quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Do Carnaval à Quaresma - Notas de Literatura Oral


O Combate entre o Carnaval e a Quaresma (1559). Pieter Bruegel, o Velho (1526/1530–1569). Óleo
sobre madeira (164,5 x 118 cm). Museu de História de Arte, Viena. Do lado esquerdo, obeso, o
príncipe Carnaval que representa supostamente os protestantes, ao passo que à direita, o
indivíduo magro e triste, encarna os católicos.

A ACÇÃO DA IGREJA CATÓLICA
A Quaresma é o período de quarenta dias que antecipam o Domingo de Páscoa, durante o qual se comemora a ressurreição de Jesus Cristo, que segundo a Igreja, passou quarenta dias no deserto, em jejum e oração, como preparação para a vida pública.
A Quaresma começa na quarta-feira de cinzas e termina na chamada Quinta-Feira Santa, data da celebração da última ceia de Jesus Cristo com os doze apóstolos. Após a Quaresma, inicia-se o chamado Tríduo Pascal, que finda no Domingo de Páscoa.
Na prática, o tempo de Quaresma são quarenta e sete dias, já que de acordo com o Cristianismo, o domingo, dedicado já como dia do Senhor, não é contado durante a Quaresma.
Durante a Quaresma, a Igreja convida os fiéis a um período de penitência e de meditação, através da prática do jejum, da esmola e da oração, como preparação para o Domingo de Páscoa.
Qual a origem da Quaresma? Em 313 da era cristã, o imperador romano Constantino, promulgou o Édito de Milão, que declarava a religião Cristã como legal e dotada de plena liberdade, ao mesmo tempo que anulava o vínculo até então existente entre o Estado Romano e a Religião pagã. Como consequência desse Édito, os templos e outros bens imóveis confiscados aos cristãos, foram devolvidos. Multidões de pagãos quiseram então entrar na Igreja. Foi assim que no séc. IV d. C, a Igreja criou a Quaresma.
O período de três dias que precedem a Quaresma é conhecido por Entrudo (Do latim introitus, -us, entrada, começo) ou Carnaval (Do francês carnaval, do italiano carnevale, de carnelevare, retirar a carne) e nele decorrem alegres brincadeiras e festas populares, que assumem múltiplas formas.
Apontado por muitos como tendo uma remota origem pré-cristã, o Carnaval assumiu importância no séc. IV d.C., quando a Igreja Católica, estabeleceu a Semana Santa antecedida dos quarenta dias da Quaresma. Um período de tão longa penitência e privações, incentivaria a realização de festas populares nos três dias que antecediam a Quarta-feira de Cinzas, o primeiro dia da Quaresma. Os três dias de Carnaval são conhecidos por dias gordos, especialmente a Terça-feira gorda.

ONOMÁSTICA E ALCUNHAS ALENTEJANAS
A onomástica portuguesa não permite que alguém tenha como nome próprio, “Carnaval” ou “Entrudo”. Permite todavia que alguém, homem ou mulher use o nome “Quaresma”, como segundo elemento do nome, podendo até o termo “Quaresma” ser pronome de família. [4] [6] Todavia o sábio povo alentejano soube tornear o problema, através da atribuição de alcunhas alentejanas: São conhecidas as seguintes:
- CARNAVAL – O visado nasceu em dia de Carnaval (Redondo e Castro Verde). [13]
- ENTRUDO – Alcunha atribuída em Reguengos de Monsaraz. [13]
- ENTRUDO CASTELHANO - alcunha aplicada em Moura. [13]
- QUARESMO(A) - alcunha outorgada em Avis e Grândola. [13]

TOPÓNIMOS E CALÃO
São desconhecidos topónimos [3] e praticamente desconhecidos termos de calão, tendo por base as palavras “Carnaval”, “Entrudo” e “Quaresma”. [7][9][10][12][14]. Todavia, o termo “Carnaval” é sinónimo de orgia [2] e designativo de tudo o que dá para a galhofa. [15] Por sua vez, no calão transmontano, “Entrudo”, designa uma pessoa gorda. [15]

SUPERSTIÇÕES POPULARES
São significativas as superstições populares relativas ao "Carnaval" e à "Quaresma". Destacamos algumas:
- “Não se deve fiar na Terça-Feira de Carnaval, porque isso seria fiar as barbas ao Entrudo. Se alguém fosse visto fazendo isso em tal dia, não passaria sem ver a roca e o fuso queimados.“ [17]
- “Na Quarta-Feira de Trevas não se deve fiar depois do pôr-do-sol, porque foi então que os Judeus fiaram as cordas com que prenderam Nosso Senhor Jesus Cristo.” [17]
- “É bom em Quarta-Feira de Trevas pôr um ferro sobre a ave que choca ovos, para que estes não gorem.” [17]
- “Desde Quarta-Feira de Trevas até à hora da Ressurreição de Sábado d'Aleluia não se deve secar roupa porque ela apareceria com pintas de sangue.” [17]
- “É um preservativo para afugentar as trovoadas, queimar palma benta em Domingo de Ramos e espalhar o fumo pela casa.” [17]
- “Quando fazem trovões, para que não aconteça mal algum, é bom acender um coto de vela, que tivesse estado aceso nalguma igreja em Quinta-Feira ou Sexta-Feira Santa.” [17]
- “No Sábado de Aleluia, é bom furtar-se água da pia de baptismo de uma igreja; três gotas desta água deitadas no comer livram de feitiços a quem as toma, mas há-de ser depois de o comer ser tirado do lume, porque antes é pecado.” [17]

