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sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Cerâmica de Redondo – Os alguidares

 


“Alguidar, alguidar
Que feito foste ao luar
Debaixo das sete estrelas
Com cuspinhos de donzelas
Te mandei eu amassar”
Gil Vicente - Auto das Fadas
 (Fala da feiticeira)


Singularidade e multifuncionalidade
Etimologicamente, a palavra “alguidar” deriva do árabe “al-gidar” (escudela grande), facto que é revelador da origem árabe do recipiente de barro, a semelhança de outros como albarrada[1], alcadefe[2], alcatruz[3], aljofaina[4], almofia[5], almarraxa[6], atanor[7].
Um alguidar de barro é um recipiente com a morfologia de um cone truncado e invertido. Daí que seja mais largo que alto e que a abertura (boca) tenha diâmetro muito superior ao do fundo. A singularidade morfológica deste tipo de vasilhame nunca foi impeditiva da sua multifuncionalidade nos lares. Aí era usado para: amassar o pão, preparar vegetais, lavar a loiça, levar um assado ao forno, recolher o sangue na matança do porco, temperar carne de porco (a chamada carne de alguidar), migar a carne de porco usada nos diversos tipos de enchidos, preparar a sabonária, transportar a roupa a lavar no rio, dar banho às crianças, lavar as mãos, lavar os pés, lavar da cintura para cima, aparar a água que caía do telhado, etc.
Lá diz o rifão: “A necessidade é mestra de engenho”. Daí que a multifuncionalidade do alguidar, como de resto, doutras peças oláricas, seja um corolário natural, resultante da necessidade de as valorizar, sobretudo entre as classes populares, devido aos magros rendimentos.
A utilização dos alguidares fazia parte das tarefas femininas e era a mulher que no lar se encarregava da sua aquisição e usabilidade, mandando-os gatear sempre que estes se quebravam, forçando a sua utilização até ao limite. Era uma filosofia de vida inspirada no conceito prático de desperdício zero, determinado pela magreza dos rendimentos.
A fragilidade do barro viria a conduzir sucessivamente à utilização de alguidares de zinco, de alumínio e por fim de plástico, com toda a tragédia ambiental que lhe está associada e é bem conhecida.

Alguidares de Redondo
Os alguidares de Redondo são de diferentes tamanhos e capacidades, conforme a funcionalidade que lhes está destinada. O bordo é geralmente liso, mas também pode ser repenicado. Os alguidares podem encontrar-se ou não decorados. A decoração dos alguidares pode ser feita apenas na superfície lateral interna ou cumulativamente no fundo do alguidar. Vejamos alguns dos tipos de decoração por mim identificados: a) DECORAÇÃO COM PALMAS. b) DECORAÇÃO COM ARCADAS. c) DECORAÇÃO COM PALMAS E ARCADAS - As palmas, em número variável (geralmente entre 4 e 7) são obtidas por escorrimento de engobe amarelo sobre o barro e dirigem-se do fundo para o bordo do alguidar. As palmas podem-se encontrar ou não com outras palmas no bordo do alguidar. Quando as palmas não se encontram com outras no bordo do alguidar, estão ligadas entre si por arcadas em número variável, obtidas por escorrimento de engobe amarelo sobre o barro vermelho, apresentando as cavidades viradas para o bordo do alguidar. As palmas podem estar esponjadas a verde ao longo da respectiva superfície ou apenas no bordo dos alguidares. d) DECORAÇÃO POR PINTURA - Neste tipo de decoração são utilizados elementos geométricos, fitomórficos e zoomórficos. e) DECORAÇÃO ABSTRACTA - Este género de decoração recorre à utilização de laivos, esponjados, salpicos e escorridos.

Cultura popular
No domínio da gíria popular são conhecidas as expressões: - ALGUIDARES DE CIMA, ALGUIDARES DE BAIXO = Em parte incerta; - BEIÇOS DE ALGUIDAR = Designação dada a alguém que lábios grossos e muito vermelhos; - CHAPÉU De ALGUIDAR = Chapéu abeiro; - DE FACA E ALGUIDAR = Expressão idiomática que descreve uma situação de violência que pode culminar no uso de armas brancas e num desfecho sangrento. A expressão é aplicável a discussões, notícias, estórias, romances, filmes, canções; - TRAZ A FACA E O ALGUIDAR = Frase com que se assustam as crianças, ameaçando-as de as matarem.
No âmbito do adagiário popular localizámos os adágios: “A arma e o alguidar não se hão de emprestar”, “Mulher e alguidar não se deve emprestar”, “A arma e o alguidar não se hão-de emprestar”, “Perda de marido, perda de alguidar, um quebrado, outro no poial”, “Por um dedal de vento não se perca um alguidar de tripas”, “Quem toma o alguidar pelo fundo e a mulher pela palavra, pode dizer que não tem nada”.
A nível de lengalengas é bem conhecida aquela que se intitula “As refeições: “Que é o almoço? / Cascas de tremoço. / Que é o jantar? / Beiços de alguidar. / Que é a ceia? / Morrões de candeia.”
Do cancioneiro popular, começo por destacar uma quadra conterrânea dos alguidares que foram objecto do presente estudo “Lá na vila de Redondo / Fazem-se pratos e tigelas; / Fazem-se telhas e adobinhos, / Alguidares e Panelas.” (10), bem como esta outra “Se eu fôra rapaz solteiro / Nunca me havia casar, / P ’ra mulher me não pedir / Certã, panella, alguidar.” (3). Os alguidares onde comiam os ganhões eram conhecidos por “barranhões” e sobre eles a quadra: “Cala-te, meu papa-açorda, / Meu alimpa barranhões, / Já te foram convidar / P’rò refugo dos ganhões.” (5)
Na área da gastronomia temos a "Carne de Alguidar", prato confeccionado com carne de porco temperada com pimentão e o chamado "Licor de Alguidar", produzido de forma artesanal seguindo uma tradição secular da gente da Beira Mar, em Aveiro.

Remate
Apesar da sua simplicidade e singularidade morfológicas e não obstante a possibilidade de não se encontrarem decorados e serem monocromáticos, os alguidares são exemplares oláricos que encerram em si uma enorme riqueza, fruto da conjugação da sua multifuncionalidade e da sua forte presença na cultura popular.

