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terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Poesia Portuguesa - 096


Fernanda de Castro

O SACO DE RETALHOS
FERNANDA DE CASTRO (1900-1994)

O Saco de Retalhos

Velho saco, onde estavas? No baú
das coisas mortas,
esquecidas como tu?
Guardado na gaveta
como as sedas, as cassas,
os ramos de violeta,
a poeira e as traças?

Velho saco, onde estavas? Pendurado
numa daquelas portas
que um dia se fecharam
sobre a infância, o passado,
e nunca mais se abriram?

Ou no sótão,
na trouxa dos farrapos,
misturado com os trapos?

Velho saco dos tempos esquecidos,
nos teus retalhos desbotados
reconheço os meus bibes,
as chitas e os percais dos meus vestidos.

Estes velhos riscados
foram saias, corpetes, aventais
de criadas que então eram meninas.
E estas cambraias, estas sedas finas,
usou-as minha mãe.

Ó velho saco, feito de retalhos,
rever-te fez-me bem.
Este linho desfeito, remendado,
foi lençol de noivado,
e quantas vezes te vi pôr na cama,
ó minha ama,
esta chita vermelha de ramagens.
Meu velho saco, meu livro de imagens,
rever-te fez-me bem.

Não sei, porém,
que travo amargo esta alegria tem,
que tristeza me fez, que nostalgia,
ver surgir na distância
a minha infância,
descosida, em farrapos,
e reencontrar a minha mocidade
remendada e puída
numa saca de trapos.

Ó saco, ó velho saco de farrapos,
já não sei, afinal,
se ver-te me fez bem ou me fez mal.

FERNANDA DE CASTRO (1900-1994)


quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

Poesia Portuguesa - 095


José Gomes Ferreira (1976). Fotografia de Miranda Castela (1932-2011).


VIVER SEMPRE TAMBÉM CANSA
JOSÉ GOMES FERREIRA (1900-1985)


Viver sempre também cansa.

O sol é sempre o mesmo e o céu azul
ora é azul, nitidamente azul,
ora é cinzento, negro, quase-verde…
Mas nunca tem a cor inesperada.

O mundo não se modifica.
As árvores dão flores,
folhas, frutos e pássaros
como máquinas verdes.

As paisagens também não se transformam.
Não cai neve vermelha,
não há flores que voem,
a lua não tem olhos
e ninguém vai pintar olhos à lua.

Tudo é igual, mecânico e exacto.

Ainda por cima os homens são os homens.
Soluçam, bebem, riem e digerem
sem imaginação.

E há bairros miseráveis sempre os mesmos,
discursos de Mussolini,
guerras, orgulhos em transe,
automóveis de corrida…

E obrigam-me a viver até à Morte!

Pois não era mais humano
morrer por um bocadinho,
de vez em quando,
e recomeçar depois,
achando tudo mais novo?

Ah! se eu pudesse suicidar-me por seis meses,
morrer em cima de um divã
com a cabeça sobre uma almofada,
confiante e sereno por saber
que tu velavas, meu amor do Norte.

Quando viessem perguntar por mim,
havias de dizer com teu sorriso
onde arde um coração em melodia:
“Matou-se esta manhã.
Agora não o vou ressuscitar
por uma bagatela.”

E virias depois, suavemente,
velar por mim, subtil e cuidadosa,
pé ante pé, não fosses acordar
a Morte ainda menina no meu colo…

JOSÉ GOMES FERREIRA (1900-1985)


terça-feira, 26 de novembro de 2019

José Mário Branco homenageado pela Assembleia Municipal de Estremoz



Na Sessão Ordinária da Assembleia Municipal de Estremoz realizada no passado dia 22 de Novembro de 2019, sob proposta do Grupo Municipal da CDU, foi aprovado por maioria absoluta (28 votos a favor e 1 abstenção) o seguinte: 
VOTO DE PESAR

