terça-feira, 17 de maio de 2011

Os talêgos (3ª edição)


Esta é a 3ª edição do post, cuja 1ª edição é de 27 de Fevereiro de 2010, a que se seguiu uma 2ª edição a 7 de Novembro de 2010. Novamente foi ampliado com considerações de natureza linguística e de literatura oral, bem como pela adição de seis novas ilustrações e de mais três fontes bibliográficas.


APONTAMENTOS ETNOGRÁFICOS
OS talêgos eram sacos multicolores, de tamanho variável, confeccionados pelas mulheres com as sobras dos panos usados na confecção de saias, blusas e aventais ou mesmo de roupa velha que se tinha deixado de usar. Tinham um cordão ou nastro que corria dentro de uma bainha e que os permitia fechar. Podiam ser forrados ou ser singelos. Alguns eram rebuscados na sua concepção e manufactura, a qual podia incluir pompons e borlas. Outros haviam que eram simples, sendo alguns, até, manufacturados com um único tecido.
Os talêgos eram o providencial modo de transportar aquilo que de que precisávamos. Ia-se às compras de talêgo, o qual era lavado sempre que necessário. Havia um talêgo para ir aviar a mercearia e outro para ir ao pão, bem como outro para ir ao grão, ao feijão ou ao milho. Usávamos também um talêgo para guardar os magros tostões que tínhamos e ainda outro para guardar a existência usada no jogo do botão.
Os camponeses guardavam as sementes em talêgos e os moleiros recebiam talêgos de trigo, centeio ou milho, que devolviam com farinha, após terem subtraído a maquia devida à moagem. Era também nos talêgos que se levava comida para o local de trabalho.
Em nossas casas, nas arcas, cómodas e guarda-fatos havia pequenos talêgos com alfazema, que pelo seu cheiro afugentava traças, moscas, mosquitos e demais insectos. Nesses mesmos locais, existiam por vezes talêgos maiores, nos quais se acondicionava a roupa mais delicada ou mais antiga e que inspirava mais cuidados de preservação.
A pobreza, a falta de oportunidades de vida, a adversidade do clima, as catástrofes, a política repressiva, fizeram com que ao longo dos tempos, o povo português tivesse de emigrar, visando a melhoria das suas condições de vida. Para transportar os seus bens, a maioria das vezes, uma parca bagagem, lá estavam o talêgo e mais tarde, a mala de cartão.
O talêgo era a embalagem reciclável inventada pelo sabedoria popular, que sempre soube encontrar formas criativas de lutar contra a adversidade e a falta de meios. Depois de puído e roto pelo uso e pelas lavagens sucessivas, era remendado por mãos hábeis de mulheres, que assim lhe prolongavam a longevidade. E mesmo depois de serem abatidos ao serviço como “talêgos”, continuavam ter préstimo. Serviam de rodilha ou de esfregão, até tal ser possível. Só depois se deitavam fora, para serem degradados pela terra-mãe e renascerem sob outra forma.
Actualmente, a luta contra o desperdício e o consumismo, pela melhoria da nossa qualidade de vida e pela salvação do planeta, passa pela implementação da política dos 3 RRR:
 - Reduzir o lixo que se produz;
- Reutilizar as embalagens mais que uma vez;
- Reciclar os componentes do lixo, separando-os na origem.