BIBLIOGRAFIA
(1) - ALMEIDA; José João. Dicionário aberto de calão e expressões idiomáticas. [Em linha]. Disponível em: https://natura.di.uminho.pt/~jj/pln/calao/dicionario.pdf . [Consultado em 21 de Outubro de 2022].
(2) - BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Gomes de Carvalho-Editor. Lisboa, 1901.
(3) - BRAGA, Theophilo. Cancioneiro Popular Portuguez. J. A. RODRIGUES & C.ª - EDITORES. Lisboa, 1911.
(4) - DELICADO, António. Adagios portuguezes reduzidos a lugares communs / pello lecenciado Antonio Delicado, Prior da Parrochial Igreja de Nossa Senhora da charidade, termo da cidade de Euora. Officina de Domingos Lopes Rosa. Lisboa, 1651.
(5) - GIACOMETTI, Michel. Cancioneiro Popular Português. Círculo Leitores. Lisboa, 1981.
LAPA, Albino. Dicionário de Calão. Edição do Autor. Lisboa, 1959.
(6) - MACHADO, José Pedro. O Grande Livro dos Provérbios. Editorial Notícias. Lisboa, 1996.
MÃE ME QUER. Lengalengas pequenas para crianças pequenas. [Em linha]. Disponível em: https://maemequer.sapo.pt/desenvolvimento-infantil/crescer/brincar/lengalengas-pequenas/ . [Consultado em 21 de Outubro de 2022].
(7) - MARQUES DA COSTA, José Ricardo. O Livro dos Provérbios Portugueses. Editorial Presença. Lisboa, 1999.
(8) - NEVES, Orlando. Dicionário de Expressões Correntes (2º ed.). Editorial Notícias. Lisboa, 2000.
(9) - PRAÇA, Afonso. Novo Dicionário de Calão. Editorial Notícias. Lisboa, 2001.
(10) - REDONDO IN OLD TIMES. Cancioneiro Popular da vila de Redondo, 1929. [Em linha]. Disponível em: http://redondoinoldtimes.blogspot.com/2015/06/cancioneiro-popular-da-vila-de-redondo.html . [Consultado em 21 de Outubro de 2022].
(11) – RIBEIRO, Aquilino. Terras do demo. Livrarias Aillaud & Bertrand. Lisboa, 1919.
(12) - ROLAND, Francisco. ADAGIOS, PROVERBIOS, RIFÃOS E ANEXINS DA LINGUA PORTUGUEZA. Tirados dos melhores Autores Nacionais, e recopilados por ordem Alfabética por F.R.I.L.E.L. Typographia Rollandiana. Lisboa, 1780.
(13) - SANTOS, António Nogueira. Novo dicionário de expressões idiomáticas. Edições João Sá da Costa. Lisboa, 1990.
(14) - SIMÕES, Guilherme Augusto. Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1993.
(15) - VASCONCELLOS, Carolina Michaelis. Algumas Palavras a respeito de Púcaros de Portugal. Imprensa da Universidade. Coimbra, 1921.
(16) - VIEIRA, Frei Domingos. Grande diccionario portuguez ou thesouro da lingua portugueza. 4 Vols. Porto: Ed. Chardron e Bartholomeu H. de Moraes. Rio de Janeiro, 1871-1874.

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[1] Copo de barro para água e onde muitas vezes se punham flores.
[2] Vasilha de barro, sobre a qual o taberneiro mede o vinho e que recebe as verteduras.
[3] Vaso de barro, que levanta a água nas noras.
[4] Pequena bacia de barro, usada num lavatório.
[5] Espécie de tijela de barro, de fundo largo e bordos quási perpendiculares.
[6] Recipiente de barro com orifícios no bojo para borrifar.
[7] Forno em barro usado pelos alquimistas.


















terça-feira, 27 de setembro de 2022

Esta é a estória de ser coleccionador



Ando sempre à "coca" de coisas que povoam o meu imaginário. Nessas andanças descubro também, coisas que nunca me passou pela cabeça que pudessem existir e outras que jamais pensei que pudessem vir até mim. Sim, porque por vezes, as coisas vêm até mim, sem as procurar. É como se eu as atraísse e há coisas a que de modo algum consigo resistir..
Tenho o coleccionismo na massa do sangue. Sou geneticamente um coleccionador e cumulativamente um contador de estórias, não só de estórias reais, mas também das estórias que as coisas me contam sobre os segredos que a sua existência encerra. Bom e há ainda também as estórias que eu invento, que me nascem, florescem e frutificam na cabeça. São estórias e mais estórias...

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Hoje há perdiz


Prato covo, de grandes dimensões (40 x 28 x 10 cm), de aba larga, ligeiramente
côncava.  Decoração esgrafitada a ocre castanho e pintada com base em tricromia
verde-amarelo-- ocre castanho, sobre fundo amarelo palha. Olaria e decorador
desconhecidos. 1ª metade do séc. XX.
 
Ao meu amigo António Carmelo Aires,
afamado caçador, reputado gastrónomo
e ilustre investigador da cerâmica de Redondo.

Entradas
A afirmação que escolhi como título do presente escrito tem um triplo alcance.
Por um lado, o prato que foi objecto da minha atenção e estudo, ostenta no fundo uma perdiz como elemento decorativo principal.
Em segundo lugar, porque da visualização do mesmo ressalta a existência de marcas de uso que a lavagem não conseguiu remover. São elas as falhas de vidrado e a patine conferida pela gordura nela entranhada. Já no tardoz, a patine assume a forma de uma camada negra entranhada no fundo do prato, configurando partículas de carvão, fixadas por gordura e que indiciam que o prato, de considerável covo, tenha sido usado na confecção de assados em forno de lenha. E, dada a decoração do prato, não me repugna nada admitir que possa ter sido usado para fazer assados de perdiz e tenha sido sempre esse o seu uso. Quem sabe até, se em casa de algum caçador.
Em terceiro lugar, porque entendi fazer uma abordagem etnográfica do tema “perdiz”, centrada na sua gastronomia e em múltiplos aspectos da sua tradição oral.

