mas então ficaria sem estendal para a roupa e corria o risco de por vingança, as mulheres da casa, porem a roupa a secar no meu escritório. Vocês estão-me a imaginar a escrever à secretária, por entre ceroulas, soutiens e lenços de assoar? Até me dava uma coisa ruim…Bom, foi um dos maiores desgostos da minha vida. E eu que tenho fama de ser teimoso como uma porta e não gosto de desistir de nada, desta vez tive de me dar por vencido. E lá fiquei com as vinte milenas, à espera doutra oportunidade. Entretanto, descarreguei a frustração, escrevendo sobre churriões e motores de combustão a palha. Mas eis que surge um dado novo. No passado sábado, no mercado das velharias, em Estremoz, o meu amigo, alfarrabista António Oliveira, de Évora, ofereceu-me um livrete dum carro de tracção animal. Foi um para mim, um momento de rara felicidade e, desde então, começo novamente a vislumbrar uma luz ao fundo do túnel. Será que é desta vez que vou arranjar o churrião? Como não posso mudar de casa, aguardo desde já que qualquer alma caridosa, me possa facultar uma cocheira ou uma garagem, para não sofrer nova desilusão. A esperança essa nunca se perde…

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Santo António na tradição oral


Capa da revista ILUSTRAÇÃO PORTUGUEZA nº 16 de 11 de Junho de 1906.

PRÓLOGO
É vasta a literatura de tradição oral portuguesa referente a Santo António. Debruçar-nos-emos aqui sobre o adagiário, tradições e superstições populares, orações populares e cancioneiro popular alentejano.

ADAGIÁRIO PORTUGUÊS.
Não é extenso, mas existe algum adagiário relativo a Santo António:

- “Água de Santo António tira o pão à gente e dá o vinho ao demónio.”
- “Ande o calor por onde andar, pelo Santo António, há-de chegar.”
- “Dia de Santo António, vêm comer as cerejas ao castanheiro.”
- “Entre António e João planta teu feijão.”
- “Não há sermão sem Santo António, nem panela sem toucinho.”
- “Nem Deus com um gancho, nem Santo António com um garrancho.”
- “Ovelha que é do lobo, Santo António Antônio não guarda.”
- “Santo António tira a dor, mas não tira a pancada.”

TRADIÇÔES E SUPERSTIÇÕES POPULARES
- No dia de Santo António deve-se colher um raminho de erva-pinheira, para pendurar em casa. Se este reverdecer, tal facto é indício de fortuna. [2]
- Para que Santo António opere o milagre de casar uma rapariga solteira, é preciso que uma sua imagem seja roubada a outra pessoa. [2]
- Rezar um responso a Santo António faz com que a pessoa ou o animal responsado não consiga andar para diante, mas apenas para trás, pelo que volta ao ponto de partida. [2]
- Na véspera do dia de Santo António, é costume ornamentar as portas ou as sacadas das casas com canas verdes. [7]

ORAÇÕES POPULARES ALENTEJANAS
Um tipo de oração popular é a encomendação (recomendação) que se faz a Jesus, à Virgem Maria ou a um Santo, para eles livrarem o encomendante de qualquer bicho ou pessoa que lhe queira fazer mal, assim como de qualquer influência maléfica ou demoníaca que o possam afectar. Vejamos uma “Encomendação a Santo António”:

“Santo António se levantou,
Caminho e carreira andou,
Nossa Senhora encontrou,
Ela lhe perguntou:
- Aonde vais, António?
- À vossa Santa busca vou.
- Pois tu, António, irás
E na terra ficarás,
O meu corpo me guardarás
De mau lobo e de má loba,
De mau cão e de má cadela,
De mau homem e de má mulher
E de tudo mau que houver,
Que eu nunca tenha perca
Nem dano nem prejuízo algum.
Em louvor da Virgem Maria
Um Padre Nosso e uma Ave Maria.” [5]