Por isso impõe-se o regresso da utilização do talêgo na nossa vida quotidiana, sempre que formos às compras. O planeta e a melhoria da nossa qualidade de vida assim o exigem.
Não queremos abandonar o tema que temos estado a abordar, sem tecer algumas considerações de natureza linguística, bem como sublinhar igualmente algumas notas de literatura oral:
CONSIDERAÇÕES DE NATUREZA LINGUÍSTICA
Em primeiro lugar convém esclarecer que “talêgo” é a forma regionalista do substantivo “taleigo”, devida a um fenómeno fonético que consistiu na monotongação do ditongo “ei”, que se transformou assim em “ê”, o que teve repercussões no grafismo da palavra. [10]
Nos dicionários consultados, que abrangem o período de 1721[4] a 2001[2], existem verbetes sobre as palavras “ataleigar”, “taleiga”, “taleigada”, “taleigão”, “taleigo” e “taleiguinho”. Vejamos o que sobre estas palavras dizem os diferentes dicionários:
ATALEIGAR - Puxar as calças para cima da cintura. [9] (1922)
ATALEIGAR – Encher muito. [25] (1993)
TALEIGA – Substantivo feminino. De acordo com os dicionaristas consultados, designa:
- Saco pequeno. Uma taleiga de trigo são quatro alqueires. [4] (1721)
- Saco pequeno. Uma taleiga de trigo são quatro alqueires. [3] (1789)
- Saco, de maiores ou menores dimensões, e destinado especialmente à condução de cereais para os moinhos e da farinha que nestes se fabrica. Antiga medida para líquidos e cereais. (Do lat. Talica) [8] (1913).
- Saco pequeno e largo, destinado à condução de cereais para os moinhos e da farinha que nestes se fabrica. Antiga medida de azeite, equivalente a dois cântaros. Antiga medida de trigo, equivalente a quatro alqueires. (Do latim “talica”) [12] (s/d)
- Saco, bolsa, surrão. “Taleiga” é sinónimo de “teiga”. (Do árabe “ta’lîqâ”, saco). [15] (1977)
- Saco, pequeno e largo, destinado à condução de cereais para os moinhos e da farinha que nestes se fabrica. Antiga medida de azeite, equivalente a dois cântaros. Antiga medida de trigo, equivalente a quatro alqueires. [24] (1988)
- Saco pequeno e largo. Antiga medida para líquidos e cereais (Do árabe “ta'liqa”, saco) [19] (1996)
- Saco pequeno e largo usado normalmente no transporte de cereais e de farinha. Medida antiga de azeite, equivalente a dois cântaros. Medida antiga de trigo, equivalente a quatro alqueires. (Do árabe “ta'liqa”, saco.) [2] (2001)
- Saco pequeno e largo. Antiga medida para líquidos e cereais. (Do árabe “ta'lïqa”, saco). [20] (s/d)
TALEIGADA - Substantivo feminino. De acordo com os dicionaristas consultados:
- Uma taleigada de azeite, são dois cântaros de azeite, medida de Lisboa. [4] (1721)
- A porção que se leva numa taleiga. Uma taleigada de azeite, são dois cântaros de azeite, medida de Lisboa. [3] (1789)
- O que uma taleiga pode conter. Taleiga cheia (De taleiga). [8] (1913).
- O que uma taleiga pode conter. Taleiga cheia: uma taleiga de trigo. [12] (s/d)
- O que uma taleiga pode conter. Taleiga cheia. [24] (1988)
- Porção que enche uma taleiga ou um taleigo (De taleiga ou taleigo). [19] (1996)
- Conteúdo de uma taleiga. Porção que enche uma taleiga (De taleiga + suf. -ada). [2] (2001)
- Porção que enche uma taleiga ou um taleigo (De taleiga ou taleigo+-ada). [20] (s/d)
TALEIGÃO – Adjectivo e substantivo masculino. O mesmo que latagão (indivíduo robusto, forte, desempenado , e geralmente novo). [12] (s/d)
TALEIGO - Substantivo masculino. De acordo com os dicionaristas consultados:
- É um saco pequeno, como aquele em que o soldado leva às costas, pão de munição ou outra virtualha. Um taleigo leva dois alqueires de trigo (Deriva do castelhano “Talega” e este segundo Covarrubuias deriva do Grego). [4] (1721)
- Saco estreito e longo que leva dois alqueires. [3] (1789)
- Taleiga pequena. [8] (1913).
- Taleiga pequena. Saco. Cesto onde se transporta comida. O mesmo que barça. Saco onde se metia o falcão, na caça de altanaria. Antiga medida para secos, equivalente a dois alqueires. Víveres de reserva, para três dias, guardados num saco prlos homens de armas das hostes em campanha na Idade Média. O saco que continha esses víveres. [12] (s/d)
- Substantivo masculino e adjectivo, diminutivo de taleigão. [12] (s/d)
- Taleiga pequena. Saco. Cesto onde se transporta comida: O mesmo que barca. Saco onde se metia o falcão, na caça de altanaria. Antiga medida para secos, equivalente a dois alqueires. Víveres de reserva, para três dias, guardados num saco pelos homens de armas das hostes em campanha, na Idade Média. O saco que continha esses víveres. [24] (1988)
- Saco estreito e comprido. Taleiga pequena. (De taleiga) [19] (1996)
- Saco pequeno, estreito e comprido: Taleiga de dimensões reduzidas. Cesto usado para transportar comida. Medida antiga, equivalente a dois alqueires, usada para secos. Saco que era usado na caça de altanaria para levar o falcão. Saco que continha a comida para três dias, usado pelos homens de armas na Idade Média. Víveres contidos nesse saco. [2] (2001)
- Saco estreito e comprido. Taleiga pequena (De taleiga). [20] (s/d)
TALEIGUINHO – Substantivo masculino. Taleigo pequeno. (De taleigo e sufixo diminutivo -inho). [12] (s/d)
NOTAS DE LITERATURA ORAL
De acordo com o cancioneiro popular:
“Tenho um saco de cantigas,
E mais uma taleigada:
O saco é p’ra esta noite,
Taleiga p’ra madrugada.” [18]
A palavra “Taleigo” não figura, pelo menos actualmente na Onomástica Portuguesa como nome próprio. Assim o revela a consulta à lista dos vocábulos admitidos como nomes próprios, disponibilizada pelo Instituto dos Registos e do Notariado [13]. Todavia, a palavra é conhecida como sobrenome de nome próprio. A referência mais antiga que conhecemos figura num documento simples da Chancelaria Régia de D. Afonso V (liv. 14, fl. 85v), datado de 13 de Junho de 1466, o qual certifica que o monarca perdoou os 9 meses de degredo no couto de Marvão a Mem Rodrigues Taleigo, lavrador, morador em Évora Monte, o qual pagou 600 reais brancos para a Piedade. [6]
No Alentejo são conhecidas alcunhas em que figura a palavra “taleigo” ou palavras dela derivadas [22]:
- TALEGA - o visado faz comentários do estilo: "Grande talega!" (Marvão).
- TALEGUEIRO – o atingido anda sempre com um taleigo (Sines).
- TALEIGADAS (Avis).
- TALEIGO - Alcunha concedida a um sujeito baixo e gordo (Cuba e Portel).
- TALEIGUINHO - o receptor pendurou um taleigo num sobreiro (Santiago do Cacém) ou então é um indivíduo de baixa estatura (Aljustrel e Portei).
- TALEIGUINHO DA BUCHA - o receptor é baixo e gordo (Moura).
- TALEIGUINHO DAS ISCAS – o receptor quando ia à caça, levava sempre um taleiguinho com iscas (Aljustrel).
O adagiário português relativo ao taleigo é escasso:
- “Fazenda em duas aldeias, pão em duas talegas” [4]
- “O fidalgo, o galgo e o talego de sal, junto do fogo os hão de achar” [4]
- “O taleigo de sal quer cabedal” [5]
São conhecidas as seguintes imagens metafóricas usadas na gíria portuguesa:
Dar ao taleigo = Falar = Dar à língua = Parolar = Conversar [24], [25]
Dar aos taleigos = Parolar = Dar à língua [8]
Dar ao(s) taleigo (s) = Conversar demoradamente [23]
Dar ao(s) taleigo (s) = Dar á língua [19]
Dar ao(s) taleigo(s) = Conversar = Dar à língua [2]
No calão:
Talega = Grande Porção = Grande Peso = Saco de pano [25]
Taleiga = Carga excessiva = Grande quantidade [17]
Taleiga = Coisa Grande [14]
Taleiga = Naco = Pedaço de haxixe [21]
Taleiga = Saco Grande [25]
Taleigão = Latagão [25]
Taleigo = Prisão” [14], [25]
Taleigo = Saco pequeno [1], [25]
Na toponímia:
TALEGA = Freguesia do bispado de Elvas [16]
TALEIGÃO = Freguesia do concelho e distrito de Goa, Índia Portuguesa.
QUINTA DA TALEIGA = Lugar do concelho de Portalegre.
Os pregões usados pelos pregoeiros eram outra forma de literatura oral. Através deles se proclamava qualquer coisa, como por exemplo, aquilo que se tinha para vender. Era o caso do vendedor de picão que nos anos cinquenta do século passado percorria, todo enfarruscado, as ruas de Elvas, quando o frio de rachar aconselhava o uso da braseira. O pregão:
“Ah! Bom pi-cão”! "
anunciava a preciosa e sazonal mercadoria contida em taleigos transportados no dorso de pacientes asnos.
NOTA FINAL
Depois desta "taleigada" de considerações suscitadas pelo substantivo "talêgo" em termos linguísticos e de literatura oral, achamos por bem atar os cordões e dar o presente texto por terminado. Pelo menos por agora.
BIBLIOGRAFIA
[1] - BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Gomes de Carvalho- Editor. Lisboa, 1901.
[2] – ACADEMIA DAS CIÊNCIAS DE LISBOA. Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea. II Volume. Editorial Verbo. Lisboa, 2001.
[3] – BLUTEAU, Raphael; MORAES SILVA, António de. Diccionario da Língua Portugueza. Tomo Segundo. Officina de Simão Thaddeo Ferreira. Lisboa, 1789.
[4] – BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino. Vol. V. Officina de Pascoal da Sylva. Lisboa, 1721.
[5] – DELICADO, António. Adagios portuguezes reduzidos a lugares communs / pello lecenciado Antonio Delicado, Prior da Parrochial Igreja de Nossa Senhora da charidade, termo da cidade de Euora. Officina de Domingos Lopes Rosa. Lisboa, 1651.
[6] – DIRECÇÃO-GERAL DE ARQUIVOS [http://digitarq.dgarq.gov.pt/default.aspx?page=listShow&searchMode=as&sort=id&order=ASC]
[7] - FERREIRA, Diogo Fernandes. Arte da Caça de Altaneria. Vol. I. A Liberal. Lisboa, 1899.
[8] - Figueiredo, Cândido de. Novo Diccionário da Língua Portuguesa (2 vol.). Clássica Editora. Lisboa, 1913.
[9] - Figueiredo, Cândido de. Novo Dicionário de Língua Portuguesa. (2 vol.). Editora Portugal-Brasil Limitada, 1922.
[10] – FLORÊNCIO, Manuela. Dialecto Alentejano – contributos para o seu estudo. Edições Colibri. Lisboa, 2001.
[11] - GAMA, Eurico. Os Pregões de Elvas. Edição de Álvaro Pinto. Lisboa, 1954.
[12] – GRANDE ENCICLOPÉDIA PORTUGUESA E BRASILEIRA. Vol. 30. Editorial Enciclopédia, Limitada. Lisboa, s/d.
[13] – INSTITUTO DOS REGISTOS E DO NOTARIADO. Vocábulos admitidos e não admitidos como nomes próprios [http://www.irn.mj.pt/sections/irn/a_registral/registos-centrais/docs-da-nacionalidade/vocabulos-admitidos-e/downloadFile/file/2010-09-30_-_Lista_de_nomes.pdf?nocache=1287071845.45]
[14] – LAPA. Albino. Dicionário de Calão. Edição do Autor. Lisboa, 1959.
[15] – MACHADO, José Pedro Machado. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Vol. 5. 3ª edição. Livros Horizonte. Lisboa, 1977.
[16] - NIZA, Paulo Dias de. Portugal Sacro-Profano. Parte II. Oficina de Miguel Manescal da Costa. Lisboa, 1768.
[17] – NOBRE, Eduardo. Dicionário de Calão. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1986.
[18] - PIRES, A. Tomaz. Cantos Populares Portuguezes. Vol. IV. Typographia e Stereotipía Progresso. Elvas, 1912.
[19] - PORTILLO, Lorenzo. Grande Dicionário Enciclopédico Ediclube. Ediclube. Alfragide, 1996.
[20] – PORTO EDITORA. Grande Dicionário. Porto Editora. Porto, 2004.
[21] – PRAÇA, Afonso. Novo Dicionário de Calão. Editorial Notícias. Lisboa, 2001.
[22] – RAMOS, Francisco Martins e SILVA, Carlos Alberto da. Tratado das Alcunhas Alentejanas. 2ª edição. Edições Colibri. Lisboa, 2003.
[23] – SANTOS, António Nogueira. Novos dicionários de expressões idiomáticas. Edições João Sá da Costa. Lisboa, 1990.
[24] – SILVA, António de Morais. Novo Dicionário Compacto da Língua Portuguesa. Vol. V. 4ª edição. Editorial Confluência. Mem Martins, 1988.
[25] – SIMÕES, Guilherme Augusto. Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1993.
[26] - VITERBO, Joaquim de Santa Rosa de. Elucidário das Palavras, Termos e Frases. Edição Critica de Mário Fiúza. Vol. 2. Livraria Civilização. Porto, 1966.