José Mário Branco, nascido em 1942 no Porto, revelou-se desde cedo um espírito inconformado e rebelde, sendo a campanha eleitoral do General Humberto Delgado para a Presidência da República de 1958 o momento-chave para o início da intervenção política e cívica que iria marcar toda a sua vida.
Jovem militante do PCP ilegalizado, opta por emigrar a salto para França em 1963 de maneira a evitar o serviço militar obrigatório e a consequente mobilização para Guerra Colonial. Exilado até à revolução de Abril de 1974, é neste país que inicia a produção musical, acompanhado por outros nomes maiores da música portuguesa como Sérgio Godinho ou José Afonso, é com este último que mantém uma relação mais profícua e profunda, plasmado na produção e arranjos do disco “Cantigas do Maio” onde se baseia na cadência e estrutura do cante alentejano para assegurar a direcção musical daquele que seria o tema que para sempre será associado ao 25 de Abril, Grândola Vila Morena. É ainda no ano de 1971 que lança o seu disco mais marcante “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”.
Regressado a Portugal 4 dias depois da mais importante data da história contemporânea portuguesa, imediatamente retoma a sua intervenção artística e política com um fulgor e energia contagiantes. Funda o GAC Grupo de Acção Cultural – Vozes da Luta, colectivo de músicos que desenvolve um trabalho notável de divulgação e recolha musical que percorre o país, com mais de 1000 concertos, levando a música aos mais recônditos locais e localidades apresentando gratuitamente o que de melhor se fazia musicalmente a uma população que, de outro modo, nunca teria acesso a esta realidade e produção cultural.
Continuou a cantar, criar, produzir, fazer arranjos para teatro, filmes e para inúmeros músicos que vão desde os velhos companheiros de estrada até aos novos nomes sonantes da música portuguesa. Com o projecto Maio Maduro Maio volta a revisitar o legado de José Afonso, altura em que actua em Estremoz, no Teatro Bernardim Ribeiro.
Conjuntamente com a actividade profissional como músico, continua a intervir política e partidariamente, primeiro integrando a UDP – União Democrática Popular, e já nos anos 90 é um dos nomes primordiais aquando da criação do Bloco de Esquerda.
Nos últimos anos afirma sentir-se desencantado com o estado do mundo e do país, considerando que Abril nunca foi verdadeiramente concretizado, afasta-se dos palcos, mas nem por isso deixa de ser extraordinariamente activo em estúdio, nomeadamente na qualidade de produtor e arranjador.
Falecido no passado dia 19, a CDU vem por este meio, apresentar esta homenagem da Assembleia Municipal de Estremoz a um dos maiores nomes do panorama musical português. Pela relevância ímpar, pelo brilhantismo da sua produção lírica e musical, pela influência marcante que deixou na vida cultural nacional e ainda pela participação cívica pautada de uma lucidez e assertividade únicas.
Sempre recusando honrarias, homenagens e exposição pública desnecessária e fútil, fica uma frase quando foi surpreendido no Coliseu de Lisboa com um prémio carreira atribuído pela Revista BLITZ, exclamando: “O que é que eu fiz para merecer isto?!””

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Poesia Portuguesa - 094




VÍRGULA
ANTÓNIO MARIA LISBOA (1928-1953)


Eu menino às onze horas e trinta minutos
a procurar o dia em que não te fale
feito de resistências e ameaças — Este mundo
compreende tanto no meio em que vive
tanto no que devemos pensar.

A experiência o contrário da raiz originária aliás
demasiado formal para que se possa acreditar
no mais rigoroso sentido da palavra.

Tanta metafísica eu e tu
que já não acreditamos como antes
diferentes daquilo que entendem os filósofos
— constitui uma realidade
que não consegue dominar (nem ele próprio)
as forças primitivas
quando já se tem pretendido ordens à vida humana
em conflito com outras surge agora
a necessidade dos Oásis Perdidos.

E vistas assim as coisas fragmentariamente é certo
e a custo na imensidão da desordem
a que terão de ser constantemente arrancadas
— são da máxima importância as Velhas Concepções pois
a cada momento corremos grandes riscos
desconcertantes e de sinistra estranheza.

Resulta isto dum olhar rápido sobre a cidade desconhecida.
E abstraindo dos versos que neste poema se referem ao mundo humano
vemos que ninguém até hoje se apossou do homem
como o frágil véu que nos separa vedados e proibidos.

ANTÓNIO MARIA LISBOA (1928-1953)

Hernâni Matos


Homenagem a António Maria Lisboa (1997). Carlos Calvet (1928-2014). Serigrafia
a 30 cores sobre papel fabriano [58x38 cm (Dimensão da Mancha), 70x50 (Dimen-
são do Suporte): 70x50 cm – Tiragem: 200 exemplares].

sexta-feira, 19 de julho de 2019

Poesia Portuguesa - 093


José Régio. Lauro Corado (1908-1977).


