terça-feira, 28 de junho de 2011

Ganchos de meia e meias de cinco agulhas


Ganchos de meia (Séc. XX). Arte pastoril, em madeira. Colecção do
autor. Da esquerda para a direita: Bota finamente lavrada, encimada
por uma cruz (3,7 cm); Bota finamente lavrada, encimada por uma
lira (3,7 cm); Tarro articulado numa folha estilizada de sobreiro (8,8 cm).

                                   À minha filha Catarina, alentejana como eu
                                              e que decerto, como mulher,
                                              saberá honrar a ancestral tradição das meias de cinco agulhas.

Uma das características mais importantes das peças de arte pastoril é a de corresponderem a uma necessidade sentida por alguém, o que leva essa peça a desempenhar uma função. É o caso dos chamados “ganchos de meia”, que as mulheres das nossas famílias usavam quando faziam croché ou tricotavam peças de vestuário, de lã ou algodão, como era o caso das chamadas “meias de cinco agulhas”.
Independentemente da sua forma geométrica e decoração, estes ganchos de meia, confeccionados em madeira ou osso, eram pregados na blusa ou no vestido da mulher, na parte superior do peito, geralmente do lado esquerdo. Aí eram fixados através dum alfinete-de-ama ou cozidos com linha. Todos estes ganchos têm um sulco ou um buraco, por onde passava o fio, que do novelo era redireccionado para as agulhas.
Com cinco agulhas se fazia o tricô circular usado na manufactura de meias. Estas, eram lisas ou lavradas com motivos diversos, monocromáticas ou multicolores, decoradas com barras ou motivos florais ou geométricos.
Sempre houve quem manuseasse com mestria as cinco agulhas, com a mesma rapidez e precisão que as mãos dum virtuoso, percorrem o teclado dum piano. Mãos que falavam e davam resposta às necessidades caseiras, mas que também faziam para vender para fora, pois era necessário engrossar o magro orçamento familiar.
Havia quem começasse as meias de cima para baixo, em direcção à calcanheira e à biqueira, mas também havia quem as começasse exactamente em sentido contrário.
Quando as meias se gastavam pelo uso, geralmente na calcanheira ou na biqueira, eram reparadas, recorrendo novamente às cinco agulhas. A vida não dava para extravagâncias e poucos se podiam dar ao luxo de desperdícios inúteis. Apesar disso, o aparecimento no comércio de meias baratas, de fabrico industrial e a pressão da vida moderna, conduziram ao decaimento em desuso da manufactura artesanal das meias de cinco agulhas.
Na região onde me insiro, Estremoz, a manufactura das meias de cinco agulhas era uma prática corrente nas suas treze freguesias. Bem próximo de nós, eram famosas as meias manufacturadas pelas mulheres da Aldeia da Serra.
Actualmente, a reacção ao consumo desenfreado suscitado pela sociedade capitalista, tem levado mulheres, especialmente jovens, a um “regresso às origens”, manufacturando meias para si e para as suas crianças. São estilos de vida alternativos e salutares, que se saúdam. É o retomar de práticas que retiram das vitrinas, jóias da arte pastoril, como os ganchos de meia que estiveram na génese do presente texto.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 28 de Junho de 2011


Ganchos de meia (Séc. XX). Arte pastoril, em madeira. Colecção do Museu
Nacional de Etnologia (Lisboa). Da esquerda para a direita: Coração, bordado
com motivos geométricos (4,8 cm); Botim feminino, bordado (3,7 cm); Haste
com duas argolas, bordada com motivos geométricos (7,5 cm).

Meias de cinco agulhas, em fio de algodão (Anos 50 do séc. XX).
Dimensões – Cano: 34 cm; Pé: 21 cm. Manufacturadas pela minha
mãe, integravam o meu traje de campino, com o qual me mascarei
na minha infância, em dois Carnavais sucessivos. Colecção do autor.