ADIVINHAS
As adivinhas são outro elemento importante da nossa literatura oral, com presença significativa no período que temos vindo a abordar. Curiosamente não conseguimos localizar adivinhas relativas ao "Entrudo" ou "Carnaval", mas são múltiplas, aquelas cuja solução óbvia é “A Quaresma”:

“Posto que velha me vejas,
Já fui moça e sou formosa;
Deu-me o céu, em sete filhas,
Descendência venturosa.

Cinco destas são mui justas;
Uma por santa se exalta;
A mais velha é muito boa,
Teve contudo uma falta.

Todo o mundo nos tributa
Mais ou menos atenções;
Trata a todos com respeito.
Segue as nossas devoções.” [5]

“Sou uma velha, muito velha,
Com o ranço na garganta;
De sete filhas que tive
Só uma me saiu santa.” [5]

“Uma mãe com sete filhas: uma com faltas, cinco justas e uma santa. Qual é a mãe?” [5]

“Uma mãe com sete filhas:
Cinco justas,
Uma santa
E outra com falta” [11]

“Sete irmãs são,
uma é santa
e seis não.” [16]

O ADAGIÁRIO PORTUGUÊS
É interessante o adagiário relativo ao "Entrudo" ou "Carnaval". Como se trata de um período de certa licenciosidade, que é ansiosamente aguardado, o Povo sabe contar os dias:
-”Dos Santos ao Natal, cada dia mais mal; do Natal ao Entrudo, come-se capital e tudo.”
-”Do Natal ao Entrudo é um mês, quem bem contar sete semanas lhe há-de achar.”
-”Esta vida são dois dias e o Carnaval são três.”
-”Do Carnaval à Páscoa vão sete semanas.”
Há adágios que exprimem bem as características especiais de que se reveste a quadra festiva:
-”É Carnaval, ninguém leva a mal.”
-”No Carnaval nada parece mal.”
-”Em dia de Entrudo não há querela.”
-”No Entrudo, come-se tudo”.
-”Farta-te gato, que é dia de Entrudo.”
-“Namoro de Carnaval, não chega ao Natal.”
-”Alegria, Entrudo, que amanhã será cinza.”
-“O Entrudo, leva tudo.”
A observação do céu levou a criação de máximas relativas à astrologia do tempo, como é o caso desta:
-”Não há Entrudo sem Lua Nova, nem Páscoa sem Lua Cheia.”
Os adágios tecem, por vezes, considerações de natureza meteorológica:
-”Entrudo borralheiro, Páscoa soalheira.”
-”Carnaval na eira, Páscoa à lareira.”
-”Entrudo borralheiro, Natal em casa, Páscoa na praça.”
Outras vezes é a própria fauna que é observada:
-”Pelo Entrudo – cartaxo penudo.”
O adagiário, dá de resto, orientações relativas ao trabalho:
-”No Natal, fiar; no Entrudo, dobar; na Quaresma, tecer; e na Páscoa, coser.”
Dá igualmente recomendações para a Agricultura:
-”Pelo Natal semeia o teu alhal, e se o quiseres cabeçudo, semeia-o pelo Entrudo.”
-”Quem quiser o alho cabeçudo, sache-o pelo Entrudo.”
-”Quem quiser o alho cachapernudo, plante-o no mês do Entrudo.”
A "Quaresma" é mais escassa de adágios que o "Entrudo" ou "Carnaval", já que sendo um período de penitência, é menos do agrado popular. Com fundamento religioso é conhecido o adágio:
- “A Quaresma é muito pequena para quem tem de pagar a Páscoa.”
Por lei geral da Igreja, os fiéis de mais de 14 anos, não dispensados, devem abster-se de comer carne em certos dias do ano. Em Portugal, são dias de abstinência a Quarta-Feira de Cinzas e as sextas-feiras do ano que não coincidam com solenidades litúrgicas. Desta tradição penitencial da Igreja, nasceu o adágio:
- “Salmão e sermão têm na Quaresma a sua estação.”
A disciplina penitencial podia ser quebrada por Indulto Pontifício através duma licença canónica, a chamada Bula, que permitia comer carne nos dias de abstinência, mediante o pagamento de dinheiro que visava segundo a Igreja, a fundação e manutenção dos seminários. Assim, os ricos que já podiam comer carne todos os dias, também podiam pagar a Bula à Santa Sé, para comerem carne pela Quaresma. Pagavam à Igreja pelo pecado e eram abatidos da lista dos que iam para o Inferno. Daí que haja adágios que, como profunda crítica social, relatam a opinião dos pobres:
- “A Quaresma e a cadeia para o pobre é feita.”
- “A Quaresma e a cadeia para pobres é feita.”
A Bula, como forma de indulto vigorava desde 31 de Dezembro de 1914 (Papa Bento XV) e só cessou com a nova disciplina penitencial decretada pela Constituição Apostólica Paenitemini, que trata do jejum e da abstinência na Igreja Católica e foi promulgada por Paulo VI, em 1966.