TOADA DE PORTALEGRE
JOSÉ RÉGIO (1901-1969)

Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Morei numa casa velha,
velha grande tosca e bela
À qual quis como se fora
Feita para eu Morar nela...

Cheia dos maus e bons cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
- Quis-lhe bem como se fora
Tão feita ao gosto de outrora
Como ao do meu aconchego.

Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De montes e de oliveiras
Do vento suão queimada
(Lá vem o vento suão!,
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão...)
Em Portalegre, dizia,
Cidade onde então sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem fôr,
Na tal casa tosca e bela
À qual quis como se fora
Feita para eu morar nela,
Tinha, então,
Por única diversão,
Uma pequena varanda
Diante de uma janela

Toda aberta ao sol que abrasa,
Ao frio que tolhe, gela
E ao vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda
Derredor da minha casa,
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos oliveiras e sobreiros
Era uma bela varanda,
Naquela bela janela!

Serras deitadas nas nuvens,
Vagas e azuis da distância,
Azuis, cinzentas, lilases,
Já roxas quando mais perto,
Campos verdes e Amarelos,
Salpicados de Oliveiras,
E que o frio, ao vir, despia,
Rasava, unia
Num mesmo ar de deserto
Ou de longínquas geleiras,
Céus que lá em cima, estrelados,
Boiando em lua, ou fechados
Nos seus turbilhões de trevas,
Pareciam engolir-me
Quando, fitando-os suspenso
Daquele silêncio imenso,
Eu sentia o chão a fugir-me,
- Se abriam diante dela
Daquela
Bela
Varanda
Daquela
Minha
Janela,
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Na casa em que morei, velha,
Cheia dos maus e bons cheiros
Das casas que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
À qual quis como se fora
Tão feita ao gosto de outrora
Como ao do meu aconchego...

Ora agora,
Que havia o vento suão
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão,
Que havia o vento suão
De se lembrar de fazer?

Em Portalegre, dizia,
Cidade onde então sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for,
Que havia o vento suão
De fazer,
Senão trazer
Àquela
Minha
Varanda
Daquela
Minha
Janela,
O testemunho maior
De que Deus
É protector
Dos seus
Que mais faz sofrer?

Lá num craveiro, que eu tinha,
Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem vida,
Poisou qualquer sementinha
Que o vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda,
Achara no ar perdida,
Errando entre terra e céus...,
E, louvado seja Deus!,
Eis que uma folha miudinha
Rompeu, cresceu, recortada,
Furando a cepa cansada
Que dava cravos sem vida
Naquela
Bela
Varanda
Daquela
Minha
Janela
Da tal casa tosca e bela
Á qual quis como se fora
Feita para eu morar nela...

Como é que o vento suão
Que enche o sono de pavores,
Faz febre, esfarela os ossos,
Dói nos peitos sufocados,
E atira aos desesperados
A corda com que se enforcam
Na trave de algum desvão,
Me trouxe a mim que, dizia,
Em Portalegre sofria
Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for,
Me trouxe a mim essa esmola,
Esse pedido de paz
Dum Deus que fere ... e consola
Com o próprio mal que faz?

Coisas que terei pudor
De contar seja a quem for
Me davam então tal vida
Em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros,
Me davam então tal vida

- Não vivida! sim morrida
No tédio e no desespero,
No espanto e na solidão,
Que a corda dos derradeiros
Desejos dos desgraçados
Por noites do vento suão
Já varias vezes tentara
Meus dedos verdes suados...

Senão quando o amor de Deus
Ao vento que anda, desanda,
E sarabanda, e ciranda,
Confia uma sementinha
Perdida entre terra e céus,
E o vento a trás à varanda
Daquela
Minha
Janela
Da tal casa tosca e bela
À qual quis como se fôra
Feita para eu morar nela!

Lá no craveiro que eu tinha,
Onde uma cepa cansada
Mal dava cravos sem vida,
Nasceu essa acàciazinha
Que depois foi transplantada
E cresceu; dom do meu Deus!,
Aos pés lá da estranha casa
Do largo do cemitério,
Frente aos ciprestes que em frente
Mostram os céus,
Como dedos apontados
De gigantes enterrados...
Quem desespera dos homens,
Se a alma lhe não secou,
A tudo transfere a esperança
Que a humanidade frustrou:
E é capaz de amar as plantas,
De esperar nos animais,
De humanizar coisas brutas,
E ter criancices tais,
Tais e tantas!
Que será bom ter pudor
De as contar seja a quem for!