O prato
Prato covo, de grandes dimensões (40 x 28 x 10 cm), de aba larga, ligeiramente côncava. Decoração esgrafitada a ocre castanho e pintada com base em tricromia verde-amarelo-ocre castanho, sobre fundo amarelo palha. Olaria e decorador desconhecidos. 1ª metade do séc. XX.
A aba encontra-se enfeitada com sucessivos pedúnculos num total de onze, com geometria sinusoidal achatada, ladeados de folhas verdes e que culminam em botões a ocre castanho (decoração olho-de-boi), orientados no sentido anti-horário.
O fundo está decorado com uma perdiz a olhar para a esquerda, pousada num ramo do qual saem dois pedúnculos com folhas e flores, que a ladeiam.

Gastronomia
A carne de perdiz tem muito baixo teor de gordura.
 É uma carne muito muito saborosa, macia e dietética que pode ser cozinhada fervida, estufada, frita, assada e recheada. A composição da carne de perdiz e as suas propriedades tornam-na uma carne de uso aconselhado em culinária. O conteúdo calórico é mínimo, pelo que a tornam indicada para pessoas que sofrem de obesidade. A composição inclui enzimas que aceleram o metabolismo e removem o colesterol. Regula o nível de hemoglobina no sangue, relaxa e fortalece o sistema nervoso, melhora a memória e aumenta a concentração e ajuda a tratar doenças respiratórias. É afrodisíaca. Normaliza o trato digestivo em caso de envenenamento, obstipação e diarreia. Regula os níveis de biotina, a qual regula o metabolismo do açúcar e trava a progressão da diabetes.
Existe um número considerável de pratos em cuja confecção entra a perdiz. Destaco alguns dos mais conhecidos e afamados: açorda de perdiz, arroz de perdiz à Fialho de Almeida, canja de perdiz, cataplana de perdiz e cogumelos silvestres, confit de perdiz, perdiz à algarvia, perdiz à castelhana (receita de Bulhão Pato), perdiz à Convento da Cartuxa, perdiz à Convento de Alcântara, perdiz à Montemor, perdiz assada, perdiz com couve, perdiz com repolho, perdiz de escabeche, perdiz estufada, perdiz fria à moda de Coimbra, perdiz frita à caçador, perdiz na cerveja, raviolli de perdiz, sopa de castanhas e perdiz, tigelada de perdiz.

Adagiário
O adagiário da perdiz incide sobre a gastronomia da ave e sobre o desenvolvimento e caça da mesma, incidindo então sobre quase todos os meses do ano:
- A perdiz e o frade, de manhã ou à tarde.
- A perdiz é perdida, se quente não é comida.
- A perdiz, com a mão no nariz.
- Antes pardal na mão que perdiz a voar.
- Caça à perdiz com o vento pelo nariz e às narcejas pelas costas o vejas.
- Das aves, boa é a perdiz, mas melhor a codorniz.
- Do peixe a pescada, da ave a perdiz, da carne a vitela.
- Do peixe a pescada, da carne a perdiz.

- Em Abril, cheio está o covil.[1]
- Em Agosto espingardas ao rosto [2]
- Em Fevereiro, recocaneiro. [3]
- Em Janeiro acasala com o seu parceiro. [4]
- Em Janeiro, nem galgo lebreiro, nem açor perdigueiro.
- Em Maio chocai-o. [5]
- Em Março, três ou quatro. [6]
- Enquanto não é tempo de muda, caçai comigo aos perdigotos.
- Fevereiro couveiro faz a perdiz ao poleiro.
- Maio, Maio, pio pio pelo mato.
- Não há carne perdida, senão lebre assada e perdiz cozida.
- O coelho e a perdiz, uma mão na boca e outra no nariz.
- Perdigão Gordo, pássara magra.
- Perdigão perdeu a pena, não há mal que lhe não venha.
- Perdiz açorada, meia assada.
- Perdiz derreada, perdigotos guarda.
- Quando a perdiz canta, bom prado tem.
- Quem a truta come assada e cozida a perdiz, não sabe o que faz nem sabe o que diz.
- Quem aos trinta anos come lebre assada e cozida a perdiz, não sabe o que faz nem sabe o que diz.
- São João, leva-os ao pão.
[7]
- São Tiago(ua) leva-os à água. [8]
Actualmente a caça à perdiz só está autorizada no início de Outubro, mas antigamente começava a 15 de Agosto. Os caçadores tinham então memorizada uma sequência de adágios sobre perdizes, relativos a cada mês do ano e através dela sabiam reconhecer a fase da evolução das perdizes desde o acasalamento até à abertura da caça. Uma tal sequência, à laia de lengalenga podia ser esta: “Em Janeiro acasala com o seu parceiro; Em Fevereiro, recocaneiro; Em Março, três ou quatro; Em Abril, cheio está o covil; Em Maio chocai-o; São João, leva-os ao pão; São Tiago(ua) leva-os à água; “Em Agosto espingardas ao rosto”. Todavia a sequência podia ter composição diferente.

Cancioneiro
É diminuto o cancioneiro popular da perdiz. Todavia entendi dele seleccionar a quadra “Debaixo da trovisqueira / Saiu a perdiz cantando; / Deixemos falar quem fala, / É mundo, vamos andando.” (5), seguida desta outra “A perdiz anda no monte, / Come da erva que quer; / É como o moço solteiro / Enquanto não tem mulher.” (9) e ainda de outra “A perdiz canta no bosque, / Na charneca o lavrador. / Eu só canto quando vejo / Os olhos do meu amor.” (10)

Lengalengas
Localizei apenas 3 lengalengas onde intervém a perdiz e delas destaquei a seguinte: “Serapico, pico, pico / Quem te fez tamanho bico? / Foi a velha do capuz / Que anda lá com uma luz / À procura da perdiz / Para a filha do juíz / Que está presa pelo nariz!”

Adivinhas
A consulta de diversos livros de adivinhas, apenas me permitiu identificar uma em cuja formulação entra a perdiz como personagem: “Um atirador disparou sobre três perdizes e matou uma. Quantas ficaram?” A resposta, para alguns algo imprevista e da qual está ausente o cálculo mental é “Não ficou nenhuma, que as outras fugiram”.

Alcunhas alentejanas
É reduzido o número de alcunhas alentejanas em que intervém a perdiz: PERDIZ (alcunha outorgada a indivíduo que caça muitas perdizes (Avis e Estremoz), PERDIZ CHUMBADA (denominação atribuída a indivíduo que em criança apanhou uma perdiz à mão, mas ela já estava chumbada (Alter do Chão)), PERDIZEIRO (o visado consegue caçar muitas perdizes).