VIAJANTES A SEREM RECEBIDOS NUMA ESTALAGEM. O que está apeado transporta um taleigo suspenso de um pau. Iluminura do  “Tacuinum  Sanitatis” (Finais do séc. XIV), livro medieval sobre o bem-estar, com base na al Taqwin Taqwin تقوين الصحة ("Quadros de Saúde"), tratado do século XI da autoria do médico árabe Ibn Butlan de Bagdá,  o qual pertence à Biblioteca Casanatense, em Roma.
ABRIL - FÓLIO 9v, Iluminura do “Livro de Horas de D. Manuel “, Séc. XV. No pé de página, à beira-rio, duas levadas movem duas azenhas. À esquerda da do lado esquerdo uma mulher aproxima-se, transportando à cabeça um talêgo com grão para ser moído, o mesmo se passando do lado direito, onde um homem carrega um talêgo de grão às costas. Simultâneamente um homem montado num burro com talêgos de farinha, parece fazer-se ao caminho.
MARÇO - Iluminura do “Livro de Horas do Duque de Berry” (Século XV) manuscrito com iluminuras dos irmãos Paul, Jean et Herman de Limbourg, conservado no Museu Condé, em Chantilly, na França. Na iluminura estão representados trabalhos agrícolas. No segundo plano, à direita, um camponês dobrado sobre um taleigo, retira daí sementes, que de seguida irá semear. Ainda no segundo plano à esquerda, um camponês que poda a vinha, tem junto a si, no chão, uma enxada, um chapéu e um taleigo.

OUTUBRO - Iluminura do “Livro de Horas do Duque de Berry” (Século XV) manuscrito com iluminuras dos irmãos Paul, Jean et Herman de Limbourg, conservado no Museu Condé, em Chantilly, na França. Na iluminura estão representados trabalhos agrícolas. Em primeiro plano, um camponês semeia a terra. Próximo de si, um taleigo com sementes.
  