O amor, a amizade, e quantos
Sonhos de cristal sonhara,
Bens deste mundo! que o mundo
Me levara,
De tal maneira me tinham,
Ao fugir-me, Deixando só, nulo, atónito, A mim que tanto esperara
Ser fiel,
E forte,
E firme,
Que não era mais que morte
A vida que então vivia,
Auto-cadáver...

E era então que sucedia
Que em Portalegre, cidade
Do Alto Alentejo, cercada
De serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros
Aos pés lá da casa velha
Cheia dos maus e bons cheiros
Das casa que têm história,
Cheia da ténue, mas viva, obsidiante memória
De antigas gentes e traças,
Cheia de sol nas vidraças
E de escuro nos recantos,
Cheia de medo e sossego,
De silêncios e de espantos,
- A minha acácia crescia.

Vento suão! obrigado...
Pela doce companhia
Que em teu hálito empestado
Sem eu sonhar, me chegava!

E a cada raminho novo
Que a tenra acácia deitava,
Será loucura!..., mas era
Uma alegria
Na longa e negra apatia
Daquela miséria extrema
Em que eu vivia,
E vivera,
Como se fizera um poema,
Ou se um filho me nascera.

JOSÉ RÉGIO (1901-1969)
Hernâni Matos


Praça do Príncipe Real. Lauro Corado (1908-1977). Câmara Municipal de Portalegre.

quarta-feira, 19 de junho de 2019

Poesia Portuguesa - 092




Poema para Galileo 
António Gedeão (1906-1997)

Estou olhando o teu retrato, meu velho pisano, 
aquele teu retrato que toda a gente conhece, 
em que a tua bela cabeça desabrocha e floresce 
sobre um modesto cabeção de pano. 
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da tua velha Florença. 
(Não, não, Galileo! Eu não disse Santo Ofício. 
Disse Galeria dos Ofícios.) 
Aquele retrato da Galeria dos Ofícios da requintada Florença. 
Lembras-te? A Ponte Vecchio, a Loggia, a Piazza della Signoria… 
Eu sei… Eu sei… 
As margens doces do Arno às horas pardas da melancolia. 
Ai que saudade, Galileo Galilei! 

Olha. Sabes? Lá em Florença 
está guardado um dedo da tua mão direita num relicário. 
Palavra de honra que está! 
As voltas que o mundo dá! 
Se calhar até há gente que pensa 
que entraste no calendário. 

Eu queria agradecer-te, Galileo, 
a inteligência das coisas que me deste. 
Eu, 
e quantos milhões de homens como eu 
a quem tu esclareceste, 
ia jurar – que disparate, Galileo! 
– e jurava a pés juntos e apostava a cabeça 
sem a menor hesitação – 
que os corpos caem tanto mais depressa 
quanto mais pesados são. 

Pois não é evidente, Galileo? 
Quem acredita que um penedo caia 
com a mesma rapidez que um botão de camisa ou que um seixo da praia? 

Esta era a inteligência que Deus nos deu. 

Estava agora a lembrar-me, Galileo, 
daquela cena em que tu estavas sentado num escabelo 
e tinhas à tua frente 
um friso de homens doutos, hirtos, de toga e de capelo 
a olharem-te severamente. 
Estavam todos a ralhar contigo, 
que parecia impossível que um homem da tua idade 
e da tua condição, 
se tivesse tornado num perigo 
para a Humanidade 
e para a Civilização. 
Tu, embaraçado e comprometido, em silêncio mordiscavas os lábios, 
e percorrias, cheio de piedade, 
os rostos impenetráveis daquela fila de sábios. 