Um outro tipo de oração popular é o responso, entendido como uma oração a um Santo, visando o aparecimento de coisas desaparecidas ou que não ocorram males que se temem. Vejamos um “Responso de Santo António”:

“Santo António se levantou,
seu sapatinho calçou,
seu bordãozinho pegou,
seu caminho caminhou,
Jesus Cristo encontrou.
Jesus Cristo lhe perguntou:
- Onde vais, Beato António?
- Senhor, convosco vou.
- Comigo não virás,
na terra ficarás
guardando o que está perdido,
que à mão do dono seja restituído.
Em nome de Deus e da Virgem Maria
Pai-Nosso e Ave-Maria.” [1]

Este responso reza-se três vezes, depois das quais, as coisas desaparecidas, aparecem.

CANCIONEIRO POPULAR ALENTEJANO
O Povo não esquece a data festiva do Santo António:

“A treze do mês de Junho
Santo António se demove,
S. João a vinte e quatro,
e S. Pedro a vinte e nove.“ [6]

Pelo Santo António, S. Pedro e S. João é cantada a seguinte cantiga popular:

“Santo António, S. Pedro e S. João,
Santinhos padroeiros,
Do meu terno coração.
Olhai por mim,
Protegei-me, dai-me sorte,
Que eu serei vossa devota
Quer na vida quer na morte.” (Évora) [3]

O Povo considera que Santo António pertence a uma admirável geração:

“S. Francisco é meu primo,
Santo António é meu irmão,
Os anjos são meus parentes,
Ai que linda geração!” (Beja) [4]

Tem-no, naturalmente, na mais elevada estima:

“Ailé,
Senhor Santo António,
É o melhor cravo
Do meu oratório.“ [6]

O Santo é invocado para guardar olivais:

“Santo António de Lisboa,
Guardador dos olivais,
Guarda lá minha azeitona
Do biquinho dos pardais.“ [6]

Igualmente é invocado para guardar amores fugitivos:

“Santo António de Lisboa,
Guardador dos olivais,
Guardai-o meu lindo amor,
Que cada vez foge mais.“ [6]

Santo António é casamenteiro. Por isso, ele ou ela imploram:

“Ó meu amor, pede a Deus,
E eu peço a Santo António
Que nos deixe juntar ambos
No livro do matrimónio.“ (Alcáçovas) [4]

O homem confessa o objecto da sua fé:

“O sol bate de chapa,
Faz a maçã coradinha;
Tenho fé em Santo António
Que inda hás-de vir a ser minha.“ (Odemira) [4]

Por seu lado, a mulher suplica ao Santo que a case com determinado homem:

“Ó meu rico Santo António,
Eu bem alto aqui to digo;
Casai os rapazes todos,
O Josezinho comigo!“ (Alcáçovas) [4]

Chegam a chamar namoradeiro ao Santo:

“Santo António me acenou
De cima do seu altar,
Olha o maroto do santo,
Que também quer namorar." [6]

Apontam-lhe mesmo, certos episódios:

“Santo António, com ser santo,
Foi sempre um grande gaiato,
Foi à fonte com três moças,
recolheu, trazia quatro.“ [6]

Chegam ao ponto de lhe fazer determinadas insinuações:

“Senhor Santo António
Tem duas ladeiras:
Umas das casadas,
Outra das solteiras.“ (Moura) [4]

Por chalaça, Santo António é invocado pelas mulheres para escarnecer dos homens:

“Santo António de Lisboa,
Venha ver o que cá vai,
Deu a rabugem nos homens,
Como dá nos animais.“ [6]

Os homens respondem na mesma moeda:

“Santo António da Terrugem
Venha ver o que cá vai,
Anda a rabugem nas moças,
Té o cabelo lhes cai.“ [6]

No conceito popular, o Santo é portador da mais alta patente militar, daí que digam:

“Santo António de Lisboa
Não quer que lhe chamem santo,
Quer que lhe chamem António,
General, mar’chal de campo.“ [6]

Pelo poder que lhe é atribuído, não é de estranhar que Santo António seja invocado para livrar os mancebos da vida militar:

“Sant’Entóino é bom rapaz,
Que livrou seu pai da morte.
Também livrará meu bem
Quando for “tirar as sortes””. (Mina de S Domingos) [4]

Igualmente é invocado para ajudar a vencer desafios ainda maiores:

“Santo António é bom filho,
Que livrou seu pai da morte;
Ajudai-nos a vencer
Esta batalha tão forte.“ [6]

Como o ramo de loureiro era utilizado para sinalizar a porta das tabernas, houve quem ironizasse a decoração do altar do Santo:

“No altar de Santo António
‘Stá um ramo de lòreiro;
Olha que pouca vergonha,
Fazer de um santo vendeiro!“ (Évora) [4]

Os homens chegaram ao ponto de o acusar de reservar o vinho para as mulheres:

“Santo António de Cabanas
Tem uma pipa no monte,
As mulheres bebem vinho,
Os homens água da fonte.“ [6]

Chega a ser encarado como vendedor, a quem se solicita que seja pródigo no avio:

“Santo António vende peras,
Vende peras a vintém,
Lá irá o meu menino,
Santinho, aviai-o bem.“ [6]

A invocação da sua intercessão não conhece limites:

“Ó meu padre Santo António,
Vestidinho d’estamenha;
A quem quer ajudar
O vento lhe ajunta a lenha.“ [6]

O povo que tem convicções firmes e gosta de coisas rijas, considera que o Santo é mesmo um Santo com força nas canelas:

“Santo António da Terruge’
Feito de pau de azinho,
Tem mais força no canelo
Que um barrasco no focinho.“ (Terrugem) [4]

EPÍLOGO
Julgamos que dentro da literatura de tradição oral, as orações populares e o cancioneiro são reveladores da religiosidade própria do homem alentejano, em consonância com a sua própria identidade cultural.

(Texto publicado inicialmente a 15 de Junho de 2011) 

BIBLIOGRAFIA
[1] – ALVES, Aníbal Falcato. Rezas e Benzeduras. Campo das Letras. Porto, 1998.
[2] - CONSIGLIERI PEDROSO, “Supertições Populares”, O Positivismo: revista de Filosofia, Vol. III. Porto, 1881.
[3] – DELGADO, Manuel Joaquim Delgado. Subsídio para o Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo. Vol. I. Edição de Álvaro Pinto (Revista de Portugal). Lisboa, 1955.
[4] – LEITE DE VASCONCELLOS, J. Leite. Cancioneiro Popular Português, vol. III. Acta Universitatis Conimbrigensis. Coimbra, 1983.
[5] – POMBINHO JÚNIOR, A.P. Orações Populares de Portel. Edições Colibri-Câmara Municipal de Portel. Lisboa, 2001.
[6] - THOMAZ PIRES, A. Cantos Populares Portugueses, vol. I. Typographia Progesso. Elvas, 1902.
[7] - THOMAZ PIRES, A. Tradições Populares Transtaganas. Tipographia Moderna. Elvas, 1927.

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Santo António na barrística popular estremocense


Santo António. Mariano da Conceição (1903-1959). Colecção do autor.