Toponímia
Também é escasso o número de presenças da perdiz na toponímia portuguesa. Apenas localizei os seguintes topónimos: BECO DAS PERDIZES (arruamento de Albufeira), CAMINHO DAS PERDIZES (arruamento em Arruda dos Vinhos), FONTE DAS PERDIZES (fonte de água potável no concelho de Ourém), FONTE DAS PERDIZES (lugar do concelho de Grândola), MONTE DAS PERDIZES (lugar da zona norte do Parque Florestal de Monsanto), MONTE DAS PERDIZES (quinta agrícola do sítio do Quatrim - Quelfes, Olhão, com alojamento turístico), PARQUE DAS PERDIZES (parque de Paço de Arcos), QUINTA DO VALE DA PERDIZ (lugar nas proximidades de Torre de Moncorvo), RUA DA PERDIZ (arruamento de Ponte de Lima), VILAR DE PERDIZES (freguesia do concelho de Montalegre, celebre pela realização dos Congressos de Medicina Popular, impulsionados pelo padre Fontes desde 1983 e que ali atraem bruxos, cartomantes, curandeiros e videntes).

Gíria popular
É parca a gíria popular sobre a perdiz. Todavia foi-me possível identificar alguns termos: OLHO DE PERDIZ (calosidade redonda e pequena entre os dedos dos pés), OLHO DE PERDIZ (padrão de tecido de lã), OLHO DE PERDIZ (qualidade de madeira utilizada em mobiliário), OLHO DE PERDIZ (variedade de batata de polpa e pele amarelas, com manchas vermelhas), OLHO DE PERDIZ (variedade de figo arredondado e adocicado, de tamanho médio e coloração arroxeada), PÉ DE PERDIZ (arbusto medicinal cuja raiz tem acção anti-inflamatória, cicatrizante, anticancerígena, antimicótica, antibacteriana e antiviral, sendo utilizada no combate de inúmeras doenças), PÉ DE PERDIZ (casta de videira de uva branca), PÉ DE PERDIZ (variedade de pera), PERDIZ (peça teatral que deu prejuízo), PERDIZ (receita que não cobre a despesa), PERDIZ DE ALQUEIVE (sapo), PERDIZADA (bando de perdizes), SALTO DE PERDIZ (salto de sapato alto, vermelho, muito usado pelas elegantes no séc. XVIII).

Desenlace
Coleccionar não é só juntar exemplares daquilo que se decidiu coleccionar. Pelo contrário, exige uma observação minuciosa e atenta, bem como um estudo profundo desses exemplares, independentemente da sua origem, natureza, composição, tipologia e função. Foi o que se passou com o prato de Redondo que foi objecto do presente escrito. Encontrei-o disponível no mercado de antiguidades e entre nós estabeleceram-se, de imediato, fortes laços de empatia, já que o prato começou a falar comigo. Na sequência da sua aquisição e porque sou um contador de estórias, tinha que falar do prato, relatando as estórias que ele tinha para me contar. Foi o que procurei fazer com espírito de missão, missão que não terminou aqui e que será prosseguida inescapavelmente com o surgimento do próximo objecto olárico, igualmente capaz de estabelecer comigo um relacionamento empático.

BIBLIOGRAFIA
(1) - AMIGOS DE CAPELINS. A perdiz [Em linha]. Disponível em: https://amigosdecapelins.blogspot.com/2020/11/662-fauna-das-terras-de-capelins-perdiz.html [Consultado em 22 de Setembro de 2022].
(2) - BESSA, Alberto. A Gíria Portugueza. Gomes de Carvalho-Editor. Lisboa, 1901.
(3) - COMIDA SAUDÁVEL PERTO DE MIM. Perdiz [Em linha]. Disponível em: https://pt.healthy-food-near-me.com/partridge-description-of-meat-benefits-and-harm-to-human-health/ [Consultado em 18 de Setembro de 2022].
(4) - MARQUES DA COSTA, José Ricardo. O Livro dos Provérbios Portugueses. Editorial Presença. Lisboa, 1999.
(5) - COUTINHO, Artur. Cancioneiro da Serra de Arga. Edição do autor. Viana do castelo, 1980.
(6) – DELICADO, António. Adagios portuguezes reduzidos a lugares communs / pello lecenciado Antonio Delicado, Prior da Parrochial Igreja de Nossa Senhora da charidade, termo da cidade de Euora. Officina de Domingos Lopes Rosa. Lisboa, 1651.
(7) - MOUTINHO, José Viale. Adivinhas Populares Portuguesas. 6ª edição. Editorial Domingos Barreira. Porto, 1988.
(8) - RAMOS, Francisco Martins; SILVA, Carlos Alberto da. Tratado das Alcunhas Alentejanas. 2ª edição. Edições Colibri. Lisboa, 2003.
(9) - BRAGA, Theophilo. Cancioneiro Popular Português. 2ª ed. A. Rodrigues & CV. Editores. Lisboa, 191.
(10) - THOMAZ PIRES, A. Cantos Populares Portugueses, vol. II. Typographia Progesso. Elvas, 1905.
(11) - VÁRIOS. Grande Enciclopédia Luso-Brasileira, vol. 21. Lisboa, Rio de Janeiro, s/d.

 


[1] Significa que durante o mês de Abril a perdiz continuava a pôr ovos, que podiam atingir a dezena e meia e enchiam o ninho.
[2] Expressa que em Agosto, os perdigotos já estavam bem-criados, pelo que podiam ser caçados.
[3] Revela que em Fevereiro, o casal perdiz-perdigão recocava, isto é, manifestava um cantar manso e terno.
[4] Indica que é em Janeiro que uma perdiz acasalava com um perdigão, ficando juntos até à criação dos perdigotos.
[5] Diz-nos que no mês de Maio, as perdizes chocavam os ovos e nasciam os perdigotos.
[6] Significa que em Março, a perdiz começara a pôr ovos e o ninho já devia ter 3 ou 4.
[7] São João comemora-se a 24 de Junho, mês das colheitas por os cereais estarem maduros, alimentando as perdizes e os perdigotos. Este o sentido do adágio.
[8] São Tiago comemora-se a 25 de Julho, mês em que os perdigotos já estavam crescidos e voavam por cima de cursos de água, onde iam beber. Tal o sentido do adágio.


