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segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Os candeeiros a petróleo (2ª edição)

Esta é a 2ª edição do post OS CANDEEIROS A PETRÓLEO, editado em 27 de Fevereiro de 2010, agora revisto, reformulado e ampliado com apontamentos de literatura oral, bem como pela adição de três novas ilustrações.

Um elegante candeeiro a petróleo.
EU E O PETRÓLEO
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Nascido em 1946, sou duma geração que nasceu e viveu iluminada pelo candeeiro a petróleo. À luz do petróleo se jantava em casa dos meus pais e à luz do candeeiro se seroava e se contavam histórias desse dia e histórias de família, a perder no tempo.
À luz do petróleo aprendi a juntar as primeiras letras, assim como a ler e a escrever.
Os sessenta e três anos que atravessam longitudinalmente a minha vida, levaram-me a conhecer sucessivamente as lâmpadas incandescentes, as lâmpadas de halogéneo, as lâmpadas fluorescentes, as lâmpadas de descarga e os leds.
A minha costela de coleccionador, aliada à necessidade de registar materialmente a memória do passado, levou ao gosto pela iluminária popular, o que se traduziu em ter reunido ao longo dos anos, um razoável conjunto de candeeiros de petróleo. Especímenes diferentes no tamanho, no material (vidro, loiça, metal, mistos), na geometria, na cor do vidro, na decoração, nas chaminés, porém todos eles com um elo comum: o serem candeeiros a petróleo. Este meu gosto pelos candeeiros tem a ver com memórias de infância, nas quais o combustível era para mim o mal amado.
Ainda hoje me lembro do cheiro pestilento a petróleo, que me era assaz desagradável, ao ponto de ainda hoje o ter entranhado nas narinas, talvez por desde sempre ter sido dotado de um razoável faro de perdigueiro.
Deu-se ainda o caso de uma certa vez, aí pelos doze anos de idade, ter esparramado petróleo para cima dos sapatos. Como? A minha mãe mandou-me ao petróleo à drogaria da D. Virgínia, a cerca de vinte metros da casa onde então morávamos na Rua da Misericórdia, em Estremoz. E a garrafa teve que ir embrulhada em papel de jornal, porque ela queria assim e assim tinha que ser. No regresso, já do lado de fora da drogaria, resolvi pegar na garrafa pelo gargalo, mas não sei como é que me arranjei, que quando dei por mim, tinha a rolha e a o papel de jornal na mão direita. A garrafa, farta de me estar nas mãos, libertara-se do meu jugo e armada em S. João Baptista, baptizara-me os sapatos, que assim ficaram bentos para o resto da vida. Todavia, fiquei dispensado de os usar, enquanto estes retiveram os odores nauseabundos do seu baptismo forçado. O que não fiquei livre, foi de ter de ir logo de seguida, comprar novamente petróleo à mesma drogaria. E que julgam? Mais uma vez numa garrafa embrulhada em papel de jornal. Porém, desta feita, com uma séria advertência:
- "Vê lá bem o que fazes! "
Bom, mas então tive mais sorte e tal como uma formiga no carreiro, lá fui direitinho a casa, onde cheguei vitorioso com a garrafa incólume, toda embrulhadinha como a minha mãe gostava. Pude então mudar de sapatos e lavar os pés com sabão azul e branco. Num alguidar de zinco, é claro. Porque nessa época, banheiras e bidés só na casa de ricos.
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EDISON E OS CANDEEIROS A PETRÓLEO
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Mais tarde, vim a perceber porque é que Thomas Edison (1847-1931), o mais prolífico dos inventores americanos, entre as 1093 patentes das suas descobertas, incluía a lâmpada eléctrica de incandescência, mostrada ao público em 31 de Dezembro de 1879, no seu laboratório em Nova Jersey. É que sendo o filho mais novo de uma família de sete irmãos, enquanto rapaz tinha a seu cargo a manutenção dos candeeiros de petróleo lá de casa, tarefa para si abominável. Lá diz o rifão: “A necessidade é mestra de engenho”. Como eu o compreendo: atestar os depósitos com o líquido de execrável cheiro, aparelhar as torcidas, limpar as chaminés enegrecidas pelo fumo, era, de facto, uma tarefa desagradável.
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OS CANDEEIROS NA LITERATURA ORAL
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Liberto de ir ao petróleo mal-amado, comecei por me apaixonar primeiro pelo coleccionismo de candeeiros e depois já arqueólogo da oralidade da língua e da literatura portuguesas, tornei-me colector de registos presenciais dos candeeiros nos diversos géneros de literatura popular. No que respeita à presença dos candeeiros no adagiário português, esta é algo escassa:
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- “Agosto, candeeiro posto. “
- “Em Agosto candeeiro posto. “
- “Em Setembro palha no palheiro e meninas ao candeeiro. “