PADARIA. COLÓNIA SUÍÇA DE CANTAGALO – BRASIL (1835). Jean Baptiste Debret (1768-1848). Pormenor de Litografia. Firmin Didot Frères,  Paris.
O EMIGRANTE (1918). José Malhoa (1855-1933). Óleo sobre tela ( 80 x 104 cm). Colecção particular.
Ilustração de Alfredo Roque Gameiro (1864 - 1935) para “As Pupilas do Senhor Reitor”, de Júlio Diniz (1839-1871).
OS EMIGRANTES (1926). Domingos Rebelo (1891 - 1975). Óleo sobre tela. Museu Carlos Machado, Ponta Delgada.
TIPOS SALOIOS (MERCÊS-RINCHOA). Leal da Câmara (1876-1948). Ilustração de bilhete-postal editado pela Casa-Museu Leal da Câmara, Rinchoa.
 
SALOIOS EM LISBOA - Stuart Carvalhais (1887-1961). Tinta da China aguarelada sobre papel (25 x 30 cm). Colecção particular.
MOLEIRO COM DOIS BURROS CARREGADOS DE TALEIGOS – Capa da revista “Ilustração Portuguesa” nº 730 de 16 de Fevereiro de 1930.
SERRA DO CAMULO - MULHER COM CAPUCHA (1937). Aguarela de Alberto de Souza (1880-1961), reproduzida em bilhete-postal ilustrado nº 17 da "Série B" - Costumes Portugueses, tendo impresso no verso um selo do tipo "TUDO PELA NAÇÃO" de $25 (azul) ou de 1$00 (vermelho) e emitido pelos CTT, em 1941.

DENTRO DO MOINHO – aguarela de Raquel Roque Gameiro Ottolini (1889-1970).
CONFRATERNIZAÇÃO INFANTIL – Laura Costa. Desenho policromo reproduzido em bilhete-postal de Boas Festas dos CTT, emitido em 1944 com selo de $30 do tipo Caravela e impresso em off-set na litografia Maia, no Porto.

domingo, 15 de maio de 2011

O sentido da visão: Adivinhas

SEM TÍTULO – CEIFEIRA.
Manuel Ribeiro de Pavia (1910-1957).
Desenho a lápis sobre papel (26,5x35 cm).
Colecção particular.

PRÓLOGO
As adivinhas são enigmas formulados pelo povo e que têm sido transmitidas de geração em geração, integrando assim a nossa literatura oral.
Para além de constituírem um passatempo familiar que ajudava a passar as longas noites de Inverno, elas desempenharam sempre um papel educativo, visto estimularem a imaginação criadora, fomentarem o desenvolvimento da inteligência, treinarem a memória e desenvolverem o poder de observação. Para além de tudo isso, oferecem um interesse, vincadamente etnográfico, dado terem sido, na sua maioria, formuladas num contexto de ruralidade, abordando por isso a temática desse universo.
Localizámos cerca de quatro dezenas de adivinhas no âmbito do sentido da visão e delas seleccionámos uma vintena, que estudámos e sistematizámos em dois sub-grupos: “Os olhos” e “A luz e as suas fontes”.

OS OLHOS
Os olhos são os órgãos sensoriais da visão. Algumas adivinhas têm como solução: “O olho”:

“O que é, que é,
Uma caixinha de bem-querer,
Abre e fecha sem ranger?” [5]

“Que é do tamanho dum tostão,
abre e fecha sem cordão?” [6]

Outras têm como resultado: “Os olhos”:

“Juntos vivemos e andamos
Vestindo trajos iguais.
E sendo amigos, jamais
Ver um ao outro estimamos:
Inda que mui longe vamos
Por solitário caminho,
Nenhum sai do pátrio ninho:
Por úteis ambos nos temos,
Mas o que juntos fazemos
Faz qualquer de nós sozinho.” [1]

“Altas janelas,
Que abrem e fecham,
Sem bulir nelas.” [5]

“Altos palácios,
Lindas janelas,
Abrem-se e fecham,
Ninguém mora nelas.” [2]

Algumas têm desfechos mais complexos. Por exemplo: “Os olhos: as pestanas e as meninas-dos-olhos”:

“O que é, que é,
pêlo com pêlo
e a menina fica no meio?” [8]

Outras, têm como decifração “As meninas-dos-olhos”:

“Quais são as meninas
Que, quanto mais belas,
Mais longas cortinas
Põem nas janelas?” [7]

Outras, ainda, têm um desenlace mais vasto, como por exemplo: “Pés, olhos, dedos, dentes e garganta”:

“São dois andantes,
Dois viajantes,
Dez arrecadantes,
Vinte oito moleiros
E uma azenha a moer.” [2]

Finalmente, outras têm como resolução o “Abrir dos olhos”:

“Adivinhar, adivinhar.
Qual é a coisa primeira
Que se faz ao acordar?” [2]

A LUZ E AS SUAS FONTES
O mecanismo da visão tem por base “A luz”, a qual é solução de algumas adivinhas:

“Mais veloz do que eu, ninguém;
Sou linda como as estrelas;
Sem ser nau ando com velas,
De graça todos me têm,
Sou origem das janelas.” [2]

“É do tamanho de uma aresta
E até na casa d’el-rei presta.” [2]

De registar igualmente nas respostas, a presença do contrário da luz, ou seja: “A escuridão”:

“Qual é a coisa, qual é ela
Quanto maior é
Menos se vê?” [3]

Uma fonte de luz que marca forte presença no desenredo é “O sol”:

“Qual é a coisa, qual é,
Que quanto mais se mira,
Menos se vê?” [6]

“Procuram-me muitas vezes,
Tenho estima, o leitor creia,
Mas, se alguém olha para mim,
Faz-me logo cara feia.” [7]

O sol é comparado a Deus, porque “Ninguém o pode olhar”:

“Em que se parece Deus com o Sol?” [2]

São múltiplas as adivinhas cujo resultado é: “A luz da candeia”:

“Qual é cousa, qual é ela,
Do tamanho de uma abelha
E enche a casa até à telha?” [4]

“Qual é a cousa, qual é ela,
Do tamanho duma bolota
E enche a casa até à porta?” [4]

“Qual é cousa
Que cabe dentro duma rasa
E enche a casa até à porta?” [4]

De resto, localizámos uma, cuja resolução é: “A vela, o pavio e a luz”:

“O pai é coto,
O filho é crespo,
O neto é loiro.” [3]

Por fim, assinalámos outra, cuja conclusão é: “A lâmpada eléctrica de incandescência”:

“O que é, que tem a barriga de vidro e a tripa de arame?” [6]

EPÍLOGO
Mais uma vez, agora dentro do contexto limitado “As adivinhas” e nele no âmbito restrito do “Sentido da visão”, foi possível concluir a riqueza da nossa tradição oral, a qual mais do que nunca, urge preservar, como reforço da nossa identidade cultural nacional, em situação de risco numa época de frenética globalização.