domingo, 11 de setembro de 2022

Cerâmica etnográfica de Redondo


Cozedura do pão. Olaria Beira. 3.º quartel do séc. XX

A cerâmica de Redondo é uma cerâmica muitas vezes duplamente etnográfica. Em 1.º lugar pelo próprio processo de produção, o qual tem características identitárias fortemente locais. Em 2.º lugar pelo registo etnográfico dos usos e costumes da região, usado na decoração das peças oláricas.
Prato raso, de grandes dimensões, de aba larga, ligeiramente côncava. Decoração esgrafitada e pintada com base em tetracromia verde-azul-preto-ocre castanho, sobre fundo amarelado. Decoração floral da aba, repetindo o motivo quatro vezes. Fundo decorado com cena campestre representando uma camponesa a desenfornar o pão. Olaria Beira. 3.º quartel do séc. XX.

quarta-feira, 3 de agosto de 2022

O Sporting na cerâmica de Redondo


Prato em louça de barro vermelho, vidrado, de Redondo.
Olaria desconhecida Último quartel do séc. XX.


Pontapé de saída
É sabido que sou benfiquista de alma e coração [i]. Todavia e para além disso, sou entre muitas outras coisas, coleccionador e estudioso de peças oláricas de Redondo. Foi nesta última condição que adquiri recentemente e por bom preço, um prato com o símbolo do Sporting Clube de Portugal, cuja descrição faço de imediato.

Símbolo do Sporting Clube de Portugal
Trata-se de um prato raso, de médias dimensões, de aba larga, ligeiramente côncava. Decoração esgrafitada e pintada com base em dicromia verde-amarelo, sobre engobe amarelo-palha.
Aba decorada com folhas amarelas e verdes dispostas alternamente sobre uma curva sinusoidal fechada.
O fundo está decorado com o símbolo do Sporting Clube de Portugal, modelo de 1945 [ii], de forma recortada em forma de escudo. Em campo verde [iii], um leão rampante [iv].
A coroar o símbolo, a sigla do clube. Leão e sigla são em amarelo, substituindo a tradicional cor branca, que tal como o verde, é uma cor característica do clube.

Leões e lagartos
Não admira que “leões” seja um epíteto aplicável a sportinguistas, já que o leão integra o símbolo do clube desde a sua fundação. E “lagartos”? Qual a origem desta designação? No final do ano de 1951, o Sporting lançou uma espécie de títulos, que os sportinguistas podiam comprar. O dinheiro arrecadado destinava-se a financiar a construção do Estádio José de Alvalade, o qual foi inaugurado a 10 de Junho de 1956. Os títulos vendidos a sócios e adeptos eram conhecidos por “lagartos”, designação que acabaria por se tornar numa alcunha aplicada a sócios e adeptos.

E agora?
Agora fico à espera que me apareçam outras peças oláricas, seja elas quais forem, com os símbolos doutros clubes, que as há. De facto, conheço também pratos com símbolos de clubes como: Clube de Futebol “Os Belenenses” (Lisboa), Juventude Sport Clube (Évora) e Lusitano Ginásio Clube (Évora). Não deixarei de as estudar e de as apresentar ao leitor. Fica prometido.


BIBLIOGRAFIA
- DICIONÁRIO PRIBERAM DA LÍNGUA PORTUGUESA. Rampante. [Em linha]. Disponível em https://dicionario.priberam.org/rampante [Consultado em 03-08-2022].
- MAIS FUTEBOL. Lagarto, lagarto: de onde vem afinal a alcunha do Sporting? [Em linha]. Disponível em https://maisfutebol.iol.pt/liga/lagartos/lagarto-lagarto-de-onde-vem-afinal-a-alcunha-do-sporting [Consultado em 03-08-2022].
- SPORTING CLUBE DE PORTUGAL. Emblemas. [Em linha]. Disponível em https://www.sporting.pt/pt/clube/historia/emblemas [Consultado em 03-08-2022].


[ii] Trata-se do 4.º modelo de emblema do Sporting Clube de Portugal.
[iii] A cor verde simboliza a esperança no sucesso do Sporting Clube de Portugal.
[iv] Diz-se do quadrúpede que tem as patas traseiras em plano inferior às dianteiras, e a cabeça voltada para o lado direito do escudo. O leão rampante sempre esteve presente no símbolo do clube desde a sua fundação em 1906, sendo o leão rampante um símbolo heráldico de D. Fernando de Castelo Branco (Pombeiro), um dos fundadores do clube.

sexta-feira, 13 de maio de 2022

Lembrança de oleiros finórios

 


O que não é lembrado,
não é dado nem agradecido.
PROVÉRBIO POPULAR

Onde se fala de lembranças

Uma lembrança é um objecto que se compra e se oferece a outrem com a finalidade de despertar em quem o recebeu, a recordação do ofertante e de um determinado local, que tanto pode ser o local onde foi confeccionado, como aquele onde foi adquirido.

Uma vaga lembrança
O prato que é objecto do presente escrito é indubitavelmente uma peça olárica de Redondo, pelo barro, pela tipologia, pela morfologia, pela decoração e pelo cromatismo.
No fundo, esgrafitada e pintada a ocre-castanho, a singela inscrição “LEMBRANÇA”. Não foi necessário complementar aquela inscrição com outra “DE REDONDO”. É que estão lá bem escarrapachadas as marcas identitárias da louça vidrada de barro vermelho, que constituem um dos ex-líbris da vila. A omissão do nome de qualquer localidade no prato, permitia ao louceiro vender o prato de Redondo como lembrança de qualquer outra localidade.

À espera da próxima feira
Em Estremoz, as olarias locais procediam de modo diferente. O vasilhame de barro vermelho não vidrado, era vendido com inscrições relevadas, brasonadas ou não, com os dizeres “LEMBRANÇA DE ESTREMOZ” ou “RECORDAÇÃO DE ESTREMOZ”. Todavia, para venda noutros locais, a palavra ESTREMOZ, era substituída, tanto quanto sei, por ELVAS, ÉVORA, CASTELO DE BODE, TOMAR e possivelmente outras mais. Tal prática tinha os seus inconvenientes, pois as peças que não fossem vendidas numa determinada feira, tinham que ficar à espera da próxima feira no mesmo local.