ESBOÇO BIOGRÁFICO DE SANTO ANTÓNIO
Santo António (1195-1231) nasceu em Lisboa no dia 15 de Agosto de 1195 numa família de mercadores e cavaleiros-vilãos, filho de Martim de Bulhões e de Maria Teresa Taveira Azevedo. Foi baptizado no Mosteiro de São Vicente de Fora com o nome de Fernão de Bulhões. Fez os primeiros estudos na Igreja de Santa Maria Maior, hoje Sé de Lisboa. Em 1209 ingressa como noviço na Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, estabelecida naquele Mosteiro.
Em fins de 1210, princípios de 1211 transfere-se para o Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, pertencente à mesma Congregação e que na época era a nível europeu, um importante centro de cultura medieval e eclesiástica. Aí realizou estudos em Direito Canónico, Ciências, Filosofia e Teologia e veio a ser ordenado sacerdote entre 1218 e 1220.
Em Coimbra toma contacto com os franciscanos e é atraído pelos ideais de humildade, pobreza, evangelização e martírio, professados pela ordem italiana. O martírio de cinco franciscanos, decapitados em Marrocos e a vinda dos seus restos mortais em 1220 para Coimbra, levam Fernando a trocar a Regra de Santo Agostinho pela Ordem de São Francisco. Toma então o hábito franciscano, sob o nome de Frei António e recolhe-se no Eremitério dos Olivais de Coimbra.
Por essa época, decide dirigir-se a Marrocos num projecto isolado de conversão pacífica dos Mouros. Contudo, adoece quando atravessa o mar para ir a África, pelo que resolve regressar a Portugal, mas o barco que o transporta é desviado por uma tempestade e vê-se obrigado a aportar na Sicília. António dirige-se então a Assis, onde assiste em 1221 ao Capítulo Geral da Ordem. É em Itália, que António se notabilizará como teólogo exímio e grande pregador.
Em Março de 1222, em Forli, discursa para religiosos franciscanos e dominicanos de modo tão fluente e admirável que o Provincial da Ordem o destina imediatamente à evangelização e difusão da doutrina. Fixa-se então em Bolonha onde se dedica ao ensino da Teologia e à pregação, designadamente contra as heresias dos Cátaros, Patarinos e Valdenses. Segue depois para França, visando lutar contra os Albijenses e em 1225 ensina Teologia em Montpellier e Toulouse e, prega em Puy e em Limoges. Nessa época é-lhe confiada a guarda do Convento de Puy-en-Velay e torna-se custódio da Província de Limoges, um cargo eleito pelos frades da região. Dois anos mais tarde instala-se em Marselha, mas em breve será designado ministro-provincial na Emília, Norte de Itália, onde continua a pregar e a ensinar Teologia no Convento de Pádua. Aqui compõe os “Sermões” destinados a servir de modelo aos pregadores franciscanos, sermões esses caracterizados por alegorias extraídas da observação da natureza, facilmente compreendidas por um auditório ligado ao quotidiano material e concreto. A este período pertence o seu “Sermão aos peixes”.
Em 1228 assistiu à canonização de São Francisco e deslocou-se a Ferrara, Bolonha e Florença. No ano de 1229 as suas pregações dividiram-se entre Vareza, Bréscia, Milão, Verona e Mântua. Tratava-se de uma actividade que o absorvia de tal maneira, que a ela se passou a dedicar em exclusivo. Em 1231, após contactos com Gregório IX, regressa a Pádua, ficando a Quaresma do ano seguinte assinalada por múltiplos sermões da sua autoria.
A sua intensa vida religiosa e apostólica estará porventura na origem da sua morte, aos 36 anos, a 13 de Junho de 1231, no Convento de Arcella, perto de Pádua. Os seus restos mortais repousam na Basílica de Pádua, construída em sua memória.
Canonizado em Maio do ano seguinte pelo papa Gregório IX, foi declarado oficialmente Padroeiro de Portugal em 1932 e proclamado por Pio XII, Doutor da Igreja, em 1946. Santo António é assim o segundo Santo português após o início da Monarquia em 1139. O primeiro foi S. Teotónio (1092-1162).
Santo António é venerado pela Igreja Católica, que o considera um grande taumaturgo e lhe atribui um extraordinário número de milagres, não só em vida, como desde os primeiros tempos após a sua morte até aos dias de hoje.
Face à sua intensa actividade religiosa foram-lhe atribuídos epítetos como “Arca do Testamento“ (Gregório IX), “Martelo dos hereges”, “Defensor da fé”, “Oficina de milagres, etc.".
Santo António além de Padroeiro de Portugal e de Pádua, é considerado Padroeiro dos pobres, dos oprimidos, dos combatentes, dos doentes, dos náufragos, dos animais, dos noivos, dos casais, das casas e das famílias, das pessoas que desejam encontrar objectos perdidos, bem como aquele que livra os homens das tentações demoníacas.
Os atributos de Santo António são variados: um livro (alusão à sua posição como doutor da Igreja), o Menino Jesus (símbolo das suas aparições), um crucifixo, os peixes a escutar os seus Sermões, o burro ajoelhado perante a Hóstia, assim como um lírio. Observe-se que o lírio sempre foi encarado como o símbolo da pureza e relacionado com a Virgem Maria, em homenagem à sua pureza e por isso muito utilizado para decorar igrejas. Épocas houve em que retiravam do lírio os órgãos masculinos e femininos, pois só assim a flor seria "verdadeiramente virgem". Pelo seu simbolismo o lírio é também usado em bouquets de noiva. De resto, existia a crença que um bolbo da flor ajudava a reconciliar namorados desavindos e era uma planta mágica, protectora contra a bruxaria.
A circunstância de o dia festivo de Santo António (13 de Junho) coincidir com as festas do Solstício de Verão, faz com que seja celebrado em Portugal como um dos santos mais populares, com presença honrosa e permanente na literatura, na pintura, na escultura, na música, na toponímia, na filatelia, no folclore, na arte popular, especialmente na barrística, assim como na literatura oral.