CANCIONEIRO POPULAR
O Entrudo, de que o povo muito gosta, é um período de excelência gastronómica, cuidadosamente preparado:

“Eu hei-de mandar fazer,
Que eu não posso fazer tudo,
Uma ponte de filhoses
Para passar o Entrudo.” [8] – Castro Verde

O Entrudo é, naturalmente, um período de divertimento popular, considerado curto:

“Divertimos o Entrudo
Que se nos vai acabando;
Sabe Deus quem chegará
Desde que vem a um ano.” [8] – Castro Verde

Com o Entrudo, termina a gastronomia de excelência e entra-se na Quaresma, que exige penitência:

“Já lá se vai o Entrudo
Com galinhas e capões;
Agora vem na Quaresma,
Estudam-se as orações.” [8] – Vila Verde de Ficalho

“Já se acabou o Entrudo,
Já não se fazem funções;
Agora vem a Quaresma:
Calabaças com feijões. [8] – Alandroal

O povo, que gosta do Entrudo, refere o fim deste, de uma forma algo mordaz:

“Aí vai já o Entrudo
Pelo caminho do poço;
Vai gritando em altas vozes
Que lhe cortaram o pescoço.” [8] – Castro Verde

Todavia, para gáudio do Povo, decorrido um ano, aí estará de novo o Entrudo, qual Fénix renascida das cinzas.

Pulicado pela primeira vez em 10 de Fevereiro de 2011

BIBLIOGRAFIA
[1] - BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Gomes de Carvalho - Editor. Lisboa, 1901.
[2] - BÍVAR, Artur. Dicionário Geral e Analógico da Lingua Portuguesa. Lello e Irmão, editores. Porto, 1948.
[3] – FRAZÃO, A. C. Amaral. Novo Dicionário Corográfico de Portugal. Editorial Domingos Barreira. Porto, 1981.
[4] – GRANDE ENCICLOPÉDIA PORTUGUESA E BRASILEIRA. Volume 23. Editorial Enciclopédia, Limitada. Lisboa, s/d.
[5] - GUERREIRO, M. Viegas. Adivinhas Portuguesas. Fundação Nacional Para A Alegria No Trabalho. Lisboa, 1957.
[6] - INSTITUTO DOS REGISTOS E DO NOTARIADO. Vocábulos admitidos e não admitidos como nomes próprios. [http://www.irn.mj.pt/sections/irn/a_registral/registos-centrais/docs-da-nacionalidade/vocabulos-admitidos-e/downloadFile/file/2010-09-30_-_Lista_de_nomes.pdf?nocache=1287071845.45]
[7] – LAPA. Albino. Dicionário de Calão. Edição do Autor. Lisboa, 1959.
[8] – LEITE DE VASCONCELLOS, José. Cancioneiro Popular Português, vol. III. Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra, 1983
[9] - NEVES, Orlando. Dicionário de Expressões Correntes. Editorial Notícias. Lisboa, 1998.
[10] - NOBRE, Eduardo. Dicionário de Calão. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1986.
[11] - PIRES DE LIMA, Augusto C. O Livro das Adivinhas. 2ª Edição. Editiorial Domingos Barreira. Porto, s/d.
[12] - PRAÇA, Afonso. Novo Dicionário de Calão. Editorial Notícias. Lisboa, 2001.
[13] - RAMOS, Francisco Martins; SILVA, Carlos Alberto da. Tratado das Alcunhas Alentejanas. 2ª edição. Edições Colibri. Lisboa, 2003.
[14] – SANTOS, António Nogueira. Novos dicionários de expressões idiomáticas. Edições João Sá da Costa. Lisboa, 1990.
[15] – SIMÕES, Guilherme Augusto. Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1993.
[16] - VIALE MOUTINHO, José. Adivinhas Populares Portuguesas. 6ª Edição. Editorial Notícias. Lisboa, 2000.
[17] - PEDROSO, Consiglieri. Contribuições para uma Mitologia Popular Portuguesa e Outros Escritos Etnográficos. Publicações D. Quixote. Lisboa, 1988.

Entrudo familiar. Augustus Earle (1793-1838). Aguarela sobre papel (34 x 21,6 cm).
 Biblioteca Nacional da Austrália, Canberra.

Carnaval. Capa da revista "Ilustração Portuguesa" nº 781, de 5 de Fevereiro de 1921,
com ilustração de Leal da Câmara (1876-1948).

Carnaval. Cartoon de Stuart de Carvalhais (1887-1961) na revista "Ilustração Portuguesa"
nº 524, de 6 de Março de 1916.

Carnaval. Capa da revista “Ilustração portugueza” nº 886, de 10 de Fevereiro de 1923,
com ilustração de Melendez.

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

A barrística de Estremoz e os provérbios - 1

Procuraremos a partir de hoje, associar provérbios da nossa tradição oral, a exemplares da barrística popular estremocense. Todos os bonecos apresentados hoje, são da autoria das Irmãs Flores.  