Moral da estória
A omissão é como que um segredo. Lá diz o rifão: “O segredo é a alma do negócio”. Digam-me lá, se os oleiros de Redondo, eram ou não eram finórios?

sábado, 9 de abril de 2022

Mestre Álvaro Chalana e os amores-perfeitos

 



Os amores-perfeitos como motivo decorativo
Os amores-perfeitos são flores usadas com frequência por Mestre Álvaro Chalana na decoração das suas peças oláricas, em particular no fundo dos pratos e por vezes nas abas. Uma tal decoração é esgrafitada e pintada com base em tricromia verde-amarelo-ocre castanho, usada tradicionalmente na cerâmica redondense.

O cromatismo dos amores-perfeitos
A escolha daquelas flores como motivo decorativo, terá sido, porventura, resultado de elas serem flores que dão alegria e cor onde quer que estejam: na natureza ou em casa.
As flores são grandes e achatadas, formadas por cinco pétalas aveludadas e arredondadas, quatro superiores, distribuídas par a par e uma inferior, sustentadas por um pedúnculo carnudo e ligeiramente comprido que se insere na planta ao nível das axilas foliares.
Existe um grande número de variedades de amores-perfeitos, com flores de muitas cores e que variam entre amarelo, azul, roxo, branco, rosa e bordeaux. As combinações são muitas e dão origem a um grande número de padrões, geralmente tricolores, mas também bicolores e monocolores ou até mesmo tetracolores.

O simbolismo do amor-perfeito
O simbolismo do amor-perfeito resulta basicamente de as suas pétalas serem em número de 5. Vejamos porquê. Por um lado, o 5=2+3 é a soma do primeiro número par (2) e do primeiro número ímpar (3). Por outro, está no meio dos nove primeiros números. Segundo os pitagóricos é um número nupcial, resultado do casamento do princípio masculino “céu” (3) e do princípio feminino “terra” (2). O 5 é assim símbolo de união, de harmonia e de equilíbrio. Por outro lado, o 5 é também o símbolo do homem, o qual de braços abertos, parece disposto em 5 partes em forma de cruz: os dois braços abertos, o busto (o centro, abrigo do coração), a cabeça e as duas pernas. O 5 é ainda o símbolo do Universo: dois eixos, um vertical, outro horizontal, passando por um mesmo centro. O 5 é assim símbolo da ordem e da perfeição.
Em suma: o amor-perfeito é símbolo de união, de harmonia, de equilíbrio, de ordem e de perfeição. Representa também o homem pelo que lhe é próprio: pensar. O amor-perfeito é assim a flor escolhida para simbolizar a meditação e a reflexão.

Cancioneiro popular
A perfeição do amor-perfeito não inibe o cancioneiro popular alentejano de lhe apontar defeitos. Assim: “Amor-perfeito não dura, / É impossível durar. / Eu tenho um amor perfeito / Que dura até se acabar.“ e ainda: “Amor-perfeito não cheira, / É mais a vista que faz. / Meu amor não é bonito.”, / Mas é muito bom rapaz.”

Culinária
Desde a antiguidade que as chamadas flores comestíveis são utilizadas como ingrediente culinário, disponibilizando uma vasta diversidade de formas, texturas, cores, sabores e fragrâncias, que comunicam alegria e distinção aos pratos. Os amores-perfeitos são um exemplo de flores comestíveis, usadas para enfeitar saladas de vegetais ou de frutas, bem como outras sobremesas e pratos.

Coloração
As flores de amores-perfeitos têm ainda sido usados no fabrico de corantes amarelo, verde e azul-esverdeado, enquanto as folhas são usadas para fazer um indicador químico.

Uma mensagem oculta
Os amores-perfeitos são comestíveis e enquanto flores transmitem colorido, factos que parecem subjacentes à sua utilização por Mestre Chalana na decoração dos pratos redondenses.

BIBLIOGRAFIA
CHEVALIER; Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. 6ª ed. José Olímpio. Rio de Janeiro, 1992.
DELGADO, Manuel Joaquim Delgado. Subsídio para o Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo. Vol. I. Instituto Nacional de Investigação Científica. Lisboa, 1980.

Hernâni Matos




segunda-feira, 4 de abril de 2022

Até que enfim, arranjei um tacho!


Tacho com tampa em louça vidrada de Redondo. Olaria desconhecida. 1ª metade do séc. XX.

Lá na vila do Redondo
Fazem-se pratos e tijelas:
Fazem-se telhas e adobinhos,
Alguidares e Panelas
(Cancioneiro Popular)

Apontado por não ter tacho
A minha vida é bem conhecida de todos, muito em especial pelo círculo próximo de amigos. Sabem por onde ando, sabem o que faço e sabem o que tenho ou não tenho. De tal modo que, de vez em quando, há alguém que se lembra de me dizer coisas do género:
- Oh, Hernâni! Tens quase tudo. Só te falta arranjar um tacho.
A minha resposta tem sido, desde sempre, invariavelmente a mesma:
- Dêem tempo ao tempo, que lá chegará a minha vez.
São trocas de palavras que remontam ao “Tempo da outra Senhora” e que não foram amordaçadas pelo 25 de Abril.

A aparição do tacho
Enquanto estive no activo, nunca fui capaz de arranjar um tacho, situação que não se modificou com a minha aposentação. Todavia, muito recentemente vi aquela condição alterada. Na verdade, com grande surpresa minha e quando não estava à espera, acabei por arranjar um tacho. Pensei imediatamente nos amigos que de há muitos anos a esta parte, me vêm massacrando com a sacramental pergunta:
- Hernâni! Quando é que arranjas um tacho? Olha que o tempo está a passar.
De imediato, disse para comigo mesmo:
- Hernâni! Tu que és acusado de ser parco em palavras, tens que te mostrar pródigo nelas e dizeres-lhes das boas.
Foi tiro e queda, que é como quem diz, dito e feito. Quando a minha tertúlia de amigos se voltou a juntar, alguém disparou:
- Então, Hernâni, já conseguiste arranjar um tacho ou não?
Como devem calcular, ficaram varados quando eu atroei os ares com um estrondoso e sonoro:
- Já cá canta!
Fui, de imediato, aclamado pelos meus amigos, o que me levou a agradecer-lhes com a mão direita no coração. Simultaneamente, todos quiseram saber qual era o meu tacho, pelo que tive de os acalmar, dizendo-lhes:
- Antes de vos dizer qual é o meu tacho, têm de ouvir um pequeno discurso que preparei para esta memorável ocasião, o qual intitulei “Discurso do tacho”. Passo de imediato a proferi-lo.