PRESENÇA NA BARRÍSTICA POPULAR ESTREMOCENSE
O culto de Santo António foi incentivado em Estremoz pelos religiosos da ordem de S. Francisco de Assis, sediados no Convento de S. Francisco, desde os primórdios da sua construção, no século XIII, em data imprecisa, balizada pelos reinados de D. Sancho II – D. Afonso III (1239-1255).
Lá diz o rifão “Não há bela sem senão”, pelo que na sequência da influência franciscana, o culto de Santo António popularizou-se e o povo fez de Santo António um Santo à sua maneira e de acordo com as suas necessidades e conveniências:

“Santo António de Lisboa,
Guardador dos olivais,
Guarda lá minha azeitona
Do biquinho dos pardais.“ [4]

“Ó meu padre Santo António,
Vestidinho d’estamenha;
A quem quer ajudar
O vento lhe ajunta a lenha.“ [4]

Já no século XVII o padre António Vieira dizia num dos seus famosos sermões (1), que os portugueses para tudo pediam o auxílio de Santo António. Pregava ele: “Se vos adoece o filho, Santo António; se vos foge o escravo, Santo António; se mandais a encomendas, Santo António; se esperais o retorno, Santo António; se aguardais a sentença, Santo António; se perdeis a menor miudeza da vossa casa, Santo António; talvez se quereis os bens da alheia, Santo António.”
Nos anos 50-60 do século passado havia arraiais de Santo António em Estremoz, no Largo do Almeida, nas traseiras da Igreja de Santo André e no Pátio dos Solares, na noite de 12 para 13 de Junho. Todos eles com um mastro donde irradiavam troços de festão com lanternas de papel suspensas, que conferiam colorido e iluminação ao arraial. E havia bazares de rifas decorados com flores de papel e ramos de louro, planta que além de ser utilizada em culinária, simboliza desde a Grécia Antiga, a recompensa ao mérito. Mas o que era verdadeiramente indispensável era o trono com a imagem de Santo António, ornado com manjericos, flores de papel e pavios de cera e lamparinas de azeite a arder. Recorde-se a propósito que a tradição dos tronos de Santo António remonta a 1755 quando o Terramoto destruiu Lisboa e foi efectuado um peditório para ajudar a reconstruir a Igreja de Santo António, que ficara parcialmente destruída. O costume manter-se-ia e alastraria a todo o país. E em Estremoz como noutros lugares, era corrente durante a quadra festiva, ver os miúdos a pedir “um tostãozinho para o Santo António”. Saltava-se também a fogueira, queimavam-se as alcachofras e largava-se no ar o balão de papel, movido a ar quente, que nem sempre subia bem alto, pois algumas vezes se incendiava logo à partida. No arraial, bailava-se alegremente e o petisco obrigatório eram sardinhas assadas, acompanhadas de batata cozida, salada de tomate e pimentos assados, bem regados com vinho tinto ou branco, à excepção dos miúdos que bebiam pirolito de berlinde. No ar uma indescritível mistura de aromas de sardinha assada, louro e manjerico. A festa, essa durava até ao raiar d'aurora.
