Tacho com tampa em louça vidrada de Redondo. Olaria desconhecida. 1ª metade do séc. XX.
Lá na vila do Redondo
Fazem-se pratos e tijelas:
Fazem-se telhas e adobinhos,
Alguidares e Panelas
Fazem-se telhas e adobinhos,
Alguidares e Panelas
(Cancioneiro Popular)
Apontado por não ter tacho
A minha vida é bem conhecida de todos, muito em especial pelo círculo próximo de amigos. Sabem por onde ando, sabem o que faço e sabem o que tenho ou não tenho. De tal modo que, de vez em quando, há alguém que se lembra de me dizer coisas do género:
- Oh, Hernâni! Tens quase tudo. Só te falta arranjar um tacho.
A minha resposta tem sido, desde sempre, invariavelmente a mesma:
- Dêem tempo ao tempo, que lá chegará a minha vez.
São trocas de palavras que remontam ao “Tempo da outra Senhora” e que não foram amordaçadas pelo 25 de Abril.
A aparição do tacho
Enquanto estive no activo, nunca fui capaz de arranjar um tacho, situação que não se modificou com a minha aposentação. Todavia, muito recentemente vi aquela condição alterada. Na verdade, com grande surpresa minha e quando não estava à espera, acabei por arranjar um tacho. Pensei imediatamente nos amigos que de há muitos anos a esta parte, me vêm massacrando com a sacramental pergunta:
- Hernâni! Quando é que arranjas um tacho? Olha que o tempo está a passar.
De imediato, disse para comigo mesmo:
- Hernâni! Tu que és acusado de ser parco em palavras, tens que te mostrar pródigo nelas e dizeres-lhes das boas.
Foi tiro e queda, que é como quem diz, dito e feito. Quando a minha tertúlia de amigos se voltou a juntar, alguém disparou:
- Então, Hernâni, já conseguiste arranjar um tacho ou não?
Como devem calcular, ficaram varados quando eu atroei os ares com um estrondoso e sonoro:
- Já cá canta!
Fui, de imediato, aclamado pelos meus amigos, o que me levou a agradecer-lhes com a mão direita no coração. Simultaneamente, todos quiseram saber qual era o meu tacho, pelo que tive de os acalmar, dizendo-lhes:
- Antes de vos dizer qual é o meu tacho, têm de ouvir um pequeno discurso que preparei para esta memorável ocasião, o qual intitulei “Discurso do tacho”. Passo de imediato a proferi-lo.
Discurso do tacho
Caros amigos:
Vocês sabem que a palavra “tacho” pode ser encarada sob vários prismas? Segundo determinada óptica, “tacho” corresponde a “lugar rendoso”, associado a uma “posição social privilegiada com benesses". Para além disso, “ter um bom tacho” é sinónimo de “ter um emprego bem remunerado”. Todavia, “tacho” pode ser a designação atribuída, quer à “cara”, quer à “cabeça“. Paralelamente, “tacho” é uma denominação outorgada, tanto à “cozinheira” como à “refeição”. Por isso, “dar para o tacho” equivale a “dar para a comida”. “Tacho” era ainda, antes do 25 de Abril, o epíteto atribuído à famigerada “Polícia de Vigilância e Defesa do Estado”. Já “tacho areado” é alcunha concedida a “pessoa de pele avermelhada e cabelo ruivo”. Por outro lado, o diminutivo “tachinho” designa “barrete pequeno e redondo, usado pelos alunos do Colégio Militar e pelos Pupilos do Exército”. Quanto a “tachola” designa indistintamente “dente incisivo muito grande” ou “prego de tamanco”.
Já que falei em “tacho”, por uma questão de igualdade de género, tenho de falar em “tacha”, denominação aplicável a qualquer “dente”. Daí que o plural “tachas” designe “dentadura”, pelo que “mostrar a tacha” é “mostrar os dentes” e “arreganhar a tacha” é rir”.
Concomitantemente “tacha” é a designação atribuída a “prego pequeno de cabeça chata” ou a qualquer “nódoa”. Daí que “pôr tacha em…” seja “apontar defeitos a…”. Finalmente “tachada” é “bebedeira” e “tachar” é “embebedar”.
Caros amigos:
Se calhar já estão fartos de me ouvir falar de: “tachos”, “tachinhos”, “tacholas”, “tachas, “tachadas” e “tachar”. Não vos serve de nada, já que estou a ser maçador de uma forma propositada. E sabem porquê? Para me fazer pagar de todo o tempo que me tomaram, quando me andaram a atazanar os ouvidos, perguntando continuamente quando é que arranjava um tacho. Todavia, podem ficar descansados que eu não abalo daqui sem vos revelar qual é o meu tacho. E mais: vou mostrar-vos já o tacho!
A revelação do tacho
Não dei tempo a que ninguém dissesse nada e de rompante abri uma pequena mala de mão, donde retirei e exibi o tacho que esteve na origem de todo este imbróglio, o qual passei de imediato a descrever:
- Pequeno tacho, rodado, com tampa, em barro de Redondo, de tonalidade vermelha e vidrado. A base é circular e plana. O corpo é cilíndrico, mais largo que alto e o bordo é arredondado. Abaixo do bordo estão dispostas duas pegas, de secção rectangular, em forma de U com grande abertura e pequena altura, colocadas em posições diametralmente opostas. A superfície interior do tacho, o bordo e a metade superior da superfície exterior, receberam engobe amarelo palha, o mesmo se passando com o interior e o bordo da tampa. O engobe amarelo recebeu alguns salpicos verdes, distribuídos irregularmente.
E prossegui:
- Ficam deste modo a saber qual foi o tacho que arranjei como coleccionador de cerâmica redondense. Se estavam à espera de outra coisa, enganaram-se redondamente. Todavia, já tenho um tacho que dá para vocês me deixarem de estar a atormentar continuamente com o mesmo assunto. E sabem uma coisa? Apesar de o tacho ser pequeno, vocês acabam de comer pela medida grande!
Dito isto, todos os meus amigos ficaram mansos, sem, todavia, deixarem de me aclamar. Dentre eles, houve um que interpretando o sentimento dos outros, proclamou:
- A partir de hoje, ninguém mete o nariz no tacho dos outros. Cada um fica com o seu. Tacho, é claro.
E a tertúlia foi dada por encerrada.
Pergunta aos leitores
- Digam-me lá se mereceu a pena ou não, esperar pelo meu tacho estes anos todos? É claro que mereceu. É que eu sou paciente e “quem procura sempre alcança”.
BIBLIOGRAFIA
LAPA. Albino. Dicionário de Calão. Edição do Autor. Lisboa, 1959.
POMBINHO JÚNIOR, J.A. – Achegas para o Cancioneiro Popular Corográfico do Alto Alentejo in ALTO ALENTEJO II. Junta de Província do Alto Alentejo. Évora, 1957.
SANTOS, António Nogueira. Novos dicionários de expressões idiomáticas. Edições João Sá da Costa. Lisboa, 1990.
SIMÕES, Guilherme Augusto. Dicionário de Expressões Populares Portuguesas. Publicações Dom Quixote. Lisboa, 1993.
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