Discurso do tacho
Caros amigos:
Vocês sabem que a palavra “tacho” pode ser encarada sob vários prismas? Segundo determinada óptica, “tacho” corresponde a “lugar rendoso”, associado a uma “posição social privilegiada com benesses". Para além disso, “ter um bom tacho” é sinónimo de “ter um emprego bem remunerado”. Todavia, “tacho” pode ser a designação atribuída, quer à “cara”, quer à “cabeça“. Paralelamente, “tacho” é uma denominação outorgada, tanto à “cozinheira” como à “refeição”. Por isso, “dar para o tacho” equivale a “dar para a comida”. “Tacho” era ainda, antes do 25 de Abril, o epíteto atribuído à famigerada “Polícia de Vigilância e Defesa do Estado”. Já “tacho areado” é alcunha concedida a “pessoa de pele avermelhada e cabelo ruivo”. Por outro lado, o diminutivo “tachinho” designa “barrete pequeno e redondo, usado pelos alunos do Colégio Militar e pelos Pupilos do Exército”. Quanto a “tachola” designa indistintamente “dente incisivo muito grande” ou “prego de tamanco”.
Já que falei em “tacho”, por uma questão de igualdade de género, tenho de falar em “tacha”, denominação aplicável a qualquer “dente”. Daí que o plural “tachas” designe “dentadura”, pelo que “mostrar a tacha” é “mostrar os dentes” e “arreganhar a tacha” é rir”.
Concomitantemente “tacha” é a designação atribuída a “prego pequeno de cabeça chata” ou a qualquer “nódoa”. Daí que “pôr tacha em…” seja “apontar defeitos a…”. Finalmente “tachada” é “bebedeira” e “tachar” é “embebedar”.
Caros amigos:
Se calhar já estão fartos de me ouvir falar de: “tachos”, “tachinhos”, “tacholas”, “tachas, “tachadas” e “tachar”. Não vos serve de nada, já que estou a ser maçador de uma forma propositada. E sabem porquê? Para me fazer pagar de todo o tempo que me tomaram, quando me andaram a atazanar os ouvidos, perguntando continuamente quando é que arranjava um tacho. Todavia, podem ficar descansados que eu não abalo daqui sem vos revelar qual é o meu tacho. E mais: vou mostrar-vos já o tacho!

A revelação do tacho
Não dei tempo a que ninguém dissesse nada e de rompante abri uma pequena mala de mão, donde retirei e exibi o tacho que esteve na origem de todo este imbróglio, o qual passei de imediato a descrever:
- Pequeno tacho, rodado, com tampa, em barro de Redondo, de tonalidade vermelha e vidrado. A base é circular e plana. O corpo é cilíndrico, mais largo que alto e o bordo é arredondado. Abaixo do bordo estão dispostas duas pegas, de secção rectangular, em forma de U com grande abertura e pequena altura, colocadas em posições diametralmente opostas. A superfície interior do tacho, o bordo e a metade superior da superfície exterior, receberam engobe amarelo palha, o mesmo se passando com o interior e o bordo da tampa. O engobe amarelo recebeu alguns salpicos verdes, distribuídos irregularmente.
E prossegui:
- Ficam deste modo a saber qual foi o tacho que arranjei como coleccionador de cerâmica redondense. Se estavam à espera de outra coisa, enganaram-se redondamente. Todavia, já tenho um tacho que dá para vocês me deixarem de estar a atormentar continuamente com o mesmo assunto. E sabem uma coisa? Apesar de o tacho ser pequeno, vocês acabam de comer pela medida grande!
Dito isto, todos os meus amigos ficaram mansos, sem, todavia, deixarem de me aclamar. Dentre eles, houve um que interpretando o sentimento dos outros, proclamou:
- A partir de hoje, ninguém mete o nariz no tacho dos outros. Cada um fica com o seu. Tacho, é claro.
E a tertúlia foi dada por encerrada.

Pergunta aos leitores
- Digam-me lá se mereceu a pena ou não, esperar pelo meu tacho estes anos todos? É claro que mereceu. É que eu sou paciente e “quem procura sempre alcança”.

BIBLIOGRAFIA
LAPA. Albino. Dicionário de Calão. Edição do Autor. Lisboa, 1959.
POMBINHO JÚNIOR, J.A. – Achegas para o Cancioneiro Popular Corográfico do Alto Alentejo in ALTO ALENTEJO II. Junta de Província do Alto Alentejo. Évora, 1957.
SANTOS, António Nogueira. Novos dicionários de expressões idiomáticas. Edições João Sá da Costa. Lisboa, 1990.
SIMÕES, Guilherme Augusto. Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1993.




sexta-feira, 1 de abril de 2022

Cerâmica redondense personalizada

 

Fig. 6 - Amália. Bacia de grandes dimensões. Ti Rita (1891-1974).

Preâmbulo
A clareza e o rigor na transmissão do presente texto, exige que precise a etimologia e a semântica de um vocábulo nele usado. A palavra “personalizar”, provém do étimo latino “personãle”, de “persona“ (pessoa). Trata-se de um verbo transitivo que sob o ponto de vista semântico pode ter vários significados: 1 - Tornar pessoal; 2 - Designar pelo nome; 3 - Dar carácter original a um objecto fabricado em série; 4 - Adaptar às preferências ou necessidades do utilizador. No âmbito do presente texto, o termo “personalizar“ deve ser entendido como sendo possuidor dos dois últimos significados.

Personalizar para relevar
As diversas tipologias oláricas redondenses encontram-se muitas vezes personalizadas, o que tanto pode ter acontecido, quer a pedido de clientes quer por iniciativa dos oleiros. Uma tal personalização manifesta-se na decoração da peça cerâmica sob a forma de antropónimos ou figuras antropomórficas que representavam ou supostamente pretendiam representar alguém, tanto da comunidade local como figura pública de âmbito histórico ou do panorama artístico nacional.
A personalização era esgrafitada e pintada, o que podia ser feito de duas maneiras: 1 – Sem recurso a figuras antropomórficas (bustos ou figuras de corpo inteiro), mas utilizando nomes próprios simples (Fig. 1), nomes próprios compostos (Fig. 2), nome e sobrenome (Fig. 3) e nome completo, ainda que abreviado (Fig. 4). 2 – Com recurso a figuras antropomórficas, as quais podem (Fig. 5) ou não (Fig. 6), ser acompanhadas do nome ou nomes (Fig. 7) das personagens perpetuadas no barro.
A personalização da cerâmica redondense é relativamente vulgar em pratos, alguidares, bacias, tigelas, saladeiras e também aparece em barris e cantarinhas, aparentemente com menor frequência.