Ceifeira alentejana. Aguarela de Alfredo de Morais (1872-1971).
O traje representado inclui meias de cinco agulhas, às listas
vermelhas e amarelas.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

Estradas de luto e árvores com cuecas



Nos anos sessenta do século passado, corria no Alentejo, a seguinte versão da suprema felicidade aldeã:
- “A gente quer as estradas de luto e as árvores com cuecas.”
Significava isto que o bom povo alentejano, farto de caminhos municipais degradados, via com bons olhos, a chegada das estradas de alcatrão ou pavimentadas com paralepípedos, sob a supervisão da Junta Autónoma das Estradas. A imagem de marca desta instituição, era a caiação no tronco e por vezes nas pernadas das árvores que ladeavam as estradas. Tratava-se simultaneamente duma sinalização de segurança e duma marca de posse, consumada pelos cantoneiros com cal branca e um basto pincel, aparelhado numa cana de caiar.
Nesse tempo, não tínhamos nem a “Brisa”, nem as “Estradas de Portugal” e sentíamo-nos bem. Pela minha parte, quando pela estrada fora, ia de Estremoz para Monforte, sentia-me um personagem da “Aldeia da Roupa Branca”, a progredir num estendal de alvinitentes cuecas.
Também nos montados, após a tiragem da cortiça e para memória futura, os sobreiros eram marcados com cal branca, que além de bio-degradável, era anti-séptica, como bem sabiam as sábias mulheres do povo, que as usavam na caiação dos montes e das casas de povoado. Tudo isto, foram salutares e ancestrais hábitos que se perderam.
Hoje entrei numa drogaria de bairro, para comprar uma folha de lixa para polir madeira. Já de saída, ouço um rapaz, provavelmente saído dessas novas oportunidades que por aí há, que com voz de falsete debitou ao balcão:
- “Oh amigo, arranje-me aí uma lata de cinco litros de tinta plástica branca, que é para pintar os sobreiros!”.
Cá fora, na rua estreita, outro rapazola seu comparsa, ao volante dum automóvel, atravancava a rua, enquanto esperava pelo primeiro, para carregar a penosa carga de cinco litros de tinta plástica branca.
Ia-me dando uma coisa ruim, porque sempre detestei gente estúpida que em nome duma pseudo-modernidade, que ninguém lhes ensinou o que era, revoga sensatas tradições ancestrais. De resto, nunca pude com fascistas, que é o nome que dou aos egoístas, que entendem atrapalhar o trânsito por conveniência própria, ignorando olimpicamente a existência dos outros.
Nessa altura, eu que sou ateu, disse para comigo mesmo:
- “Perdoai-lhes pai, que eles não sabem o que fazem!”
Se porventura as minhas preces foram ouvidas, estou convencido que o Engº Vieira Natividade, o “Papa” da subericultura mundial, deve ter dado duas voltas no túmulo, face ao incómodo da situação. E vocês:
- "Que dizem?"

domingo, 26 de junho de 2011

O pão na gíria popular


  AS PADEIRAS (MERCADO DE FIGUEIRÓ DOS VINHOS - 1898). José Malhoa (1855-1933)
Óleo sobre tela (45 x 54 cm). Colecção Particular


Esta colectânea de “dizeres” sobre o pão, fruto da nossa pesquisa em onze fontes bibliográficas distintas, mostra mais uma vez a riqueza e a vitalidade da língua portuguesa:

- Amassar-se o pão com o suor do rosto = Trabalhar no duro para ganhar a subsistência [8]
- Comer o pão alheio = Viver à custa de outra pessoa [7]
- Estar no seu pão pingado = Sentir-se muito feliz, radiante [7]
- Fazer o pão caro = Diz-se de pessoa de idade muito avançada [7]
- Fazer pão grande = Não trabalhar por indolência [7]
- Ganhar o pão com o suor do seu rosto = Ganhar a vida com o trabalho próprio [7]
- Não ver o padeiro = Não ter relações sexuais [6]
- O pão-nosso-de-cada-dia = O sustento diário = A vida quotidiana [7]
- Padaria = Nádegas = Rabo [6]
- Padeiro = Desajeitado = Trapalhão
- Padeiro = O diabo [1]
- Padeiro = Oficial de Administração Militar [4]
- Panzaria = Muitos pães (Alentejo) [11]
- Pão = Homem ou mulher bela [4]
- Pão = Indivíduo ridículo = Imbecil [1]
- Pão = Pão de centeio (Aguiar da Beira) [10]
- Pão = Murro = Soco [4]
- Pão alvo = Pão de trigo de farinha muito espuada [8]
- Pão ázimo = Pão não fermentado comido na Páscoa judaica [8]
- Pão com rosca = Casal ou amigos inseparáveis [7]
- Pão com rosca = Marido e mulher [1]
- Pão de cada dia = O sustento quotidiano [8]
- Pão de casa = Pão de amassadura doméstica [9]
- Pão de forma = Carrinha tipo furgão de caixa fechada com o formato característico deste pão [4]
- Pão de ló = Pão muito fofo de farinha de trigo, ovos e açúcar [8]
- Pão de milho = Pão fabricado com farinha de milho [8]
- Pão de quatro = Pão seccionado usado na Covilhã [8]
- Pão de rala = Pão grosseiro de que se extrai pouco farelo [8]
- Pão de sabuja = Pão que não tem mistura (Trás-os Montes) [2]
- Pão de segunda = Pão de trigo escuro [8]
- Pão de sêmea = Pão de trigo escuro [8]
- Pão de trigo da terra = Pão feito de farinha de trigo de produção madeirense [9]
- Pão do espírito = A instrução [8]
- Pão e água = Mínimo para a sobrevivência de alguém 
- Pão francês = Pão alvo = Pão de trigo [11]
- Pão meado = Mistura de milho e centeio (Beira) [8]
- Pão nas costas = Corcunda (Sabugal-Beira Alta) [5]
- Pão para peras = Dificuldades = Aflições = Atribulações [7]
- Pão para quatro = Morteiro pesado [3]
- Pão pingado = Bel-prazer (Alentejo) [11]
- Pão por Deus = Dádiva de frutas, pão e doces, feita às crianças que no dia de Todos-os-Santos andavam de saquitel ao pescoço [9]
- Pão por Deus = Esmola dada por toda a gente, no dia de Todos-os-Santos, sob a forma de pão ou fruta, etc., prIncipalmente à pequenada do povo (Porto de Mós, Alcanede) [10]
- Pão quartado = pão fabricado com quatro farinhas (trigo, milho, centeio e cevada) [8]
- Pão saloio = Pão fabricado com farinha de trigo durázio, cultivado nos arredores de Lisboa [8]
- Pão seco = Pão sem qualquer conduto [7]
- Pão sem sal = Diz-se de pessoa sensaborona, apática, abúlica [7]
- Pão, pão, queijo, queijo = com clareza e franqueza, sem deixar margem a subterfúgios ou ambiguidades [7]
- Pão-de-ló = Indivíduo efeminado [8]
- Pão-sabudo e matação = Quantidade exacta de cereal a ser paga pelos rendeiros [8]
- Pãozeiro = Indivíduo que gosta muito de pão [2].
- Pãozinho = Estudante elegante = Paposseco (Coimbra) [3]
- Pãozinho = Homem pouco esperto [3]
- Pãozinho = Indivíduo ridículo = Imbecil [1]
- Pãozinho sem sal = Diz-se de pessoa sensaborona, apática, abúlica [7]
- Pãozinho sem sal = Pessoa débil de carácter abúlico [4]
- Pãozinho sem sal = Pessoa sem carácter, incapaz de tomar uma decisão, de afirmar a sua personalidade [6]
- Perder o pão = Perder o emprego [7]
- Pôr a pão e água = Castigar alguém, dando-lhe apenas pão e água como alimento
- Ser o meu, teu, etc. pão pingado = Ser aquilo de que uma pessoa mais gosta [7]
- Ser pão-duro = Ser avarento
- Terra de pão = Terra que produz cereais [7]
- Tirar o pão (da boca) a/de alguém = Privar uma pessoa de subsistência [7]
- Vender-se como pão quente = Ter grande saída [7]