COZINHEIRA
A melhor cozinheira é a azeiteira.

MOLEIRO
Muda-se de moleiro, não se muda de ladrão.
LEITEIRO
Não adianta chorar sobre o leite derramado.

COZINHA DOS GANHÕES
Sopa de ganhões, cada três um pão.


MULHER AO POIAL DOS CÂNTAROS
Bebedice de água nunca acaba.

HOMENS NO PETISCO
Comamos e bebamos e nunca mais ralhamos.

sábado, 29 de janeiro de 2011

A caça aos grilos - 2ª edição

Esta é a 2ª edição do post A CAÇA AOS GRILOS, editado em 21 de Fevereiro de 2010, agora revisto, reformulado e ampliado com apontamentos de literatura oral, bem como pela adição de uma nova ilustração e de um novo vídeo.

 Gaiola paras grilos, feita de cana, cortiça e cordão (Colecção do autor).

EU E OS GRILOS
Íamos apanhar grilos cuja toca localizávamos pelo som. Feito isto, o grilo estava perdido. Obrigávamo-lo a sair à força com uma palhinha que metíamos na toca. Porém, se não saía a bem, saía a mal. Para grandes males, grandes remédios. Víamo-nos então forçados a dar uma mijadela na toca, o que tinha o condão de persuadir o grilo a sair. Apanhávamo-lo depois com as mãos postas em concha e metíamo-lo numa caixa de fósforos das grandes, nas quais previamente tínhamos feito uns pequenos respiradouros, não fosse o caso de o bicho, salvo da morte por afogamento, viesse a morrer de asfixia. Depois, já em casa, o grilo era metido numa gaiola, havendo as feitas só de cana e as de arame e cortiça ou de arame e madeira.
Alimentávamos o grilo com folhas de serralha ou de alface, que íamos renovando para o “cantor” ter permanentemente alimentação fresca.
Os grilos que cantavam bem eram chamados de “realistas”.
As gaiolas estavam geralmente junto às janelas.
Tivemos conhecimento que, por vezes, os trabalhadores rurais prendiam na camisa uma gaiola de “bunho” com um grilo lá dentro, que cantava para eles o dia inteiro.
OS GRILOS NA LITERATURA ORAL
A caça aos grilos era uma traquinice dos putos da minha laia e da minha geração. Decorridos mais de cinquenta anos sobre a última mijadela numa toca, resta a saudade dos tempos que já lá vão. Esta, aliada à memória dos nossos ancestrais, tornou-me arqueólogo da oralidade com a missão explícita de escavar os múltiplos géneros da nossa literatura popular. Daí que tenha registado a presença dos grilos no adagiário português:
- “Anda a raposa aos grilos.“
- “Fica melhor a mulher no seu lar, ouvindo o grilo cantar. “
- “Infeliz da raposa que anda aos grilos.“
- “Mal vai a raposa quando anda aos grilos e ao juiz quando vai à forca. “
- “Mal vai a raposa quando anda aos grilos e pior quando anda aos ovos.“
- “Mal vai a raposa quando anda aos grilos.” [13]
- ”Quando a raposa anda aos grilos, a mulher dama fia e o escrivão não sabe quantos são do mês, mal deles três.“
- “Quando a raposa anda aos grilos, mal da mãe, pior dos filhos.“
- “Quando a raposa anda aos grilos, vai mal para a mãe e pior para os filhos.“
- “Quando o grilo grilar, está a seara a aloirar.“
- “Se queres um grilo, vai pari-lo.“
- “Tomai a sorte do grilo, que é comer e cantar.“
A presença dos grilos no reportório das adivinhas portuguesas é vasto e na maioria delas, a solução é obviamente: “Grilo”. Eis uma:  

“Eu canto ao desafio
Como a cigarra no Verão.
Gosto muito de alfaces
E não trabalho ao serão.” [10]   

Eis outra:                        

“Lá no deserto onde vivo
Me vão buscar da cidade.
Nascendo em dias grandes
É mui curta a minha idade.
Cantar sem abrir a boca
É o meu divertimento.
Como leigo que sou
Pertenço a certo convento.
Dão-me uma pequena cela
Onde só posso habitar,
E uma ração em cru
Até na cela acabar.” [5]                           
    
Mais uma:                                 

“Não sou frade, nem sou monge,
Nem sou de nenhum convento;
Meu fato é de franciscano,
E só de ervas me sustento.” [7]  

E ainda mais uma:           
                       
“Seja de noite ou de dia
um pequeno bailarino
oferece serenatas
sem guitarra ou violino.” [1]                    
                  
Todavia a solução da adivinha pode envolver mais que um animal, como acontece nesta:  
 
“Quem é quem é
Que canta
Sem ser com a garganta?” [3]                                  

A solução agora é “A cigarra e o grilo” .                               
     