- “O pé do candeeiro é o pior iluminado. “
- “Um bom companheiro alumia como um candeeiro. “
- “Um bom conselheiro alumia como um candeeiro.”
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O mesmo se passa com o seu registo no cancioneiro popular, algumas vezes associado ao amor:
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“Candeeiro ao meio da sala,
Alumia os quatro cantos,
Meu amor, a tua fala
dá por aí dias santos.” [8]
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“Candeeiro, que estás tão alto,
Desce e vem para baixo.
O meu par é pequenino,
Já sei que o perco aqui.” [2] - Cantiga de pé-quebrado – Vale de Santiago-Odemira.
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O candeeiro aparece ainda comparado ao astro rei:
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“Alumiar duas salas
Como pode um candeeiro?
Também o Sol sozinho
Alumia o dia inteiro.” [2] - Beja
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Aparece igualmente em composições de escárnio e mal dizer:
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“Cala-te ahi bocca aberta,
Rodilha de candeeiro,
Tens-te por espertalhão,
Tu és um pantomineiro.” [6]
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Os candeeiros estão igualmente presentes no corpo de adivinhas portuguesas, cuja solução é, como não podia deixar de ser, o candeeeiro:
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"Burro de ferro
Albarda de linho
Tic tic como um passarinho.” [9]
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“Qual é coisa, qual é ela, que tem um furo e não rebenta?” [9]
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No domínio das alcunhas alentejanas são conhecidas as seguintes:
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- CANDEEIRO = Alcunha outorgada a um indivíduo que é proprietário dum café homónimo (Alter do Chão). [7]
- CANDEEIRO DAS CABANAS = designação atribuída a um indivíduo que é trigueiro (Moura). [7]
- CANDEEIRO DE BOLA = O visado recebeu esta designação porque é alto e tem a cabeça muito redonda (Ourique). [7]
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No âmbito da toponímia são de registar os seguintes topónimos:
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- "CANDEEIRA – Lugar da Freguesia de Avelã de Cima, concelho de Anadia." [3]
- "CANDEEIRA - Lugar da Freguesia de Ribeirão, concelho de Vila Nova de Famalicão." [3]
- "CANDEEIRA – Lugar da Freguesia de Sandim, concelho de Vila Nova de Gaia." [3]
- "CANDEEIROS – Lugar da Freguesia de Benedita, concelho de Alcobaça." [3]
- "CANDEEIROS – Serra com 487 metros de altitude e que abrange os concelhos de Rio Maior, Alcobaça e porto de Mós." [3]
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NOTA FINAL
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Que ninguém fique com a ideia errada de que a substituição do candeeiro a petróleo pela lâmpada eléctrica, empobreceu a literatura oral. Pelo contrário, dado o seu carácter dinâmico, esta não deixa de registar o aparecimento de inovações tecnológicas, o que se traduz afinal num enriquecimento da própria literatura oral. Nesse contexto de inovação tecnológica, exemplificamos com uma adivinha, cuja solução,é obviamente a lâmpada eléctrica de incandescência:
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- “O que é, que tem a barriga de vidro e a tripa de arame?” [4]
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BIBLIOGRAFIA
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[1] – DELGADO, Manuel Joaquim Delgado. Subsídio para o Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo. Vol. I. Instituto Nacional de Investigação Científica. Lisboa, 1980.
[2] - DELICADO, António. Adagios portuguezes reduzidos a lugares communs / pello lecenciado Antonio Delicado, Prior da Parrochial Igreja de Nossa Senhora da charidade, termo da cidade de Evora. Officina de Domingos Lopes Rosa. Lisboa, 1651.
[3] – FRAZÃO, A. C. Amaral. Novo Dicionário Corográfico de Portugal. Editorial Domingos Barreira. Porto, 1981.
[4] - LIMA, Fernando de Castro Pires de. Qual é a coisa qual é ela? Portugália Editora. Lisboa, 1957.
[5] – MEADOWCROFT, Enid Lamonte. Edison.7ª edição. Livraria Civilização. Porto 1981.
[6] - PIRES, A. Thomaz. Cantos Populares Portugueses, vol. IV. Typographia e Stereotypia Progresso. Elvas, 1910.
[7] – RAMOS, Francisco Martins & SILVA, Carlos Alberto da. Tratado das Alcunhas Alentejanas. 2ª edição. Edições Colibri. Lisboa, 2003.
[8] - SANTOS, Victor. Cancioneiro Alentejano – Poesia Popular. Livraria Portugal. Lisboa, 1959.
[9] TOPA, Francisco. “ADIVINHAS — Duas colecções particulares da primeira metade do século” in Encontros, n.º 1. Sociedade de Estudos e Intervenção Patrimonial. Porto, 1995.