Teus olhos habituados à observação dos satélites e das estrelas, 
desceram lá das suas alturas 
e poisaram, como aves aturdidas – parece-me que estou a vê-las –, 
nas faces grávidas daquelas reverendíssimas criaturas. 
E tu foste dizendo a tudo que sim, que sim senhor, que era tudo tal qual 
conforme suas eminências desejavam, 
e dirias que o Sol era quadrado e a Lua pentagonal 
e que os astros bailavam e entoavam 
à meia-noite louvores à harmonia universal. 
E juraste que nunca mais repetirias 
nem a ti mesmo, na própria intimidade do teu pensamento, livre e calma, 
aquelas abomináveis heresias 
que ensinavas e escrevias 
para eterna perdição da tua alma. 
Ai Galileo! 
Mal sabiam os teus doutos juízes, grandes senhores deste pequeno mundo, 
que assim mesmo, empertigados nos seus cadeirões de braços, 
andavam a correr e a rolar pelos espaços 
à razão de trinta quilómetros por segundo. 
Tu é que sabias, Galileo Galilei. 
Por isso eram teus olhos misericordiosos, 
por isso era teu coração cheio de piedade, 
piedade pelos homens que não precisam de sofrer, homens ditosos 
a quem Deus dispensou de buscar a verdade. 
Por isso estoicamente, mansamente, 
resististe a todas as torturas, 
a todas as angústias, a todos os contratempos, 
enquanto eles, do alto inacessível das suas alturas, 
foram caindo, 
caindo, 
caindo, 
caindo, 
caindo sempre, 
e sempre, 
ininterruptamente, 
na razão directa do quadrado dos tempos. 

António Gedeão (1906-1997)

Galileo perante o Santo Ofício (1847). Joseph-Nicolas Robert-Fleury (1797-1890).
Musée du Louvre, Paris.

domingo, 2 de junho de 2019

Poesia Portuguesa - 091



GARRAS DOS SENTIDOS
AGUSTINA BESSA LUÍS (1922-2019)

Não quero cantar amores,
Amores são passos perdidos,
São frios raios solares,
Verdes garras dos sentidos.

São cavalos corredores
Com asas de ferro e chumbo,
Caídos nas águas fundas,
não quero cantar amores.

Paraísos proibidos,
Contentamentos injustos,
Feliz adversidade,
Amores são passos perdidos.

São demências dos olhares,
Alegre festa de pranto,
São furor obediente,
São frios raios solares.

Dá má sorte defendidos
Os homens de bom juízo
Têm nas mãos prodigiosas
Verdes garras dos sentidos.

Não quero cantar amores
Nem falar dos seus motivos.

AGUSTINA BESSA LUÍS (1922-2019)

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Poesia Portuguesa - 090


PEQUENINA
FLORBELA ESPANCA (1894-1930)

És pequenina e ris ... A boca breve 
É um pequeno idílio cor-de-rosa ... 
Haste de lírio frágil e mimosa! 
Cofre de beijos feito sonho e neve! 

Doce quimera que a nossa alma deve 
Ao Céu que assim te faz tão graciosa! 
Que nesta vida amarga e tormentosa 
Te fez nascer como um perfume leve! 

O ver o teu olhar faz bem à gente ... 
E cheira e sabe, a nossa boca, a flores 
Quando o teu nome diz, suavemente ... 

Pequenina que a Mãe de Deus sonhou, 
Que ela afaste de ti aquelas dores 
Que fizeram de mim isto que sou! 

FLORBELA ESPANCA (1894-1930)

sexta-feira, 10 de maio de 2019

O amor é cego


O Amor é cego (s/d). Sabina Santos (1921-2005).