BIBLIOGRAFIA
[1] - BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Gomes de Carvalho-Editor. Lisboa, 1901.
[2] - FIGUEIREDO, Cândido de. Novo Dicionário de Língua Portuguesa. (2 vol.). Editora Portugal-Brasil Limitada, 1922.
[3] – LAPA. Albino. Dicionário de Calão. Edição do Autor. Lisboa, 1959.
[4] – NOBRE, Eduardo. Dicionário de Calão. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1986.
[5] – PINHEIRO CHAGAS, Manuel. A História Alegre de Portugal. Companhia Nacional Editora. Lisboa, 1890.
[6] – PRAÇA, Afonso. Novo Dicionário de Calão. Editorial Notícias. Lisboa, 2001.
[7] – SANTOS, António Nogueira. Novos dicionários de expressões idiomáticas. Edições João Sá da Costa. Lisboa, 1990.
[8] – SIMÕES, Guilherme Augusto. Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1993.
[9] – SOUSA. Luís de. Dizeres da Ilha da Madeira. Palavras e Locuções. Edição do autor. Funchal, 1950.
[10] - TAVARES DA SILVA, D. A. Esboço Dum Vocabulário Agrícola Regional. Separata dos Anais do Instituto Superior de Agronomia, Vol. XI. Lisboa, 1942.
[11] – THOMAZ PIRES, A. Vocabulário alemtejano. Editor – António José Torres de Carvalho. Elvas, 1913.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 26 de Junho de 2011

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Os servos da gleba e a jogatina