BIBLIOGRAFIA
[1] – CURVO SEMEDO. Composições Poéticas. Parte II (1903); Parte III (1817). Lisboa.
[2] - GUERREIRO, M. Viegas. Adivinhas Portuguesas. Fundação Nacional Para A Alegria No Trabalho. Lisboa, 1957.
[3] – LEITE DE CASTRO. “Adivinhas” in Revista de Guimarães, vol. I, nº 3 (1884).
[4] – LEITE DE VASCONCELLOS, José. Tradições Populares de Portugal. Porto, 1882.
[5] - LIMA, Augusto Castro Pires de. O Livro das Adivinhas. Editorial Domingos Barreira. Porto, 1943.
[6] - LIMA, Fernando de Castro Pires de. Qual é a coisa qual é ela? Portugália Editora. Lisboa, 1957.
[7] – MARIA RAQUEL. Agenda Doméstica para 1957. Porto Editora, Porto, 1957.
[8] - MOUTINHO, José Viale. Adivinhas Populares Portuguesas.6ª edição. Editorial Notícias. Lisboa, 2000.
[9] - VIEIRA BRAGA, Alberto. “Folclore” in Revista de Guimarães, vol. XXXIII (1933); vol. XXXIV (1934).

Hoje é dia de penico


Fig.1 - Bilhete-postal ilustrado de fabrico português, do início do séc. XX.


LER AINDA


PRÓLOGO
Há mais de um ano, que seareiros do humor, resolvemos lavrar os terrenos do Facebook com as araveças da nossa incomodidade. O nosso objectivo, coroado de êxito, foi agitar as águas da blogosfera, onde nem tudo o que luz é oiro e onde proliferam, infelizmente, exemplos de mau gosto, de vazio cultural ou o que é bem pior ainda, de atentados à inteligência de cada um.
É certo que também há quem reme contra a maré do facilitismo e no uso legítimo da liberdade de expressão, procure ser criativo sem ser buçal, bem como ser irreverente sem ser imoral. É esse o terreno da nossa luta.
Ao editarmos então o post “À laia de ode ao penico”, elevámos este acessório à categoria de monumento à defecação e proclamámos a necessidade da sua divulgação e estudo nos seus variados aspectos, a fim de que possa ser preservado.
Voltamos hoje à liça, para terçar armas pela nossa dama: O PENICO PORTUGUÊS. As armas escolhidas foram as múltiplas vertentes da nossa literatura oral, tão gratas ao imaginário e à cultura populares.

A LÍNGUA PORTUGUESA É RICA
“Penico” é um substantivo masculino, de origem obscura [5]. De acordo com os dicionaristas designa o recipiente em louça, ferro, plástico, etc., usado para urinar e defecar, no qual se depõem urina e fezes.
O substantivo penico tem inúmeros sinónimos: bacia de cama, bacio, bispote, calhandro, doutor, mictório, pote, senhor doutor, urinol, vaso de comadre, vaso de noite, vasaréu e viasca. Por aqui se vê, que até a nível de penicos, a língua portuguesa é rica. E a confirmá-lo, faremos uma travessia breve pela nossa literatura oral.

ADAGIÁRIO
Talvez porque o penico se tenha tornado obsoleto ou, pelo menos, tenha caído em desuso, não é vasto o respectivo adagiário. Todavia, ele existe como marca de identidade cultural:

- "Braga é o penico do céu."
- "Não há penico sem tampa.
- "Oleiro que faz o penico, faz logo a tampa.2
- "Penico de barro não cria ferrugem."
- "Penico de barro não dá ferrugem."
- "Penico que muitos mexem acaba fedendo."
- "Penico também é branco."
- "Quem não tem cachorro, caça com gato; Quem não tem penico, caga no mato."

CANCIONEIRO POPULAR
Os dois únicos registos que temos e que referem implicitamente o penico, são as quadras que legendam os bilhetes-postais ilustrados, de fabrico português, que ilustram o presente post. A primeira refere-se à fig. 1 (ESSENCIA DE PENICO):

“Lula chorando por mais
Fresca caca da mamã,
Solta berros e dá ais,
Pede outra dose, amanhã.”

A segunda refere-se à fig. 2 (DESILUSÃO):

“Que coisa tão fina
E tão cheirosa…
Cheira a albumina
É albuminosa”

CALÃO
Ainda que não abundem, existem termos de calão, envolvendo o vocábulo “penico” ou um vocábulo dele derivado:

Mijar fora do penico = Sair da linha = Desrespeitar as regras [1]
Pedir penico = Acovardar-se = Render-se = Desistir por admitir ter sido vencido [7]
Penicada = Penico cheio de urina e dejectos [8]
Penicada = Troça do grau aplicado aos caloiros na Universidade de Coimbra [4]
Peniqueira = Criada de quarto [3]
Peniqueira = Mesa de cabeceira onde se guarda o penico
Chiça penico! = Caraças! [1]

ADIVINHAS
Apenas conhecemos uma adivinha, cuja solução óbvia é "O penico":

“Verde por fora, amarelo por dentro,
Tem uma asa e é fedorento.” [9]

Quanto a esta:

“Que é, que é, que dois homens podem fazer ao mesmo tempo e não é possível a duas mulheres?” [2],

o desenlace óbvio é “Urinar num penico”.

LENGALENGAS
Conhecemos duas lengalengas populares que fazem referência ao penico. Uma delas é conhecida por:

“Varre, varre vassourinha”

“Varre, varre vassourinha
Varre bem esta casinha
Se varreres bem dou-te um vintém
Se varreres mal dou-te um real
Pico pico saltarico
Salta a pulga p'ró penico
Do penico p'rá balança
Disse o rei que fosse à França
Buscar o D. Luís
Que está preso pelo nariz
Os cavalos a correr
As meninas a aprender
Qual será a mais bonita que se irá esconder?”

