terça-feira, 28 de setembro de 2010

Irmãs Flores - Bonequeiras de Estremoz

A literatura filatélica

O nosso fado de coleccionadores leva-nos a deambular por aqui e por ali, à procura dum objecto que não encontramos, qual alquimista que procura sem sucesso a pedra filosofal, qual cavaleiro que procura igualmente sem sucesso o Santo Graal, mas não é por isso que deixam de procurar.
Por vezes até encontramos, mas a magreza da carteira não nos permite alimentar veleidades de posse. Resta-nos então a possibilidade de registo com o olhar, qual chapa fotográfica que procura fixar através do brometo, a beleza dum objecto que nos encheu as medidas.
Muitas vezes no regresso do mercado de sábado, marcados pelo sucesso ou insucesso de alguma compra, somos conduzidos sem dar por isso, à oficina-loja das irmãs Flores, duas barristas nossas vizinhas, a quem visitamos amiúde no Largo da República, em Estremoz, fascinados pela magia emergente das suas mãos de barristas populares. Por vezes, quando damos por nós, estamos lá em plena semana, o que tem o triplo significado de que o sábado anterior passou há muito, que o próximo ainda vem longe e de que gostamos muito de falar com elas, enquanto assistimos à gestação e ao nascimento dos bonecos. Poderá, porventura, haver maior felicidade para um coleccionador que a possibilidade de com o olhar, poder ser cúmplice com os criadores no próprio acto de criação?
As irmãs Flores, Maria Inácia e Perpétua, de seus nomes, discípulas de mestra Sabina Santos, com ela aprenderam a nobre arte do barro e com ela aprenderam a respeitar o que de mais genuíno têm os bonecos de Estremoz, no que respeita a modelos e tipos característicos, formas, cores e tintas. Mas, também e simultaneamente criaram novos modelos e apostaram em novos tamanhos, que têm vindo a enriquecer a vastíssima galeria de modelos de bonecos de Estremoz. São de sua criação há muito, bonecos como “Senhora a ler”, “A filatelia”, "A literatura filatélica", “O farmacêutico”, “A gastronomia”, “A florista”, “O acabamento da ceifa”, “Cristo na cruz” ,“Camponês rico“, bem como novos de modelos de presépio. Naturalmente que continuam a executar modelos tradicionais, como “Primaveras”, “O amor é cego”, “Púcaros”, “Cantarinhas”, “Peraltas “, “Cavaleiros”, “Pastores”, “Ceifeiras”, “Negros floristas”, etc., pois a imaginária popular é vasta.
Os bonecos são fabricados por elementos: cabeças, troncos, pernas, braços, que depois são montados de modo a constituir os bonecos. Estes, tal como nós, nascem nus e só depois é que recebem vestidos, capas, safões, cabelos e chapéus. Todas as peças são afeiçoadas à mão, à excepção do rosto dos bonecos, que é feito com moldes e sempre assim foi, devido à dificuldade em o fazer manualmente. As ferramentas que utilizam para trabalhar o barro são a palheta ou teque (de madeira, plástico ou metal, que permite escavar o barro e dar-lhe forma), os furadores (para furar) e o batedor (para estender o barro (embora haja quem o faça com o rolo da maça).
Antes de serem cozidos, os bonecos têm de secar durante vários dias. Depois de cozidos, os bonecos levam um dia para arrefecer. Só então podem ser pintados. Nesta operação são utilizados pincéis finos de várias espessuras e tintas fabricadas com pigmentos minerais: vermelhão (vermelho), almagre (vermelho escuro), zarcão (cor de laranja), terra de sena (castanho), verde bandeira (verde), azul do ultramar (azul), alvaiade (branco) e pó de sapato (preto). As tintas são feitas misturando os pigmentos com água e cola de madeira, um pouco a olho, mas na quantidade adequada para que a tinta agarre bem ao barro e não salte quando se lhe põe verniz, uma vez que depois da pintura estar seca (o que é rápido), os bonecos são envernizados para fixar a tinta.
As irmãs Flores são continuadoras da arte das “boniqueiras”, mulheres referidas em acta do Município de Estremoz de 10 de Outubro de 1770, conforme investigação recente de Hugo Guerreiro. Dessas boniqueiras são as peças do século XVIII e século XIX que estão no Museu Municipal Prof. Joaquim Vermelho, em Estremoz.


Pastor a comer as migas

Coqueira

Cozinha dos ganhões

Mulher a fazer chouriços

Castanheira

Mulher a cozinhar
Primavera de arco

Senhora a ler

Lavradeira de Viana do Castelo

10 comentários:

  1. Amigo Hernâno, explêndida explicaçâo sobre as boniqueiras de Estremoz, é uma delicia aprender com o Professor algo tâo importante dos nossos costumes, por vezes esquecidos pela maioria dos nossos concidadâos.

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  2. O Anónimo disse: "por vezes esquecidos...".Eu digo, por vezes desconhecidos como é o meu caso e penso q de tantos outros concidadãos...
    Notável!!!

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  3. Aprecio a arte das irmãs Flores, obrigado por esta abordagem.

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  4. a devida promoção desta ARTE secular levaria os BONECOS de Estremoz a patamares de sucesso próximos dos admirados mundialmente BONECOS DE SANTO ALEIXO.

    Não será fácil encontrar investimento em promoção mais reprodutivo a médio-prazo

    abraço

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  5. Lindos!!!Moro perto de duas cidades onde se faz trabalhos como estes.Tracunhaém praticamente as pessoas vivem disto.Parabéns pela blogada e obrigada pelo convite no face.Não conecia as Bonequeiras de Entremoz.Vou seguir seu blog!

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  6. Magnifico! Adorei! Aliás gosto muito de todos os artigos publicados. Tenho aprendido muito. O saber não ocupa espaço e é tão bom existirem pessoas como o Prof. Hernâni na divulgação da nossa história, costumes e artes.
    Obrigada
    Bem haja
    Lúcia Santos

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  7. Magnifico!

    Sou organizadora de Eventos, e estou a organizar um evento associado a artesanato e gostaria que se alguém tivesse o contacto via e-mail ou telefone das irmãs flores que mo de-se

    Cumprimentos,
    AnaMarques'

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  8. Tantas, mas tantas vezes que a cultura popular é contra o povo. Outras vezes, não. E em casos raros pertencem mesmo a uma cultura superior. É o caso das Irmãs Flores que o Hernâni Matos tão bem aflora. Tenho na secretária uma Santa Luzia dessas mãos que me tiram o cansaço dos olhos. Bem haja pela evocação.

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    1. No meu post "ALENTEJO DO PASSADO"
      http://dotempodaoutrasenhora.blogspot.pt/2011/11/alentejo-do-passado.html , eu disse:
      "As Irmãs Flores estão de parabéns, pois sem se afastarem um milímetro sequer dos cânones tradicionais da barrística popular estremocense, têm sabido inovar, criando novos públicos com apetência por aquilo que é diferente dentro do tradicional. E elas estão no caminho certo, pois se a sua mestria é pautada, por um lado, pela mais estrita fidelidade aos materiais, à tecnologia e às cores, não deixam todavia de manifestar inquietude que se expressa na criação de novos modelos de figurado, que têm a ver com a nossa identidade cultural, local e regional. Por isso são embaixatrizes de vanguarda da nossa arte popular trantagana e a comunidade estremocense revê-se com enlevo na elevada qualidade artística do seu trabalho, o que aqui se testemunha, por ser uma verdade insofismável."

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