Parte da minha colecção de iluminária popular, com os candeeiros a petróleo à esquerda.

Edison assegurando a manutenção dos candeeiros de petróleo da casa de seus pais. Ilistração de Harve Stein para o livro [5] citado na bibliografia.
  
Uma moderna lãmpada de incandescência.


quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

As corridas de rodas

JOGO DO ARCO OU DA GANCHETA (Pormenor - século XX). Fotografia de autor desconhecido (30,5x23,5 cm). Museu da Guarda.
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A “corrida de rodas” era um jogo da minha infância, para o qual tenho reservado um lugar muito especial nas gavetas espaçosas da minha memória.
Não tinha época certa. Bastava que alguém com o corpo a pedir folia se lembrasse disso e lançasse o repto:
- Vamos correr com as rodas?
Aceite este desafio, cada um de nós corria até casa para ir buscar a sua roda, bem como o indispensável guiador.
Eu e os do meu bando, nos anos cinquenta do século passado, tínhamos no Largo do Espírito Santo, em Estremoz, o Quartel-General das nossas operações. Ali nascemos e ali crescíamos, temperados pelas brincadeiras que nos enchiam as medidas.
Éramos: eu, o Rodrigo André e o irmão, o Manuel Maria Gato, o Armando Pereira, o António Maria Craveiro, o Manuel da Avó e o Jorge Maluco.
As rodas eram das mais diversas: aro cilíndrico de ferro maciço, roda de bicicleta, aro de pneu e cinta metálica de barril ou de pipa. Esta última era a mais difícil de conduzir e era sempre um “desenrascanço” que se arranjava à do Silva, tanoeiro da Horta do Quinton, na rua da Levada, onde funcionava a Fábrica de Conservas “Alves e Martins, Lda”. A de pneu também desenrascava e tinha uma boa aderência ao solo, o que era uma vantagem para os mais inábeis. Já a roda de bicicleta era uma senhora roda, pois pelo seu maior diâmetro, atingia facilmente maior velocidade, com menos esforço, além de que pela maior largura do aro, assentava melhor no solo, o que lhe conferia uma maior estabilidade. Porém, para os mais hábeis, o “fórmula 1” das rodas, era o aro cilíndrico de ferro maciço, com menor diâmetro que as rodas de bicicleta, mas também mais estreito e pesado que aquelas. Tomava cá uma embalagem… E esta era tanto maior quanto maior fosse o diâmetro do aro.
Um complemento indispensável à boa condução da roda era o “guiador”, confeccionado com arame ou varão de ferro, tendo numa das extremidades um desvio em U, para encaixe, condução e orientação da roda. Este desvio era para o lado esquerdo da extremidade no caso dos dextros e para o lado direito da extremidade no caso dos canhotos. A outra extremidade era aquela pela qual se empunhava o guiador e tinha uma dobra a 180º, para não ferir a mão, podendo mesmo possuir uma protecção improvisada, como tiras de pano enrolado ou um cabo de madeira ou de cortiça. O guiador em varão de ferro era o mais apreciado e devia ter um tamanho adequado que facilitasse a condução da roda. Quanto maior fosse o guiador, mais fácil era a condução da roda. Porém, o controle destas nas curvas, aconselhava a que o guiador não fosse demasiadamente grande. E nós sabíamos o tamanho exacto a dar ao nosso guiador.
As corridas de rodas realizavam-se em qualquer altura do ano, mas eram mais apreciadas na Primavera ou nos dias de Inverno sem chuva, já que assim davam para aquecer o corpo com o esforço e não havia o risco de derraparmos e nos estatelarmos no chão molhado. Já de Verão eram absolutamente desaconselháveis, uma vez que com a calorina, ficávamos com os bofes de fora.