Quanto à outra, é conhecida por:

“Zé Godinho"

Lá vem o Zé Godinho a cavalo no burrinho,
O burrinho é fraco, a cavalo num macaco,
O macaco é valente, a cavalo numa trempe,
A trempe é de ferro, a cavalo num rodelo,
O rodelo é de sola, a cavalo numa bola,
A bola é vermelha, a cavalo numa telha,
A telha é de barro, a cavalo num cocharro,
O cocharro é de cocha, a cavalo numa floucha,
A floucha é de bico, a cavalo num penico,
O penico é vidrado, a cavalo num cajado,
O cajado é de pinho
E lá vai o Zé Godinho a cavalo no burrinho.”

ALCUNHAS ALENTEJANAS
Também no âmbito das alcunhas alentejanas, algumas têm a ver com o penico:
PENICO – Alcunha identificada em Castro Verde, Estremoz, Monforte, Moura e Ourique: [6]
PENICO DE DUAS ASAS – Alcunha reconhecida em Fronteira. [6]
PENICO DOS RICOS – Designação atribuída a um indivíduo muito vaidoso e que privilegia o relacionamento com pessoas abastadas (Redondo); o visado bajulava os ricos e era subserviente (Moura). [6]
PENICO VIDRADO – Alcunha outorgada a alguém que é pobre, mas muito vaidoso. [6]
PENIQUEIRA - Alcunha confirmada em Fronteira. [6]

EPÍLOGO
Depois do meu texto anterior “À laia de ode ao penico”, reforçado agora com este “Hoje é dia de penico”, não vos posso assegurar que num futuro mais ou menos próximo, não vos vá brindar com nova e monumental penicada. De literatura oral, pois claro! A defesa da língua portuguesa, assim o exige, pelo que eu, nesse domínio como noutros: “Não peço penico!”

BIBLIOGRAFIA
[1] ALMEIDA, José João Almeida. Dicionário aberto de calão e expressões idiomáticas. 2011. [http://natura.di.uminho.pt/~jj/pln/calao/dicionario.pdf]
[2] - DIAS. Jaime Lopes. Etnografia da Beira. Vol. X. Livraria Férin, Lda. Lisboa, 1970
[3] – FIGUEIREDO, Cândido de. Novo Diccionário de Língua Portuguesa. 4ª edição. Sociedade Editora Arthur Brandão. Lisboa, 1925.
[4] – LAPA. Albino. Dicionário de Calão. Edição do Autor. Lisboa, 1959.
[5] – MACHADO, José Pedro Machado. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Vol. 4. 5ª edição. Livros Horizonte. Lisboa, 1989
[6] - RAMOS, Francisco Martins; SILVA, Carlos Alberto da. Tratado das Alcunhas Alentejanas. 2ª edição. Edições Colibri. Lisboa, 2003.
[7] - SANTOS, António Nogueira. Novos dicionários de expressões idiomáticas. Edições João Sá da Costa. Lisboa, 1990.
[8] - SIMÕES, Guilherme Augusto. Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1993.
[9] - VIEIRA BRAGA, Alberto. “Folclore” in Revista de Guimarães, vol. XXXIV (1934).

Publicado inicialmente a 15 de maio de 2011

Fig.2 - Bilhete-postal ilustrado de fabrico português, dos meados do séc. XX.

terça-feira, 10 de maio de 2011

O Sentido da visão: Calão

 MULHER COM VÉU - Jaime Martins Barata (1899-1970). Óleo sobre tela.