A popularidade do culto antoniano levou o povo a recriar pequenos altares nas suas casas e a ter o Santo exposto em oratórios. A procura de imagens estará na origem do aparecimento da figura de Santo António na barrística popular estremocense. No acervo do Museu Municipal de Estremoz existem imagens que vão desde o século XVIII até à actualidade e com dimensões e atributos variáveis.
No exemplar aqui reproduzido, Santo António é representado em jovem e em pé, envergando um hábito franciscano e uma capa, ambos em castanho. O hábito tem mangas com punhos orlados a amarelo, que é também a cor da gola e da orla da capa. O hábito está cingido à cintura por um cordão igualmente amarelo, pendente a todo o comprimento do hábito. O Santo calça sandálias e está assente numa peanha oca que pretende imitar as de talha. Na mão esquerda, o Doutor da Igreja segura um livro no qual está sentado o Menino Jesus, que sobre o joelho esquerdo e com a mão esquerda segura a “esfera mundi”. Qualquer das imagens ostenta auréolas douradas, com linhas incisas que radiam do centro. A posição do braço direito do taumaturgo alvitra que a sua mão deve ter segurado um lírio ou um crucifixo, que conjuntamente com o livro e o Menino Jesus, são outros dos atributos deste Santo. De salientar que nesta imagem há elementos amovíveis (auréolas, Menino Jesus, Cruz e lírio), que eram retirados da imagem e guardados, até o devoto ver o ser desejo satisfeito. Daí que em muitas destas imagens faltem alguns destes elementos. A pressão sobre o Santo a fim de que produzisse milagres, ia ao ponto de alguns porem a sua imagem de castigo, virada para a parede, como outrora os mestres-escola procediam com os alunos cábulas. Em casos extremos, a imagem era posta de cabeça para baixo e até mesmo atada a um cordel e mergulhada num poço. Seria para o Santo refrescar as ideias e fazer o milagre pretendido? Vejam lá o extremo a que podia chegar a religiosidade popular…

(1) - O padre António Vieira pregou dois sermões sobre Santo António: um em Roma, na Igreja dos Portugueses, outro na Baía, na Igreja de Santo António. Vêm ambos na edição dos “Sermões” publicada em Lisboa no ano de 1855.

BIBLIOGRAFIA
[1] – ESPANCA, Túlio. Inventário Artístico de Portugal. Distrito de Évora. Concelhos de Arraiolos, Estremoz, Montemor-o-Novo, Mora e Vendas Novas. I volume. Academia Nacional de Belas Artes. Lisboa, 1975.
[2] - GAMA, Estanislau Martins. Santos de Portugal. Edição de Luís G. Martins Gama. Estremoz, 1971.
[3] - PINHEIRO CHAGAS, M. Portugueses Ilustres. Lello e Irmão, Editores. Porto, 1983.
[4] - THOMAZ PIRES, A. Cantos Populares Portugueses, vol. I. Typographia Progesso. Elvas, 1902.
Publicado inicialmente em 13 de Junho de 2011