“O Amor é cego” é um Boneco de Estremoz cuja origem remonta ao séc. XIX. É considerado uma figura de Carnaval e uma alegoria à cegueira do amor e ao Cupido de olhos vendados. Trata-se de um tema recorrente na pintura universal, onde conheço os seguintes quadros: - Cupido com os olhos vendados (1452-1466) - Piero Della Francesca; - Primavera (c. 1482) - Sandro Botticelli (1445-1510); - Cupido, o pequeno amor com os olhos vendados perfura o peito de um jovem (séc. XVI) – Clément Marot; - O julgamento de Páris (1517-1518) – Niklaus Manuel; - Vénus e Cupido (c. 1520) – Lucas Cranach, o Velho; - Vénus a vendar Cupido (c. 1565) - Vecellio Tiziano; - Cupido castigado (séc. XVII-XVII) - Ignaz Stern; - Vénus a punir o amor profano (c. 1790) – Escola alemã.
 “O amor é cego” é um provérbio que traduz a cegueira do amor (falta de objectividade), relativamente à qual são conhecidos outros provérbios: “A amizade deve ser vidente e o amor, cego”, “O amor é cego e a Justiça também”, “O amor é cego, a amizade fecha os olhos”, “O amor é cego, mas vê muito longe”, “O amor não enxerga as cores das pessoas”, “O amor vem da cegueira, a amizade do conhecimento”, “Quem anda cego de amores não vê senão flores”, “Quem o feio ama, bonito lhe parece”.
O provérbio “O amor é cego” é muitas vezes atribuído ao filósofo grego Platão (427-348 aC), porque em “As Leis” escreveu “Aquele que ama é cego para o que ama”. No entanto, é errado, atribuir às palavras de Platão o significado que o provérbio tomou, porque naquele texto, o filósofo fala de amor-próprio como fonte de erro.
 “Amor é cego” é o título do soneto 137 de William Shakespeare (1564-1614) cuja primeira quadra traduzida pelo poeta António Simões nos diz que: “Tolo e cego Amor, a meus olhos que fazes agora, / Que eles olham e não vêem o que a ver estão? / Conhecem a beleza e onde ela se demora, / Mas, o que é pior, por melhor tomarão.”
A cegueira do amor está também retratada no cancioneiro popular alentejano (2): “O Cupido anda às cegas, / Cahe aqui, cahe acolá; / Em má hora eu te amei. / Em má hora, hora má.”
 “O amor é cego e vê” é o título de uma ária cantada por Tomás Alcaide (1901-1967) no filme “Bocage” a qual teve música de Afonso Correia Leite / Armando Rodrigues e letra de Matos Sequeira / Pereira Coelho. Roberto Alcaide (1903-1979), irmão de Tomás Alcaide tinha o hábito de afirmar que o boneco “O Amor é cego” tinha sido criado por Mariano da Conceição em homenagem ao irmão [Entrevista à barrista Maria Luísa da Conceição (1)]). Tal afirmação não tinha fundamento algum, já que a figura remonta ao séc. XIX e Mariano da Conceição nunca modelou “O Amor é cego”.

BIBLIOGRAFIA
(1) - MATOS, Hernâni. Entrevista a Maria Luísa da Conceição. Estremoz, 7 de Fevereiro de 2013. Arquivo de Hernâni Matos.
(2) - THOMAZ PIRES, A. Cantos Populares Portugueses. 4 vol. Typographia e Stereotypia Progresso. Elvas, 1902 (vol. I), 1905 (vol. II), 1909 (vol. III), 1012 (vol. IV).
Publicado inicialmente a 10 de Maio de 2019
Este texto integra o meu livro "BONECOS DE ESTREMOZ" publicado em 2018

sábado, 26 de maio de 2018

I Jogos Florais do Jornal E de Estremoz (1.º Prémio - Poesia Livre)



1.º PRÉMIO - POESIA LIVRE
Pseudónimo: Bonecos de Estremoz
(Fernando Máximo – Avis)

Bonecos de Estremoz

Bonecos de Estremoz são
O melhor da tradição
Que o nosso povo enaltece...
São vistos por toda a parte
Esta tão velhinha arte
A todos nós envaidece.

O idóneo bonequeiro
Idealiza primeiro
Aquilo que quer fazer...
Só depois, com muito amor,
Faz um arco ou um andor
O que mais lhe apetecer...

Após o barro amassado
Dá ele por começado
Um trabalho de primeira:
A samarra dum pastor
Ou um lenço multicor
No chapéu duma ceifeira.

Os seus dedos são tão ágeis
Que até as peças mais frágeis
Manuseia com destreza;
Depois da obra acabada
Por certo vai ser gabada
Disso tem ele a certeza...

Cenas do quotidiano
Compõe mais de cem ao ano:
Desde o cante na taberna
Aos afazeres da matança,
Mais os dias de festança
Ou uma cena mais terna...

Qualquer pedaço de barro
Serve p'ra fazer um tarro
Um rei ou uma rainha...
Um abegão, um pastor,
Um livro com uma flor
Um anjo ou uma santinha...

Depois da peça moldada
Como foi imaginada
E a fantasia convida,
Vai pintá-la com fervor
Dando-lhe assim outra cor
Para que tenha mais vida

E o mundo, surpreendido,
Ao vê-los, fica rendido
E agradece a quem os pôs
Para lá de Portugal
Dando fama mundial
Aos Bonecos de Estremoz...