A ALEGADA SUBALTERNIDADE DA MULHER EM RELAÇÃO AO HOMEM
As mulheres são nossas avós, nossas mães, nossas companheiras, nossas filhas. Com elas vivemos e por elas vivemos. E isso é o amor nas suas múltiplas vertentes.
Segundo o Génesis (o primeiro dos cinco livros bíblicos que a tradição judaico-cristã atribui a Moisés), no sexto dia da criação do Mundo e a partir do barro, Deus moldou o primeiro homem (Adão) e mais tarde, fazendo-o mergulhar em sono profundo, retirou-lhe uma costela e a partir dela fez a primeira mulher (Eva), a fim de que o homem não vivesse sozinho e tivesse uma ajuda adequada no seu dia-a-dia.
Esta visão mitológica da criação do mundo coloca imediatamente a mulher numa posição subalterna em relação ao homem. Com efeito na 1ª Epístola de São Paulo aos Coríntios, afirma-se a dado passo, que não foi o homem que foi tirado da mulher, mas a mulher do homem, assim como tão pouco foi o homem criado para a mulher, mas sim a mulher para o homem.
Também de acordo com a mesma epístola, é uma desonra para o homem usar cabelo comprido, ao passo que é uma glória para a mulher usar uma longa cabeleira, porque esta lhe foi dada por Deus como um véu e sobre a sua cabeça a mulher deve usar um sinal da sua submissão. Ao orar a Deus, deve assim estar coberta com um véu.
Numa sociedade democrática, a imagem que hoje fazemos da mulher nada tem a ver com aquela que é sugerida pela 1ª Epístola de S. Paulo aos Coríntios.
Ao longo dos séculos e a nível planetário, a mulher tem sido vítima de descriminação e de violência e tem procurado melhores condições de vida e de trabalho, através da luta por si desenvolvida, sobretudo a partir dos primeiros anos do século XX, nos Estados Unidos da América e na Europa. Foi graças a essas lutas que a mulher alcançou conquistas sociais, políticas e económicas.
Há dois aspectos que têm a ver com o meu trabalho na área cultural, nos quais se encontra bem vincada a subalternidade da mulher em relação ao homem. Trata-se de algumas tradições orais e de imagens humorísticas da mulher.
Como arqueólogo da nossa literatura oral, interesso-me por provérbios, cancioneiros, adivinhas, calão, rezas, benzeduras, topónimos, alcunhas, etc. Limitando-me aos provérbios, chamo a atenção para estes:
- “A mulher e o vinho tiram o homem do seu juízo.“
- “A mulher e a galinha, com sol recolhida.“
- “A mulher e o pedrado, quer-se pisado.“
- “A mulher e a pega fala o que dizeis na praça.“
- “A mulher e a cereja, por seu mal se enfeita.“
- “Da laranja e da mulher, o que ela der.“
- “Nem o rouxinol de cantar, nem a mulher de falar.“
- “O homem na praça, e a mulher em casa.“
É péssima a imagem da mulher transmitida por estes provérbios, compilados em 1651, pelo padre jesuíta eborense António Delicado. Estes provérbios, encarados como sentenças contextualizadas na época em que ele viveu ou anteriores a ela, continuam a aparecer completamente descontextualizados, para gáudio de alguns homens, nos livros de provérbios que por aí se vão editando. Uma compilação séria de provérbios terá necessariamente de identificar o colector e o contexto de tempo e de lugar, o que não tem sido feito.
Passemos agora ao segundo aspecto onde ficou registado o vinco da subalternidade da mulher em relação ao homem. Trata-se da cartofilia. Na verdade, a mulher sai muito maltratada na imagem que dela é dada por alguns bilhetes-postais ilustrados humorísticos tanto do tempo da nossa I República como do Estado Novo.
A mulher é velha, feia, careca, gorda, grandalhona, peituda, peluda ou tem ar ameaçador. Por isso, há que lhe amarrar as mãos, tapar-lhe a boca para não falar ou pregar-lhe mesmo a língua num poste. A mulher é falsa porque usa postiços. E se os bilhetes-postais ilustrados republicanos chamam cadela à mulher quando lhe põem um açaime para não morder, os bilhetes-postais ilustrados do Estado Novo, vão ao ponto de pôr a mulher numa casota canina. Estes postais ilustrados veiculam um humor sexista, satirizando a mulher como inferior ao homem.