A adivinha pode, de resto, aparentemente envolver cálculo mental:              

“Bão três grilos p’la estrada fora.
Vem um carro mata um.
Quantos ficam?” [9].                             
                   
Naturalmente que a solução é: “Ficou aquele que morreu. Os outros andaram sempre.”                                                                    
No âmbito das alcunhas alentejanas são conhecidas as seguintes:                             
GRILA - A receptora, em criança, andava sempre aos pulos (Barrancos). [12]
GRILA ESPANHOLA – Alcunha outorgada a um individuo que fala muito e é espanholado (Elvas). [12]
GRILO – Designação atribuída a um indivíduo que gosta muito de cantar (Odemira, Portel, Viana do Alentejo, Santiago do Cacém, Almodôvar, Serpa e Grândola). [12]
GRILO – o alcunhado herdou a alcunha da mãe (Borba). [12]
GRILO – O receptor, em criança, tinha o hábito de apanhar grilos (Cuba e Santiago do Cacém). [12]
GRILO – O visado, em criança, sempre que via uma gaiola com grilos à porta de alguém, começava a logo a assobiar (Moura). [12]
GRILO – Os visados são de baixa estatura e muito cantadores (Alandroal). [12]                     
A nível de gíria portuguesa são conhecidos os termos:                                 
“Grilo = Relógio = Apito” [2]    
“Grilo = Telefone = Relógio de bolso = Coração” [11] [8]
“Grila = Ponta de Cigarro = Pirisca” [11] [6]
Finalmente, no sector da toponímia são de assinalar os seguintes topónimos:
- “GRILA – Lugar da freguesia de S. Pedro, concelho da Covilhã.“ [4]
- “GRILO – Freguesia do concelho de Baião.“ [4]
- “GRILO – Lugar da freguesia de Fornos, concelho de Castelo de Paiva.“ [4]
- “GRILO – Lugar da freguesia de S. Vicente do Paul, concelho de Santarém.“ [4]
- “GRILO – Lugar da freguesia de Vale de Figueira, concelho de Santarém.“ [4]
- “GRILOS - Lugar da freguesia Arazede, concelho de Montemor-o-Velho.“ [4]
A TERMINAR
Só os grilos machos produzem sons, o que fazem visando atrair as fêmeas para a reprodução. Para o efeito, possuem uma série de pelos nas bordas das asas, alinhados como pentes, produzindo sons quando roçam uma asa contra a outra. O som emitido tem a frequência de 4 as 5 KHz e pode ser ouvido a quilómetro e meio de distância.
Em muitos paises como Portugal, o grilo sempre foi considerado como animal de estimação, sendo mantido em cativeiro dentro de gaiolas, pelo que como param de cantar quando alguérm se aproxima, funcionam como detectores de ladrões.
A Biblia contém referências ao grilo:
- “Poderão comer toda espécie de gafanhotos e grilos.” [Levítico 11:22]
- “Aí o fogo te devorará, a espada te exterminará; ela te devorará como o gafanhoto, ainda que fosses numeroso como o gafanhoto, e te multiplicasses como o grilo.” [Naum 3:15]
Nalguns países, os grilos são criados em larga escala para serem vendidos como alimento vivo e serem usados como isca em pescarias ou consumido como iguaria em restaurantes exóticos. Pela nossa parte, habituados à excelência da gastronomia alentejana, dispensamos tais iguarias e preferimos ouvir cantar os grilos nos campos e em liberdade, o que é cada vez mais difícil, dado o uso intensivo de pesticidas e herbicidas. A vida está cada vez mais difícil no planeta Terra, mesmo para os grilos.
BIBLIOGRAFIA 
[1] - ARTMUSICA .
[2] - BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Gomes de Carvalho- Editor. Lisboa, 1901.
[3] – CARDOSO, Fernando. Novíssimas Flores para Crianças. Editora Portugal Mundo.Lisboa,
[4] – FRAZÃO, A. C. Amaral. Novo Dicionário Corográfico de Portugal. Editorial Domingos Barreira. Porto, 1981.
[5] - GUERREIRO, M. Viegas. Adivinhas Portuguesas. Fundação Nacional Para A Alegria No Trabalho. Lisboa, 1957.
[6] – LAPA. Albino. Dicionário de Calão. Edição do Autor. Lisboa, 1959.
[7] - LIMA, Fernando de Castro Pires de. Qual é a coisa qual é ela? Portugália Editora. Lisboa, 1957.
[8] - NOBRE, Eduardo. Dicionário de Calão. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1986.
[11] - PRAÇA, Afonso. Novo Dicionário de Calão. Editorial Notícias. Lisboa, 2001.
[12] – RAMOS, Francisco Martins & SILVA, Carlos Alberto da. Tratado das Alcunhas Alentejanas. 2ª edição. Edições Colibri. Lisboa, 2003.
[13] - ROLAND, Francisco. ADAGIOS, PROVERBIOS, RIFÃOS E ANEXINS DA LINGUA PORTUGUEZA. Tirados dos melhores Autores Nacionais, e recopilados por ordem Alfabética por F.R.I.L.E.L. Typographia Rollandiana. Lisboa, 1841.
[14] - SIMÕES, Guilherme Augusto. Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1993.    



Gaiolas de bunho, cana e arame (Colecção de Manuela Mendes).

Querem ver um grilo em liberdade?
Querem ouvir um grilo cantar?
Cliquem na imagem abaixo:


Querem assistir a uma caçada aos grilos?
Querem ouvir um grilo cantar?
Cliquem na imagem abaixo: 

 

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Os candeeiros a petróleo (2ª edição)

Esta é a 2ª edição do post OS CANDEEIROS A PETRÓLEO, editado em 27 de Fevereiro de 2010, agora revisto, reformulado e ampliado com apontamentos de literatura oral, bem como pela adição de três novas ilustrações.