Consequências da personalização
A personalização “sui generis” da cerâmica redondense é uma das muitas características que a valorizam em relação a outras cerâmicas de índole popular. Na verdade, uma tal personalização faz com que as peças deixem de ser anónimas por um dos seguintes motivos:
1 - Revelam-nos quem é o(a) utilizador(a) / proprietário(a), o(a) qual poderá afirmar coisas do género: “Este prato é meu” ou “Esta tigela é minha”. Neste sentido, a personalização de uma peça olárica transformou-se numa marca de posse, equiparável a um ex-líbris aposto por um bibliófilo num livro da sua biblioteca. 2 - Ao exaltar uma figura pública que anda na berlinda ou está na ribalta e tem admiradores, a personalização potencia o interesse que desperta junto do público, já que adquire ela mesmo uma notoriedade própria, corolário natural da notoriedade da figura pública que ela imortaliza no barro.

Eu e a personalização
Sou apreciador de exemplares oláricos redondenses antigos, os quais na época cumpriram a sua missão: associar-se de uma maneira bijectiva aos seus utilizadores / proprietários ou então imortalizar no barro, figuras gratas à comunidade e nas quais esta se revê. Por um motivo ou pelo outro, são merecedores te todo o meu apreço, pelo que ocupam um lugar de destaque na minha colecção.

BIBLIOGRAFIA
- HOUAISS, António e al. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 6 vol. Círculo de Leitores. Lisboa, 2003.
- MACHADO, José Pedro. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa (5ªedição). 5 vol. Livros Horizonte. Lisboa, 1989.
PERSONALIZAR, in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2021. Disponível em https://dicionario.priberam.org/personalizar [consultado em 01-04-2022].

Fig. 1 - Inscrição "JACINTO". Prato covo de grandes dimensões.
Álvaro Chalana (1916-1983).

Fig. 2 - Inscrição "Maria Izabel". Saladeira de médias dimensões.
Olaria desconhecida. Data desconhecida.

Fig. 3 - Inscrição "viulante ventura". Bacia de grandes dimensões.
Álvaro Chalana (1916-1983).

Fig. 4 - Inscrição “OFERECE F. R. Cte / A J. FALÉ / BARBEIRO / SM”. Borracha.
Olaria F. R. Cte, 1941.

Fig. 5 - Inscrição "MANUEL DOS SANTOS". Bacia de grandes dimensões.
Mestre Álvaro Chalana (1916-1983). 

Fig. 7 - Inscrições "BENFICA", "CARLOS MANUEL" e "RUI AGUAS".
Olaria desconhecida. Data desconhecida.

terça-feira, 29 de março de 2022

A vida eterna das cousas


Bacia com ilustração de desconhecido, da autoria de oleiro desconhecido, em data
desconhecido. Algures na Vila de Redondo.


Descrição de uma bacia
Bacia circular, de grandes dimensões, rodada, de covo acentuado, de bordo liso, esponjado a verde, sem interrupções.
Engobe amarelo palha.
Covo da bacia ornamentado por duas cercaduras, esgrafitadas e pintadas em ocre castanho, uma no topo e outra no fundo da caldeira, qualquer delas constituída pela repetição do símbolo gráfico da vírgula, ao longo de toda a extensão horizontal do covo. As vírgulas encontram-se dispostas segundo um alinhamento paralelo à abertura da bacia, com a componente pontual assente numa circunferência imaginária e a parte curvilínea apontada para o fundo da bacia e orientada no sentido horário.
Fundo com decoração esgrafitada e pintada com base em tricromia verde-amarelo-ocre castanho, com contornos a ocre castanho.
Ilustração constituída por figura antropomórfica masculina, com ar sorridente e cabelo verde ondulado, com risca ao meio. O homem enverga um casaco amarelo tipo paletó, com virados verdes e uma camisa castanha, enfeitada com uma gravata às riscas verdes e castanhas, inclinadas do lado esquerdo para o lado direito da figura.

As marcas do tempo
Estamos em presença de uma bacia esbeiçada, estalada, com falhas no engobe e no vidrado, o qual se encontra picado e manchado no fundo. Trata-se de um exemplar com claras marcas de uso e de acidentes no decurso da sua utilização.
Esta bacia encerra em si, os segredos da sua estória de vida: tanto pode ter sido utilizada num lavatório para lavar rostos e mãos, como pode ter sido usada como recipiente para conter matérias-primas culinárias ou o resultado final de requintadas artes de Pantagruel, que encheram as medidas a alguém, que é o mesmo que dizer lhe fizeram arregalar a vista, criar água na boca, estimular o palato e confortar o estômago. Não sabemos.
Espécimes deste jaez, são como as árvores: morrem de pé. Na verdade, de acordo com a lei de Lavoisier, “Na Natureza, nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”. Por isso, esta bacia cuja funcionalidade era o serviço caseiro diário, ao ser abatida ao seu uso inicial, transformou-se num objecto decorativo, cuja exposição numa parede, valoriza e qualifica a casa onde se encontra.
Para além de nos contar a sua estória de vida, a bacia fala-nos ainda e muito sobre a magia das mãos do mesteiral que lhe conferiu forma, luz e cor. Nesse sentido, ela é também um monumental registo identitário.

Monumento ao oleiro desconhecido
A bacia cuja decoração ilustra alguém desconhecido, ilustre ou não e que patenteia em si um monumental registo identitário, revela-se por fim como um monumento ao oleiro desconhecido. Quem foi ele? Quando é que amassou e coloriu o barro para erigir assim um monumento à sua própria Memória? Não sabemos. Apenas sabemos que foi um mesteiral de antanho, de “Redondo, terra de oleiros e cardadores” que lhe deu vida, a qual para nosso conforto espiritual, a lei de Lavoisier assegura ser eterna.