No contexto actual, em que a igualdade de género ainda não é plena, o respeito que nos merece a mulher, leva a que encaremos estes bilhetes-postais ilustrados como produto de uma época, em que nos mais diferentes domínios, a mulher era encarada como um ser inferior ao homem, atitude que hoje é desprovida de qualquer sentido.
O que se passou, entretanto, a nível social?
A LUTA DA MULHER PELA IGUALDADE DE GÉNERO
Em 1907, um grupo de mulheres fundara o “Grupo Português de Estudos Feministas”, visando difundir os ideais da emancipação feminina e doutrinar as portuguesas através da edição de uma colecção de livros relacionados com a propaganda feminista.
A partir daquele grupo vai fundar-se em 1908, uma associação política e feminista, a “Liga Republicana das Mulheres Portuguesas”, com a finalidade de orientar, educar e instruir, nos princípios democráticos, a mulher portuguesa, fazer propaganda cívica inspirada no ideal republicano e democrático e promover a revisão das leis na parte respeitante à mulher, visando a sua independência económica e a conquista de direitos civis e políticos. A Liga era apoiada pelo Partido Republicano e em particular por dirigentes como António José de Almeida, Bernardino Machado e Magalhães Lima, que na perspectiva de criarem mais uma frente de combate à Monarquia, incentivavam a luta das mulheres pela igualdade de direitos que lhes possibilitassem uma maior intervenção na vida do país, a nível social, económico e político.
Após a revolução republicana de 5 de Outubro de 1910, é criada em 1911 a “Associação de Propaganda Feminista”, em cujos objectivos se incluíam a independência política, a defesa dos direitos das mulheres e a reivindicação do sufrágio feminino restrito.
A primeira lei eleitoral da I República Portuguesa, datada de 1911, reconhecia o direito de votar aos “cidadãos maiores de 21 anos que saibam ler e escrever ou sejam chefes de família”.
Nas eleições para a Assembleia Constituinte de 1911, realizadas em 28 de Maio desse ano, votaria a primeira mulher portuguesa, Carolina Beatriz Ângelo, médica cirurgiã, activista dos direitos femininos e fundadora da Associação de Propaganda Feminista. Invocando a sua condição de chefe de família, uma vez que era viúva e mãe, Carolina Beatriz Ângelo conseguiu que um tribunal lhe confirmasse o direito a votar com base no sentido do plural da expressão "cidadãos portugueses", cujo masculino se refere simultaneamente a homens e a mulheres. Para evitar que tal exemplo pudesse ser repetido, a lei eleitoral foi alterada em 1913, reconhecendo agora o direito de votar aos “cidadãos do sexo masculino, maiores de 21 anos que saibam ler e escrever”.
Só com Salazar em 1931, é que o direito de voto das mulheres foi formalmente estabelecido, ainda que com muitas restrições, visto que só podiam votar as mulheres que tivessem cursos secundários ou superiores, enquanto para os homens bastava saber ler e escrever.
Ainda com Salazar em 1946, a lei eleitoral alargou o direito de voto às mulheres chefes de família e às casadas que, sabendo ler e escrever, tivessem bens próprios e pagassem pelo menos 200 escudos de contribuição predial, assim como aos homens que, sendo analfabetos, pagassem ao Estado pelo menos 100 escudos de impostos.
Em Dezembro de 1968, já com Marcelo Caetano, foi reconhecido o direito de voto às mulheres portuguesas, ainda que as Juntas de Freguesia continuassem a ser eleitas apenas pelos chefes de família. Só depois de 25 de Abril de 1974, seriam revogadas todas as restrições à capacidade eleitoral dos cidadãos tendo por base o género. Convém salientar que antes do 25 de Abril:
- As mulheres tinham menos direitos que os homens;
- As professoras primárias tinham de pedir autorização para casar, que só era concedido se o pretendido tivesse um ordenado igual ou superior ao da mulher;
- As mulheres precisavam de autorização do marido para poderem ser comerciantes, para arrendarem uma casa e para viajar para o estrangeiro;
- Nas eleições só podiam votar os chefes de família, com um grau de instrução mínima e rendimentos. Assim ficavam de fora as mulheres, os analfabetos e os pobres.