Reunidos os apetrechos para a corrida, combinávamos o local de partida, o trajecto e o local de chegada. A única regra era que não valia empurrar.
Um dos trajectos possíveis era: Largo do Espírito Santo junto ao lampião (descida e viragem à direita), Rua da Levada, Travessa da Levada (viragem à direita), Rua do Almeida (viragem à direita), Largo da Liberdade (viragem à esquerda), Rua do Casco (subida e viragem á direita), Rua das Freiras (viragem à direita) e Largo do Espírito Santo (onde se localizava a meta).
Dada a partida por quem havia sido acordado que o fizesse, começávamos alinhados, mas a partir daí, era “o ver se te avias”, “pernas para que te quero”, acondicionadas por muita genica e uma vontade indomável de ganhar.
Circulava-se então bem pelas ruas, pois estas não estavam apinhadas de carros e os eventuais transeuntes colaboravam, desviando-se, avisados pela sonoridade galopante das próprias rodas, especialmente as de ferro maciço e as de bicicleta, que à medida que galgavam a calçada à portuguesa, em uníssono com ela, gemiam ais capazes de fazer ressuscitar um morto bem falecido. Corria-se à roda livre, embora se ouvisse por vezes alguma vociferação mais rabugenta.
- Lá andam os gaiatos a correr outra vez! Não há maneira de sossegarem!
Apesar disso, a maioria das pessoas era compreensiva, sabia tal como nós, que a brincadeira era o nosso trabalho, era a nossa maneira de aprendermos a ser grandes. Por vezes lá tínhamos que nos desviar da carroça de algum aguadeiro ou de uma casa agrícola, que circulavam pelas ruas. Porém, era raro.
Por vezes, sobretudo nas curvas, alguém mais inábil deixava cair a roda, pelo que se tinha de abaixar para a apanhar e poder prosseguir a corrida. Porém, a vitória era então mais difícil. Os outros nem pestanejavam, pois corrida é corrida e concentração e empenho são receitas de êxito.
Na subida da rua do Casco é que se via quem tinha pernas. Era aqui que se esfrangalhava o pelotão, que entrava na recta final da rua das Freiras. A descida do largo do Espírito Santo era já realizada em travagem a fundo, com o Alegrete à direita e a Casa do Manuel Maria Gato ao fundo, a ameaçar estamparmo-nos nela.
À chegada, o vencedor ufanava-se com um sonoro e repetido:
- Ganhei! Ganhei! Ganhei!
Os vencidos diziam então de suas razões, esperançados que estavam em melhores dias.
Descansava-se então um bocado, para retemperar as forças e só depois se partia para outra brincadeira, que até podia ser nova corrida de rodas, se a exigência de desforra por parte de alguém fosse aceite pela maioria.
Um campeão de corrida de rodas é fruto da conjugação de múltiplos factores: boa tracção às pernas, bom fôlego, calçado aderente, estratégia adequada, bom equipamento (roda e guiador), perícia (especialmente nas curvas) e, é claro, espírito de ganhador. Tirando este último, não reunia por vezes todas estas condições, pelo que nunca passei dum condutor mediano. Nunca deu para ser um ás da corrida de rodas. Fui um ás, mas noutro jogo, o do botão. Lá diz o rifão:
- “A roda anda, anda, mas também desanda”. 0
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Cerâmica grega de figuras vermelhas do Pintor de Berlim (Cerca de 500-490 a.C.). Do lado A, Ganimedes segurando um arco, símbolo da sua juventude e na outra um galo, oferta amorosa de Zeus que o persegue e está representado no lado B do vaso.Museu do Louvre, Paris.
 