Fotografia de Mário da Gama Freixo (1894-1980). Algures no Alentejo dos anos 20-30 do século passado, um grupo de camponeses que comunga o uso do chapéu, já que o cancioneiro reza que: "… / O Alentejo não tem sombra, / Senão a que vem do céu."
Estão concentrados e até mesmo vidrados pelo curso da jogatina na banca de um certo jogo de azar, que era corrente nas feiras de antanho.
Uma banca de jogo pertencente a alguém, a quem convencionalmente chamam o banqueiro. Nada de mais simples. Uma mesa com rebordo e a disposição de plano inclinado. No topo superior da mesa, o rebordo é mais volumoso e aí encaixa uma espécie de funil em lata, que comunica com um buraco existente no rebordo superior da mesa.
O jogador começa por pagar ao banqueiro o seu direito ao ingresso no jogo, através da compra de cinco bolas de madeira. Depois, à vez, com a mestria e engenho possíveis, aquele que tem a pretensão de “sangrar” o banqueiro, com a sua mão mais capaz, em geral a mão dextra, lança verticalmente uma bola do topo, em direcção ao fundo do funil. Para tal e com o auxílio da ponta dos dedos, imprime-lhe um efeito giratório, que lhe permite assegurar a queda ao longo do eixo central do funil, a que se segue uma progressão dinâmica ao longo do plano inclinado. Quando é bem sucedido, a bola acaba por entrar num buraco situado na intersecção do eixo central, com o bordo inferior da banca. Parece que é fácil, mas não é. A maioria dos jogadores não tem êxito. Daí o lucro do banqueiro, na tradição usual de os banqueiros terem êxito, com a falta de êxito dos outros.
Quanto aos escassos habilidosos e sortudos, conseguiam com retorno, multiplicar o dinheiro investido em cada bola, que virtuosamente atingia com êxito, o buraco situado junto ao bordo inferior da banca.
O dinheiro envolvido poderia até não ser muito, mas a teimosia dos que persistiam em ganhar, ajudava a engordar o lucro do banqueiro.
A atracção, o deslumbramento e o desvario pelo jogo, foram desde sempre apanágio, não só das classes sociais mais elevadas, como também dos servos da gleba, crentes de que um golpe de sorte, os conduziria a uma vida melhor. Nada de mais ilusório. É precisamente o contrário. Existe a convicção generalizada de que “Jogo de mão, jogo de vilão“ e se é certo que “Ninguém joga para perder”, não é menos certo que “Jogar e nunca perder, não pode ser”, bem como “Quando alguém perde, alguém sai lucrando”, que é o mesmo que dizer que “A sorte de uns, é o azar de outros”. Por isso o povo recomenda: “Quando perderes põe-te de lado”. O pior é que “Ninguém está contente com a sua sorte” e lá vão jogando e perdendo, quando a solução é só uma: “Quem não quer perder, não jogue”, pois “O que o jogo dá, o jogo leva” e mesmo quando se ganha “A sorte acaba um dia” e depois, se não arrepiares caminho, “Jogarás, pedirás, furtarás”, o que dá aos outros a convicção de que “Na casa de quem joga, alegria pouco mora”.
Jogos como o aqui descrito eram simultaneamente jogos de perícia e jogos de azar, por vezes bastante animados, já que com a aproximação da Guarda, cada um fugia para seu lado.
As nossas Ordenações e mais tarde o Código Penal puniram o jogo, que apenas pode ser praticado duma forma regulamentada em casinos de zonas concessionadas de jogo.
Em Estremoz, nos anos sessenta do século passado ainda existiam dois banqueiros com banca como a da imagem. Eram eles o Pengalim e o Velho Painho. O seu campo de acção centrava-se na “Feira de Santiago”, na “Feira de Santo André” e na “Feira de Maio”. Naturalmente que também faziam biscates nas festas das freguesias. Eram formas de vida, já que o português é mestre do desenrascanço…

Publicado inicialmente a 23 de Junho de 2011

domingo, 19 de junho de 2011

O meu churrião


Há cerca de 15 anos, o Quintino, negociante de velharias em Bencatel, quis vender-me um churrião, em estado impecável, por vinte contos. Eu tinha as vinte milenas para lhe dar, mas o pior, era o resto. É que moro numa casa com primeiro, segundo e terceiro andar, mas garagem, nem vê-la. Ainda se tivesse garagem, punha o automóvel ao sete-estrelo e transformava a garagem em cocheira. Arrumava lá o churrião e só tinha que arranjar um muar e uma boa provisão de palha. Sim, porque um muar é um motor de combustão a palha. Mas eu não tinha garagem e a única alternativa era alugar um guindaste para pôr o churrião na varanda, situada ao nível dum terceiro andar. Mas então ficaria sem estendal para a roupa e corria o risco de por vingança, as mulheres da casa, porem a roupa a secar no meu escritório. Vocês estão-me a imaginar a escrever à secretária, por entre ceroulas, soutiens e lenços de assoar? Até me dava uma coisa ruim…Bom, foi um dos maiores desgostos da minha vida. E eu que tenho fama de ser teimoso como uma porta e não gosto de desistir de nada, desta vez tive de me dar por vencido. E lá fiquei com as vinte milenas, à espera doutra oportunidade. Entretanto, descarreguei a frustração, escrevendo sobre churriões e motores de combustão a palha. Mas eis que surge um dado novo. No passado sábado, no mercado das velharias, em Estremoz, o meu amigo, alfarrabista António Oliveira, de Évora, ofereceu-me um livrete dum carro de tracção animal. Foi um para mim, um momento de rara felicidade e, desde então, começo novamente a vislumbrar uma luz ao fundo do túnel. Será que é desta vez que vou arranjar o churrião? Como não posso mudar de casa, aguardo desde já que qualquer alma caridosa, me possa facultar uma cocheira ou uma garagem, para não sofrer nova desilusão. A esperança essa nunca se perde…

segunda-feira, 6 de junho de 2011

O carapuço na barrística popular estremocense

Fig. 1 - Pastor a fazer as migas, sentado. Peça da barrística popular estremocense, da autoria das Irmãs Flores. 