A actual Constituição da República Portuguesa consigna no seu Artigo 13.º (Princípio da igualdade) que:
“1. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.
2. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”
Significa isto que entre outras coisas, a Constituição da República Portuguesa consigna a igualdade de género, a qual tem merecido especial atenção por parte do Parlamento Europeu ao longo dos últimos 30 anos, especialmente no que se refere a condições de trabalho, violência e discriminação. Para concretizar este objectivo, o Parlamento Europeu tem recorrido a instrumentos como: legislação, apoio a projectos de organizações não governamentais e campanhas de sensibilização.
Em Portugal existe uma Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género (CIG). Integrada na Presidência do Conselho de Ministros e sob a tutela do Gabinete da Secretária de Estado da Igualdade, a CIG é um dos mecanismos governamentais para a Igualdade de Género e tem a missão de garantir a execução das políticas públicas no âmbito da cidadania e da promoção e defesa da igualdade de género.
MOSTRA ICONOGRÁFICA “AS MULHERES DO MEU PAÍS”
Os três primeiros quartéis do século XX foram entre nós, anos de luta da mulher pela igualdade de género, que ainda continua.
Como etnógrafo amador, socorro-me dos bilhetes-postais ilustrados antigos como documentário topográfico, etnográfico, histórico, sociológico e artístico do país. Foi assim que do meu vasto acervo, seleccionei 36 exemplares da primeira metade do século XX, 3 por cada uma das nossas 12 regiões (Minho, Trás-os-Montes e Alto Douro, Douro Litoral, Beira Litoral, Beira Alta, Beira Baixa, Ribatejo, Estremadura, Alentejo, Madeira e Açores). Foram esses postais que estiveram na génese da montagem da mostra iconográfica sob o título em epígrafe, onde se mostram com toda a sua força anímica, as mulheres do povo, da serra à campina, da charneca à beira-rio e à beira mar, no continente e nas ilhas. Mulheres com trajos de trabalho ou de romaria, mas sempre em perfeita sintonia com o meio, o clima e a identidade cultural regional. Lavradoras, camponesas, mondadeiras, ceifeiras, azeitoneiras, vindimadeiras, aguadeiras, pastoras, peixeiras, varinas, lavadeiras, regateiras, vendedoras de flores, fiandeiras, bordadeiras ou simplesmente mulheres. Mulheres que arrostando com a descriminação, mas lutando contra ela, ajudaram a fazer este país, com a força do seu trabalho, com o seu exemplo e maternidade. Mulheres que lutaram ao lado do homem. Mulheres que foram avós, mães, companheiras e filhas. Mulheres de ontem, tais como as de hoje, com quem vivemos e por quem vivemos por amor. Mulheres que são “As Mulheres do Meu País”, título da mostra iconográfica que entronca no título homónimo do livro da escritora, tradutora, jornalista e resistente anti-fascista Maria Lamas, Presidente em 1947 do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, organização centrada na defesa dos direitos sociais e políticos das mulheres, fundada em 1914 pela médica ginecologista Adelaide Cabete. Este Conselho foi encerrado por ordem de Salazar em Julho de 1947, no ano de presidência de Maria Lamas. Esta terminaria em 1948, a obra “As Mulheres do Meu País”, que dedica a todas as mulheres portuguesas. Trata-se de uma monumental reportagem sobre a vida das mulheres portuguesas, publicada sob a forma de 15 fascículos, o último dos quais em Abril de 1950, no ano a seguir a ter estado presa pela primeira vez, no forte de Caxias.
À memória de Maria Lamas e a todas “As Mulheres do Meu País” que têm sabido lutar contra a discriminação, se dedicou a presente mostra iconográfica.
(Presidente da Associação Filatélica Alentejana)