PREÂMBULO
Seja qual for o contexto em que nasceu ou seja usado, o calão transvaza largamente o seu núcleo inicial de cultores e é incorporado na linguagem corrente do cidadão comum. Daí fazer sentido aqui, uma abordagem do mesmo, em termos de literatura oral e no contexto do sentido da visão.
Uma tal abordagem será centralizada em termos tais como “vista”, “olho”, “ver”, “olhar”, “luz”, “cor”, “doenças da visão” e “cegueira”.
VISTA
A visão (vista) será, porventura o sentido mais eficaz na gestão da nossa interacção com o mundo que nos cerca. Por sua vez, o calão potencia fortemente o substantivo feminino, adjectivando-o em cada caso, da maneira mais adequada:
- Vista aguda = Perspicácia [3]
- Vista alegre = O lenço [2] (Calão de Minde)
- Vista armada = Visão com o auxílio de instrumentos ópticos [3]
- Vista baixa = O porco [2] (Calão de Minde)
- Vista de olhos = Relance rápido, superficial [3]
- Vista desarmada = Visão sem o auxílio de instrumentos ópticos [3]
- Vista grossa = Cumplicidade [3]
- Vista grossa = Ver e fazer de conta que não vê [1]
- Vistas curtas = Diz-se de pessoa pouco inteligente = De espírito tacanho [3]
- Vistas largas = Diz-se de pessoa inteligente e de espírito liberal e aberto [3]
OLHO
O calão adjectiva amplamente o(s) olho(s) como órgãos sensoriais da visão. E com tudo isso, a língua portuguesa sai mais rica:
- Medir a olhómetro = Avaliar à vista [4]
- Olho à Belenenses = Olho azul devido a uma pancada [3]
- Olho alerta! = Chamada para algum perigo [3]
- Olho ao peito = Olho negro [3]
- Olho atrás, olho adiante = Cautelosamente [3]
- Olho clínico = Aptidão = Capacidade = Perspicácia [3]
- Olho comprido = Bisbilhotice [3]
- Olho da providência – Protecção divina [3]
- Olho da rua = Ao ar livre =No meio da rua [3]
- Olho de águia = Perspicaz = Inteligente [3]
- Olho de azougue = Perspicaz = Inteligente [3]
- Olho do céu = O Sol [3]
- Olho gordo (grande) = Diz-se que o tem pessoa invejosa [3]
- Olho no Cristo que é de prata = Frase com que se chama a atenção para se vigiar algo que pode ser furtado [3]
- Olho por olho = Pagar-se na mesma moeda [3]
- Olho traseiro = O cu [3]
- Olho vê, mão pilha = Diz-se de gatuno que age com rapidez [3]
- Olho vivo = Olhar de pessoa inteligente
- Olho vivo! = Atenção! = Cautela! [3]
- Olho vivo, pé ligeiro = É preciso estar com atenção e pronto a desaparecer [3]
- Olho-de-boi = Clarabóia [3]
- Olhos envinagrados = Olhos avermelhados, de bêbado [3]
- Olhos atravessados = Olhos vesgos ou travessos [3]
- Olhos de amêndoa = Olhos oblíquos [3]
- Olhos de besugo = Olhos esbugalhados [3]
- Olhos de carneiro mal morto = Olhos mortiços [3]
- Olhos de garça = Olhos verdes ou azuis [3]
- Olhos de gazela = Olhos suaves, meigos [3]
- Olhos de goraz = Olhos esbugalhados, protuberantes [3]
- Olhos em alvo = Olhos mortiços [3]
- Olhos em bico = Ficar espantado = Olhos parecidos com os dos chineses [3]
- Olhos nos olhos = Frente a frente [3]
- Olhos que te viram ir = Diz-se quando se perde uma oportunidade que já não voltará [3]
VER
O exercício da visão consiste no acto de ver, termo que é verbo e substantivo com largo espectro de significâncias, reforçadas em contexto de calão:
- Ver a Deus pelos pés = Receber uma fortuna inesperada [3]
- Ver à légua = Ver longe = Prever [3]
- Ver a primeira luz = Nascer [3]
- Ver a vida a andar para trás = Andar em maré de azar [3]
- Ver arder as barbas do vizinho = Ver em outrem algo que também lhe pode acontecer [3]
- Ver Braga por um canudo = Não alcançar o que se desejava [3]
- Ver cabelos num ovo = Ver de mais [3]
- Ver cobra = Ficar espantado = Assustar-se
- Ver com estes que a terra há-de comer = Jura em que se invocam os olhos [3]
- Ver com olhos de ver = Observar com atenção [3]
- Ver com os olhos e comer com a testa = Desejar algo inacessível que se contempla, mas não se pode usufruir [3]
- Ver com sete olhos = Observar minuciosamente [3]
- Ver de que lado sopra o vento = Esperar pelos acontecimentos para agir conforme as circunstancias [3]
- Ver em que param as modas = Aguardar os acontecimentos [1]
- Ver as estrelas = Sofrer de repente uma grande dor [3]
- Ver estrelas = Referência a uma situação que se gora [4]
- Ver flamingos à meia-noite = Sofrer de repente uma grande dor = Ver-se embaraçado ou perdido [3]
- Ver furo = Reconhecer uma possibilidade = Ver uma oportunidade [3]
- Ver lobo = Diz-se de pessoa que ficou assustada com o que viu [3]
- Ver longe = Prever = Ser perspicaz [3]
- Ver moscas (mosquitos) na outra banda = Ver muito bem = Estar a inventar coisas [3]
- Ver navios = Não se conseguir o que se deseja = Ter uma desilusão [1]
- Ver o argueiro no olho alheio e não ver a trave no seu = Criticar os defeitos alheios e não conhecer os próprios [3]
- Ver o caso mal parado = Não descortinar solução para um problema [3]
- Ver o céu por dentro = Morrer [3]
- Ver o cu ao pé das calças = Apanhar um grande susto [3]
- Ver o fim do túnel = Ver o resultado final = Admitir melhoria de situação [3]
- Ver o fundo ao tacho (prato, canastra, saco) = Acabarem-se os rendimentos = Acabar-se tudo [3]
- Ver o padeiro = Ter cópula [4]
- Ver o padeiro = Ver navios [4]
- Ver o sol aos quadradinhos = Ser ou estar preso [4]
- Ver os touros de palanque = Presenciar qualquer tumulto em lugar seguro [1]
- Ver para crer (como S. Tomé) = Só acreditar no que se vê ou está irrefutavelmente provado [3]
- Ver passar os comboios = Não estar ocupado = Não ser contemplado numa situação de favor [4]
- Ver passarinho novo (verde) = Andar optimista = Ter uma surpresa agradável [3]
- Ver pelo mesmo prisma = Analisar segundo o mesmo ponto de vista [3]
- Ver pelo rabo (canto) do olho = Ver de esguelha = Ver sem querer ver = Ver superficialmente [3]
- Ver pelos olhos de outrem = Julgar pelo que outro viu ou disse [3]
- Ver por um canudo = Não conseguir o desejado [3]
- Ver por um óculo = Perder = Deixar distanciar-se = Perder de vista [4]
- Ver se pegam as bichas = Lançar um argumento, opinião ou acção a ver se os outros aceitam = Tentar convencer [3]
- Ver sombras no escuro = Idem [3]
- Ver tudo cor-de-rosa = Só ver o lado bom do mundo [3]
- Ver tudo negro = Não encontrar solução para um assunto ou problema = Diz-se de pessoa pessimista [3]
- Ver uma bruxa = Apanhar uma repreensão severa [1]