Fig. 2 - Pastor a fazer as migas, deitado. Peça da barrística popular estremocense, da autoria das Irmãs Flores. 
Fig. 3 - Matança do porco. Peça da barrística popular estremocense, da autoria das Irmãs Flores.

Quando em Dezembro passado dei à estampa a segunda edição do meu livro “BONECOS DA GASTRONOMIA”, fui questionado por um leitor, em virtude de em três peças da barrística popular estremocense, da autoria das Irmãs Flores, figurarem camponeses de barrete na cabeça, o que segundo o meu interpelador, não seria característico do Alentejo (Fig. 1, Fig. 2 e Fig. 3).
Eu na altura respondi-lhe que o barrete se usou em todo o país. Do Norte para o Sul e do Litoral para o Interior. Todavia, as imagens habitualmente veiculadas pelos nossos ranchos folclóricos, associam mais o barrete às zonas piscatórias (Póvoa de Varzim, Aveiro, Nazaré), bem como ao Ribatejo.
Hoje tenho oportunidade de esclarecer o assunto duma forma mais aprofundada duma tripla maneira, com recurso a referências etnográficas, de literatura oral e fotográficas, que passo de imediato a referir.
No Alentejo, o vestuário do trabalhador do campo, incluía em 1896, em vez do chapéu e principalmente de Inverno, o barrete, também chamado gorro (Tolosa, Barrancos) ou carapuço (Estremoz, Alandroal, Montemor-o-Novo) [1].
O cancioneiro popular alentejano refere o uso do gorro preto:



“Ó rapaz da cinta verde,
Ó rapaz do gorro preto,
Vou cantar uma cantiga,
E vai ser a teu respeito.” [2]



“Ó rapaz do gorro novo,
Ó rapaz do gorro preto,
A respeito do que cantam,
Preciso é falar com jeito.” [2]



“Ó rapaz do gorro preto,
Volta-o de dentro p’ra fora;
Inda estou do mesmo lado,
Inda me não volto agora.” [2]



“Ó rapaz do gorro, gorro.
Ó rapaz do gorro preto,
A respeito de namoro
É preciso muito jeito.” [2]



O mesmo cancioneiro refere igualmente o uso do gorro verde:



“Ó fêra de S. Mateus,
Onde se vendem pinhões,
Anda agora muito em moda
Gorros verdes à Camões.” [2]



“Ó rapaz do gorro verde,
Quem te mandou cá entrar?
Se não cantas ‘ma cantiga,
Já te podes retirar.” [2]



“Eu venho detrás da serra
Com o meu gorro à campina;
Quem é mestre também erra,
Quem erra também se ensina.” [2]



O uso do gorro preto ou vermelho, está de resto referenciado como tradição popular nesta região. [3]
A nível fotográfico, o uso do barrete no Alentejo, está documento por bilhetes-postais ilustrados referentes a actividades agro-pastoris: lavra e sementeira (Fig. 4), apanha da azeitona (Fig. 5) e maioral e ajuda, figuras da pastorícia alentejana (Fig. 6).
Julgamos que com estas considerações tenha ficado demonstrado duma forma insofismável, o uso do barrete no Alentejo, o que legitima as representações da barrística popular estremocense que o utilizam. Caso das peças citadas: “Pastor a fazer as migas sentado”, “Pastor a fazer as migas deitado” e “Matança do porco”. Barristas como Mariano da Conceição, Liberdade da Conceição, Sabina Santos, Quirina Marmelo, Irmãs Flores e Fátima Estróia, cobriram a cabeça destas figuras com o tradicional barrete. Já José Moreira, substituiu nas mesmas figuras e a partir de uma certa altura, o barrete pelo tradicional chapéu aguadeiro, conforme ilustramos com a “Matança do porco" (Fig. 7), de sua autoria.