JOGOS INFANTIS (1560) - Pieter Brueghel – O Velho (c.1525 - 1569). Óleo sobre painel de madeira (118 x 161 cm).Museu de História de Arte, Viena.
BRINCADEIRAS INFANTIS (1774) - Gravura de Daniel Nikolaus Chodowiecki (1726–1801), extraída de “J. B. Basedows Elementarwerk mit den Kupfertafeln Chodowieckis u.a. Kritische Bearbeitung in drei Bänden, herausgegeben von Theodor Fritzsch. Dritter Band. Ernst Wiegand, Verlagsbuchhandlung Leipzig 1909". 
AFONSO, PRÍNCIPE IMPERIAL DO BRASIL, FILHO PRIMOGÉNITO DE D. PEDRO II (1846) - Pintura de Joahn Moritz Rugendas (1802–1858).
TEATRO NACIONAL DE MANNHEIM (1853) - Artaria Mathias (1814-1885). Detalhe de óleo sobre tela. Museu Reiss-Engelhorn, Mannheim.
O JARDIM DO LUXEMBURGO (CERCA DE 1883) - Pierre August Renoir (1841-1919). Óleo sobre (53x64 cm). Colecção particular.
RAPARIGA COM UMA RODA (1885) - Pierre August Renoir (1841-1919). Óleo sobre tela (76,6x125,7 cm) . Colecção Chester Dale - Galeria Nacional de Arte, Washington. 

RAPAZES CORRENDO COM RODAS NA CHESNUT STREET, TORONTO (1922). Fotografia do Arquivo da Biblioteca Pública de Toronto.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

O jogo do botão


Os miúdos do Espírito Santo – foto de Manuel Gato – 1955. No 1º plano e da esquerda para a
 direita: Armando Pereira, Manuel Maria Gato, Jorge (maluco) e António Maria Craveiro. No
2º plano e da esquerda para a direita: Zé (prima do Manuel Maria), Manuel (da avó), Rodrigo
André (de mãos cruzadas), Hernâni Matos (com o braço à cintura), Maria Evelina Roma e
Guilhermina Massano. Os rapazes eram meus companheiros do jogo do botão.