Um elegante candeeiro a petróleo.
EU E O PETRÓLEO
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Nascido em 1946, sou duma geração que nasceu e viveu iluminada pelo candeeiro a petróleo. À luz do petróleo se jantava em casa dos meus pais e à luz do candeeiro se seroava e se contavam histórias desse dia e histórias de família, a perder no tempo.
À luz do petróleo aprendi a juntar as primeiras letras, assim como a ler e a escrever.
Os sessenta e três anos que atravessam longitudinalmente a minha vida, levaram-me a conhecer sucessivamente as lâmpadas incandescentes, as lâmpadas de halogéneo, as lâmpadas fluorescentes, as lâmpadas de descarga e os leds.
A minha costela de coleccionador, aliada à necessidade de registar materialmente a memória do passado, levou ao gosto pela iluminária popular, o que se traduziu em ter reunido ao longo dos anos, um razoável conjunto de candeeiros de petróleo. Especímenes diferentes no tamanho, no material (vidro, loiça, metal, mistos), na geometria, na cor do vidro, na decoração, nas chaminés, porém todos eles com um elo comum: o serem candeeiros a petróleo. Este meu gosto pelos candeeiros tem a ver com memórias de infância, nas quais o combustível era para mim o mal amado.
Ainda hoje me lembro do cheiro pestilento a petróleo, que me era assaz desagradável, ao ponto de ainda hoje o ter entranhado nas narinas, talvez por desde sempre ter sido dotado de um razoável faro de perdigueiro.
Deu-se ainda o caso de uma certa vez, aí pelos doze anos de idade, ter esparramado petróleo para cima dos sapatos. Como? A minha mãe mandou-me ao petróleo à drogaria da D. Virgínia, a cerca de vinte metros da casa onde então morávamos na Rua da Misericórdia, em Estremoz. E a garrafa teve que ir embrulhada em papel de jornal, porque ela queria assim e assim tinha que ser. No regresso, já do lado de fora da drogaria, resolvi pegar na garrafa pelo gargalo, mas não sei como é que me arranjei, que quando dei por mim, tinha a rolha e a o papel de jornal na mão direita. A garrafa, farta de me estar nas mãos, libertara-se do meu jugo e armada em S. João Baptista, baptizara-me os sapatos, que assim ficaram bentos para o resto da vida. Todavia, fiquei dispensado de os usar, enquanto estes retiveram os odores nauseabundos do seu baptismo forçado. O que não fiquei livre, foi de ter de ir logo de seguida, comprar novamente petróleo à mesma drogaria. E que julgam? Mais uma vez numa garrafa embrulhada em papel de jornal. Porém, desta feita, com uma séria advertência:
- "Vê lá bem o que fazes! "
Bom, mas então tive mais sorte e tal como uma formiga no carreiro, lá fui direitinho a casa, onde cheguei vitorioso com a garrafa incólume, toda embrulhadinha como a minha mãe gostava. Pude então mudar de sapatos e lavar os pés com sabão azul e branco. Num alguidar de zinco, é claro. Porque nessa época, banheiras e bidés só na casa de ricos.
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EDISON E OS CANDEEIROS A PETRÓLEO
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Mais tarde, vim a perceber porque é que Thomas Edison (1847-1931), o mais prolífico dos inventores americanos, entre as 1093 patentes das suas descobertas, incluía a lâmpada eléctrica de incandescência, mostrada ao público em 31 de Dezembro de 1879, no seu laboratório em Nova Jersey. É que sendo o filho mais novo de uma família de sete irmãos, enquanto rapaz tinha a seu cargo a manutenção dos candeeiros de petróleo lá de casa, tarefa para si abominável. Lá diz o rifão: “A necessidade é mestra de engenho”. Como eu o compreendo: atestar os depósitos com o líquido de execrável cheiro, aparelhar as torcidas, limpar as chaminés enegrecidas pelo fumo, era, de facto, uma tarefa desagradável.
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OS CANDEEIROS NA LITERATURA ORAL
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Liberto de ir ao petróleo mal-amado, comecei por me apaixonar primeiro pelo coleccionismo de candeeiros e depois já arqueólogo da oralidade da língua e da literatura portuguesas, tornei-me colector de registos presenciais dos candeeiros nos diversos géneros de literatura popular. No que respeita à presença dos candeeiros no adagiário português, esta é algo escassa:
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- “Agosto, candeeiro posto. “
- “Em Agosto candeeiro posto. “
- “Em Setembro palha no palheiro e meninas ao candeeiro. “
- “O pé do candeeiro é o pior iluminado. “
- “Um bom companheiro alumia como um candeeiro. “
- “Um bom conselheiro alumia como um candeeiro.”