- Ver uma bruxa = Ver-se embaraçado [3]
- Veremos, como diz o cego = Frase com que se manifesta dúvida ou incredulidade perante um facto possível de acontecer [3]
- Ver-se à brocha = Estar aflito ou em apuros [3]
- Ver-se à rasca = Estar aflito ou em apuros [3]
- Ver-se à vara = Estar aflito ou em apuros [3]
- Ver-se amarelo = Estar aflito ou em apuros [3]
- Ver-se azul = Estar aflito ou em apuros [3]
- Ver-se da cor da abelha = Estar aflito ou em apuros [3]
- Ver-se da cor da pele do Diabo = Estar aflito ou em apuros [3]
- Ver-se doido = Sentir-se atarantado, sem saber o que fazer [3]
- Ver-se e desejar-se = Estar muito atrapalhado = Estar sobrecarregado [3]
- Ver-se em assados = Estar em dificuldades [3]
- Ver-se em calças pardas = Estar em dificuldades [3]
- Ver-se em calças pardas = Ser severamente castigado [4]
- Ver-se em calças pardas = Ver-se em dificuldades [1]
- Ver-se em maus lençóis = Estar em dificuldades [3]
- Ver-se em palpos de aranha = Ver-se em situação embaraçosa e difícil = Estar desorientado [3]
- Ver-se em panças = Estar em dificuldades [3]
- Ver-se em talas = Ver-se em dificuldades [1]
- Ver-se entre a cruz e a caldeirinha = Ver-se em dificuldades = Estar perante um dilema [3]
- Ver-se gago = Ver-se em dificuldades = Estar perante um dilema [3]
- Ver-se grego = Deparar-se uma dificuldade que muito trabalho e tempo demora a resolver-se [3]
- Ver-se grego = Estar em dificuldades [4]
- Ver-se nas amarelas = Ver-se em dificuldades ou perigo [3]
- Ver-se nas ataqueiras = Ver-se em dificuldades ou perigo [3]
OLHAR
O “olhar”, verbo de sentido abrangente, mas também substantivo preciso, marca tal como o verbo e substantivo “ver”, um significativo registo no nosso calão:
- Olha o bicho! Olha o bicho! = Expressão com que se chama a atenção para algo que se estreia, como uma peça de vestuário [3]
- Olha o bufo = Vem gente = Vem polícia [2] (Calão do Porto)
- Olha o passarinho = Forma de chamar a atenção, sobretudo de crianças [3]
- Olhar com bons olhos = Ver ou avaliar com aprovação [3]
- Olhar como boi para palácio = Não compreender nada de um assunto ou do que se passa [3]
- Olhar como boi para palácio = Não ligar apreço = Não dar importância [1]
- Olhar contra o governo = Olhar de esguelha = Estar contra [3]
- Olhar contra o governo = Ser vesgo [1]
- Olhar das chedas o carro = Olhar alguém com desprezo [3]
- Olhar de alto = Olhar com sobranceria [3]
- Olhar de banda = Olhar com desconfiança [3]
- Olhar de banda como o Miranda = Referência a quem olha de esguelha [3]
- Olhar de esconso (esguelha) = Referência a quem olha de esguelha [3]
- Olhar de frente = Manifestar coragem [3]
- Olhar de lado = Olhar com sobranceria [3]
- Olhar para (ante) ontem = Estar pensativo ou distraído [3]
- Olhar para a sombra = Começar a ter vaidade = Namoriscar [3]
- Olhar para dentro = Dormir [3]
- Olhar para o ar = Estar sem fazer nada [3]
- Olhar para o boneco = Estar sem fazer nada = Distrair-se [3]
- Olhar para o próprio umbigo = Ser narcisista e egoísta [3]
- Olhar para o Sete-Estrelo = Olhar o céu = Estar distraído = Estar sem fazer nada [3]
- Olhar para o tempo = Andar na vadiagem = Andar sem fazer nada [1]
- Olhar pelo canto (rabo) do olho = Olhar de soslaio = Olhar disfarçadamente [3]
- Olhar pelo físico = Defender-se de excessos [3]
- Olhar por alguém = Tratá-lo = Protegê-lo [3]
- Olhar por baixo = Diz-se fingidora, sonsa [3]
- Olhar por cima da burra = Olhar alguém com desprezo ou superioridade [3]
- Olhar por cima da burra = Ser severo com alguém [4]
- Olhar por cima dos ombros = Tratar alguém com severidade [1]
- Olhar por si = Defender as suas conveniências [3]
- Olhar quebrado = Olhar lânguido [3]
LUZ
A luz que atinge o globo ocular está na base do mecanismo da visão e de alguns termos de calão no âmbito da visão:
- Deitar o luzio = Olhar = Observar [2]
- Luz = Dinheiro [2]
- Luzeiro = Pedra preciosa = Brilhante = Dia [5]
- Luzente = Pedra preciosa = Brilhante = Dia [5]
- Luzento = Brilhante [2]
- Luzernas = Os olhos [1]
- Luzes = O dia [2]
- Luzio = Dia [1]
- Luzio = Lampião [1]
- Luzio = Olho [1]
- Luzio = Olhos = Olhar [4]
- Luzir-lhe o olho = Mostrar muito interesse por algo [4]
- Pescas de luzio = Olhadela 0 Piscadela de olhos [2]
COR
Como característica da imagem, a cor não deixa de estar presente no calão:
- Cor de burro quando foge = Cor esquisita = Cor inqualificável [1]
- Cor do Senhor dos Passos da Graça = Roxo desbotado [3]
DOENÇAS DA VISÃO
Sendo a visão uma mais valia, as perturbações da visão teriam necessariamente que estar presentes no calão:
- Pitosca = Zarolho = Míope [1]
- Pitosga = Pitosga [1]
- Zambaio = Vesgo [1]
- Zanaga = Vesgo [1]
- Zarolho = Cego de um olho [2]
- Zarolho = Vesgo [1]
CEGUEIRA
A cegueira ou perda do sentido de visão, está igualmente presente no calão, através de termos ou frases, alguns de conteúdo vernáculo:
- Bater uma ceguinha = Masturbar-se [5]
- Cega = Bebedeira [4]
- Cega = Bebedeira = Masturbação [5]
- Cegada = Grupo de mascarados que percorrem as ruas no Carnaval = Grande confusão = festa muito animada [5]
- Cegante = Alfinete com brilhantes [4]
- Cegante = Anel com brilhantes [2]
- Cego = Estudante que interrogado pelo professor e não tendo estudado, responde: “Peço desculpa, mas não vi. Não pude ver.” [2]
- Cego como uma toupeira = Alguém que vê muito mal [3]
- Cegueta = Indivíduo cego dum olho [2]
- Cegueta = Indivíduo cego dum olho ou estrábico [4]
- Cegueta = Pessoa que vê mal [5]
- Ceguinha = Masturbação [5]
- Ceguinho = Pénis [5]
- Ceguinho seja eu = Forma de jura com que se pretende que acreditem em, nós [3]
NOTA FINAL
Independentemente do fascínio que a abordagem do calão exerceu sobre nós, tivemos que dar a mesma por terminada, para não fastidiar mais o leitor. Muito ainda ficou, naturalmente por dizer.

BIBLIOGRAFIA
[1] - BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Gomes de Carvalho- Editor. Lisboa, 1901.
[2] – LAPA. Albino. Dicionário de Calão. Edição do Autor. Lisboa, 1959.
[3] - NEVES, Orlando. Dicionário de Expressões Correntes. Editorial Notícias. Lisboa, 1998.
[4] – NOBRE, Eduardo. Dicionário de Calão. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1986.
[5] – PRAÇA, Afonso. Novo Dicionário de Calão. Editorial Notícias. Lisboa, 2001.