BIBLIOGRAFIA
[1] – LEITE DE VASCONCELLOS, J. Etnografia Portuguesa, Vol. VI. Imprensa Nacional-Casa da Moeda. Lisboa, 1975.
[2] - THOMAZ PIRES, A. Cantos Populares Portuguezes. Vol. IV. Typographia e Stereotipía Progresso. Elvas, 1912.
[3] - THOMAZ PIRES, A. Tradições Populares Transtaganas. Tipographia Moderna. Elvas, 1927.
 fig. 4 - A lavra e a sementeira no Alentejo, no início do século XX. Postal edição Malva (Lisboa). 
 Fig. 5 - A apanha da azeitona no Alentejo, no início do século XX. Postal edição Tabacaria Gonçalves (Lisboa).
Fig. 6 - Maioral e ajuda, figuras da pastorícia alentejana, no início do séc. XX. Postal edição Malva (Lisboa).
Fig. 7 - Matança do porco. Peça da barrística popular estremocense, da autoria de José Moreira.

sábado, 4 de junho de 2011

Estremoz – Mercado das Velharias




À minha amiga Manuela Mendes:

Dizem que eu sou um respigador nato, um cão pisteiro, um farejador de coisas velhas. Talvez seja algo de epidérmico, se não mesmo genético. E perante os meus olhos nascem coisas que parece que estavam ali circunspectas, à espera que eu me abeirasse delas. Ainda há dias foi a 1ª edição da "SUBERICULTURA" (1950) e a nova edição (1942) de "POMARES" do Prof. Vieira Natividade, que ali comprei ao preço da uva mijona.
Para fechar com chave de ouro, essa manhã de sábado, comprei ainda ao preço da dita uva, uma "ANTOLOGIA DE FIALHO DE ALMEIDA", organizada por Manuel da Fonseca e com extensa dedicatória autografa, deste último. A minha biblioteca já incorporava outros livros com dedicatórias autógrafas de outros grandes escritores portugueses, nomeadamente alentejanos, como o Conde de Monsaraz ou António Sardinha, mas quanto ao Manuel da Fonseca, o nosso "Manel", estava às escuras.
Quando as minhas mãos nervosas, tactearam o livro descoberto pela cirurgia do meu olhar, senti uma espécie de calafrio na espinha, seguido dum deslumbramento como terão porventura sentido os nossos navegadores, quando aportarem ao novo mundo.
À semelhança do que acontecia com o meu vizinho Sebastião da Gama, que conheci ainda eu era uma criança, sábado é o dia mais belo da semana. Não troco por nada, a ida ao mercado de sábado.
Num dos seus poemas que relembro de memória, o Manel diz: "Domingo que vem, vou fazer as coisas mais belas que um homem pode fazer na vida". Pois eu, que sou "sabadeiro", digo para mim mesmo: "Sábado que vem vou comprar as coisas mais belas que um homem pode comprar na vida" e de sexta para sábado, mal durmo, farto-me da dar voltas na cama, à espera que o dia nasça. Então ergo-me, de súpalo e com toda a adrenalina dos meus sessenta e cinco anos, aí vou eu, respigador nato, cão pisteiro, farejador de coisas velhas, em passo acelerado, a caminho do mercado de sábado, em Estremoz. E quando muito mais tarde, perto da hora de almoço, regresso a casa com o estômago vazio, a minha alma vai cheia. E aguenta-se uma semana, até ao sábado que vem.
Publicado inicialmente em 4 de Junho de 2011