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O mesmo se passa com o seu registo no cancioneiro popular, algumas vezes associado ao amor:
O
“Candeeiro ao meio da sala,
Alumia os quatro cantos,
Meu amor, a tua fala
dá por aí dias santos.” [8]
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“Candeeiro, que estás tão alto,
Desce e vem para baixo.
O meu par é pequenino,
Já sei que o perco aqui.” [2] - Cantiga de pé-quebrado – Vale de Santiago-Odemira.
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O candeeiro aparece ainda comparado ao astro rei:
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“Alumiar duas salas
Como pode um candeeiro?
Também o Sol sozinho
Alumia o dia inteiro.” [2] - Beja
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Aparece igualmente em composições de escárnio e mal dizer:
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“Cala-te ahi bocca aberta,
Rodilha de candeeiro,
Tens-te por espertalhão,
Tu és um pantomineiro.” [6]
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Os candeeiros estão igualmente presentes no corpo de adivinhas portuguesas, cuja solução é, como não podia deixar de ser, o candeeeiro:
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"Burro de ferro
Albarda de linho
Tic tic como um passarinho.” [9]
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“Qual é coisa, qual é ela, que tem um furo e não rebenta?” [9]
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No domínio das alcunhas alentejanas são conhecidas as seguintes:
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- CANDEEIRO = Alcunha outorgada a um indivíduo que é proprietário dum café homónimo (Alter do Chão). [7]
- CANDEEIRO DAS CABANAS = designação atribuída a um indivíduo que é trigueiro (Moura). [7]
- CANDEEIRO DE BOLA = O visado recebeu esta designação porque é alto e tem a cabeça muito redonda (Ourique). [7]
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No âmbito da toponímia são de registar os seguintes topónimos:
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- "CANDEEIRA – Lugar da Freguesia de Avelã de Cima, concelho de Anadia." [3]
- "CANDEEIRA - Lugar da Freguesia de Ribeirão, concelho de Vila Nova de Famalicão." [3]
- "CANDEEIRA – Lugar da Freguesia de Sandim, concelho de Vila Nova de Gaia." [3]
- "CANDEEIROS – Lugar da Freguesia de Benedita, concelho de Alcobaça." [3]
- "CANDEEIROS – Serra com 487 metros de altitude e que abrange os concelhos de Rio Maior, Alcobaça e porto de Mós." [3]
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NOTA FINAL
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Que ninguém fique com a ideia errada de que a substituição do candeeiro a petróleo pela lâmpada eléctrica, empobreceu a literatura oral. Pelo contrário, dado o seu carácter dinâmico, esta não deixa de registar o aparecimento de inovações tecnológicas, o que se traduz afinal num enriquecimento da própria literatura oral. Nesse contexto de inovação tecnológica, exemplificamos com uma adivinha, cuja solução,é obviamente a lâmpada eléctrica de incandescência:
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- “O que é, que tem a barriga de vidro e a tripa de arame?” [4]
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BIBLIOGRAFIA
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[1] – DELGADO, Manuel Joaquim Delgado. Subsídio para o Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo. Vol. I. Instituto Nacional de Investigação Científica. Lisboa, 1980.
[2] - DELICADO, António. Adagios portuguezes reduzidos a lugares communs / pello lecenciado Antonio Delicado, Prior da Parrochial Igreja de Nossa Senhora da charidade, termo da cidade de Evora. Officina de Domingos Lopes Rosa. Lisboa, 1651.
[3] – FRAZÃO, A. C. Amaral. Novo Dicionário Corográfico de Portugal. Editorial Domingos Barreira. Porto, 1981.
[4] - LIMA, Fernando de Castro Pires de. Qual é a coisa qual é ela? Portugália Editora. Lisboa, 1957.
[5] – MEADOWCROFT, Enid Lamonte. Edison.7ª edição. Livraria Civilização. Porto 1981.
[6] - PIRES, A. Thomaz. Cantos Populares Portugueses, vol. IV. Typographia e Stereotypia Progresso. Elvas, 1910.
[7] – RAMOS, Francisco Martins & SILVA, Carlos Alberto da. Tratado das Alcunhas Alentejanas. 2ª edição. Edições Colibri. Lisboa, 2003.
[8] - SANTOS, Victor. Cancioneiro Alentejano – Poesia Popular. Livraria Portugal. Lisboa, 1959.
[9] TOPA, Francisco. “ADIVINHAS — Duas colecções particulares da primeira metade do século” in Encontros, n.º 1. Sociedade de Estudos e Intervenção Patrimonial. Porto, 1995.



Parte da minha colecção de iluminária popular, com os candeeiros a petróleo à esquerda.

Edison assegurando a manutenção dos candeeiros de petróleo da casa de seus pais. Ilistração de Harve Stein para o livro [5] citado na bibliografia.
  
Uma moderna lãmpada de incandescência.


quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

Gíria portuguesa ilustrada - 4

Corpo à vela = Corpo nú [2]
A PRIMAVERA (1886) - William-Adolphe Bouguereau (1825–1905). Óleo sobre tela (117,79x201,3 cm). Museu de Arte Joslyn, Omaha, Nebraska. EUA.
Coscuvilhice = Intriga [1]
Bilhete-postal ilustrado de editor desconhecido, dos primórdios do séc. XX. (14x9 cm).
Dar um pézinho de dança = Dançar [2]
A DANÇA DO CASAMENTO (SÉC. XVII) - Brueghel, o velho. Óleo sobre cobre (50x40 cm). Museu das Belas Artes, Bordéus.

Fato de ver a Deus = A melhor roupa [3]
Bilhete-postal ilustrado de fabrico alemão, dos primórdios do séc. XX. (14x9 cm).

Ferro-velho = Comprador e vendedor de coisas usadas [1]
Chaby Pinheiro no Ferro Velho da Feira da Ladra. Filme "Lisboa" (1930) de Leitão de Barros (1896-1967). Bilhete-postal ilustrado, edição Ocogravura, s/d (14x9 cm).

Mamalhuda = Mulher com grandes seios [3]
Batoque = Indivíduo baixo e gordo [3]
Bilhete-postal ilustrado de editor desconhecido, dos primórdios do séc. XX. (14x9 cm).

Mandar um telegrama = Defecar [4]
Bilhete-postal ilustrado de fabrico português, dos meados do séc. XX. (14x9 cm).

Trocar o passo = Ir bêbado [4]
Bilhete-postal ilustrado de fabrico português, dos meados do séc. XX.(14x9 cm).
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BIBLIOGRAFIA
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[1] - BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Gomes de Carvalho - Editor. Lisboa, 1901.
[2] - NEVES, Orlando. Dicionário de Expressões Correntes. Editorial Notícias. Lisboa, 1998.
[3] - NOBRE, Eduardo. Dicionário de Calão. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1986.
[4] - PRAÇA, Afonso. Novo Dicionário de Calão. Editorial Notícias. Lisboa, 2001.

domingo, 16 de janeiro de 2011

Refeição de provérbios


Almoço dos ganhões – Aguiar. Fotografia recolhida no blogue Mundo Português.

O alentejano é comummente reconhecido como dado aos prazeres da mesa, uma vez que o clima desaconselha pressas desgastantes e “ barriga vazia não conhece alegria”. Daí que a riqueza da gastronomia alentejana, possa ser responsável por padecimentos que não são de hoje, como são o caso da tensão, do colesterol e do ácido úrico elevados, associados a obesidade e a excesso de peso. A essas pessoas em risco, recomendo profilacticamente a ingestão da seguinte refeição de provérbios:
BARRIGA
A barriga faz a perna andar.
Barriga cheia, pé na estrada.
Não tenhas mais olhos do que barriga.
REFEIÇÕES
Quem bem almoça, melhor janta.
Faz bem jejuar, depois de jantar.
Quem ceia vinho, almoça água.
COMER
Quem come até se fartar, cedo vem a jejuar.
Quem come fiado anda magro.
Quem come pouco, aproveita muito.
FOME
A fome é boa cozinheira.
A fome é o melhor tempero.
Fome e esperar fazem rabiar.
FARTURA
Comer à tripa forra.
De fartas ceias, estão as sepulturas cheias.
Quem arrota, bem almoça.
CALDO
Caldo sem pão, só no Inferno o dão.
Cautela e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém.
Comida sem caldo, papo seco.
SOPA
Antes da sopa, molha-se a boca; sopa em meio, copo cheio; sopa acabada, goela lavada.
Do prato à boca, perde-se a sopa.
Sopa de ganhão, cada três um pão.
PEIXE
A sardinha de S. João unta o pão.
Peixe fresco, come-o cedo.
Quanto maior é o peixe, melhor é o sabor.
CARNE
Carne de vaca, bem cozida e mal assada.
Leitão de um mês, pato de três.
Quando não há lombo, linguiça como.
PÃO
Comida sem pão é comida de lambão.
Mais vale pão duro que nenhum.
Não há mau pão com boa fome.
QUEIJO
Leite de cabras, queijo de ovelhas e manteiga de vaca.
Pão com olhos, queijo sem olhos e vinho que salte aos olhos.
Pão e queijo, mesa posta é.
SOBREMESA
Da noz o figo é bom amigo.
O melão e a melancia só se conhecem depois de abertos.
O que é doce nunca amargou.
BEBER
Come e bebe bem, quem bem trabalha.
Quem bebe muito vinho, perde o tino.
Quem muito bebe, tarde ou nunca paga o que deve.
ÁGUA
Água corrente não mata gente.
Nunca digas: desta água não beberei.
Quem come salgado, bebe dobrado.
VINHO
Alegrai-vos, tripas, que ai vem o vinho.
Bom vinho não precisa de rolha.
Quando o vinho desce, as palavras sobem.
CAFÉ
Café de cima, vinho do meio e chá do fundo.
Café do primeiro e chá do derradeiro.
Café sem bucha, meu bem, não puxa.
MEDICINA CASEIRA
Comer devagar faz a vida durar.
Não comas quente: não perderás o dente.
Depois de jantar e depois de cear, passear.
Refeições destas se não atenuarem o mal de que padeceis, terão pelo menos o mérito de reforçar a vossa identidade cultural, facto que é igualmente assaz importante. Por isso, sirvam-se à vontade, que esta refeição foi confeccionada artesanalmente com a finalidade de vos limpar a alma, na procura de raízes da nossa memória colectiva.

Hernâni Matos
Publicado inicialmente em 16 de Janeiro de 2011