O JOGO EM SI
Quando era puto jogava ao botão.
Vocês sabem como é que se jogava ao botão?
Em primeiro lugar, era preciso ter botões e eu tinha-os guardados num pequeno talêgo confeccionado pela minha mãe e que transportava sempre comigo num dos bolsos das calções, para não ser apanhado desprevenido quando era desafiado para jogar. A maioria das vezes por quem queria obter desforra por ter perdido em jogo anterior. O talêgo era para mim precioso, pois era nele que eu guardava ciosamente a existência utilizada na jogatina.
No caso mais simples de serem só dois, os rapazes a jogar, tirávamos à sorte para ver quem era o primeiro. Este, depois de escolher no seu talêgo, o botão com que queria jogar, atirava-o contra a parede, de forma a fazer ricochete e ir parar o mais longe possível. Era depois a vez do segundo jogador fazer o mesmo, procurando que o seu botão ficasse o mais próximo possível do botão do adversário. Duas coisas podiam então acontecer:
- Se o botão lançado ficasse a uma distância igual ou inferior a um palmo dos seus, ganhava o botão do oponente e guardava-o. Cabia-lhe então a ele reiniciar o jogo.
- Se o botão lançado ficasse a uma distância superior a um palmo dos seus, o primeiro jogador levantava o seu botão, atirando-o novamente à parede, procurando que ficasse a menos de um palmo do botão do outro jogador, para lho ganhar.
Ganhava naturalmente o jogo, aquele que ganhasse maior número de botões.
No meu caso, tinha por hábito pregar um berro, gritando “Palmo!”, no exacto momento em que demonstrava sem sofismas, com o meu palmo a servir de bitola, que acabara de ganhar o botão.
Desde puto que gosto de botões. Nasci e cresci no meio deles, já que o meu pai era alfaiate e eu um praticante emérito do jogo do botão, dado ser dotado de razoável pontaria, acrescida de um abonado palmo de mão, correspondente à minha, desde sempre avantajada figura.
E tanto jogava com uma mirôla (botão de ceroula), como com um chapéuzinho de chumbo ou de lata ou com o mais anónimo dos botões. Era tudo uma questão de estratégia e de controlar a batida na parede. Depois o meu palmo encarregava-se do resto. Por isso, quando chegava a casa, levava o talêgo sempre reforçado de munições e quase sempre cheio. Por vezes, o massacre do talêgo dos meus companheiros de botão, era interrompido pela voz da minha mãe:
- Hernâni, anda para a mesa, que são horas de almoço.
E lá ia eu num ápice, que a barriga já dava horas e o meu pai não gostava de faltas de respeito. Digam lá vocês, quem é que podia resistir a um chamamento destes?
Às vezes, nós os jogadores, trocávamos botões uns com os outros, sendo que os botões maiores e mais raros, valiam mais que os outros mais vulgares. O mesmo se passava com as mirôlas e os chapéuzinhos de chumbo e de lata. O valor de troca era sempre negociado entre as partes.
Eu gostava da mirôla quando queria atingir maiores distâncias. Para distâncias menores, o meu preferido era o chapéuzinho de lata, que fazia menos ricochete que a mirôla. Para distâncias ainda mais curtas, era mais adequado o chapéuzinho de chumbo, já que fazia menos ricochete.
A mirôla era mais adequada quando éramos os primeiros a jogar, para atirarmos o botão o mais longe possível. Já quando éramos os segundos, não era a o botão mais indicado, porque fazia mais ricochete ao cair e a posição final era mais incerta. Para isso era mais indicado o chapéuzinho de lata ou mesmo o de chumbo, se a distância fosse mais curta.

O COLECCIONISMO DE BOTÕES 
Colecciono botões desde os meus tempos do jogo do botão. O meu pai era alfaiate e também herdei os botões dele, embora só tenha ficado com alguns. Como coleccionador, dada a diversidade de botões, senti necessidade de me especializar. Quem herdou então a maioria dos meus botões foi a minha filha, que os guarda religiosamente num monumental boião, que eu atempadamente baptizei de “Catedral do Botão”. Quanto a mim, resolvi especializar-me em botões de latão, porque o latão é a minha paixão. Daí que nas feiras de velharias procure sempre botões amarelos de fardamentos, que tenho organizados numa caixa com divisórias. E sabem que mais? Procuro completar um conjunto destes botões com a mesma coroa real portuguesa, para substituir os do “blaser”, que uso no dia de ser chique.

OS BOTÕES NA LITERATURA ORAL
Preocupado com questões de oralidade da língua, dei-me ao trabalho de pesquisar a presença dos botões na literatura oral.
A nível do adagiário popular é conhecido o provérbio:
- “Falar para com os seus botões.”
Daí que o cancioneiro popular, pela voz irónica do algarvio António Aleixo (1899-1949), proclame que:

“Dizem lá com seu botões,
Pessoas ricas e nobres:
Dez mil reis em meios tostões,
Davam para duzentos pobres.”

Os botões podem de resto ser motivo de agrado por uma peça de vestuário:

“Ó Joaquim, Joaquim,
Ó Joaquim Ramalhete;
já me cá estão a agradar
os botões do teu colete.” [1]

Ao jogo do botão são aplicáveis os provérbios do “perder” e do “ganhar”:

- “Ninguém perde sem outro ganhar.“
- “Nunca um perde, sem outro ganhar.“
- “ Perder deu mais pesar, que deu prazer o ganhar.“
- “Perder e ganhar, tudo é jogar.“
- “Quando um perde, o outro ganha.“
- “Quem ganha, também perde.“
- “Só ganha quem joga. “

Em termos de literatura oral, existem adivinhas cuja solução é o “botão”:

“Qual é a coisa,
qual é ela,
que mesmo dentro de casa
está sempre fora dela?”

“Qual é a coisa,
qual é ela,
que mal entra em casa,
se põe logo à janela? “

“Qual é a coisa
que tem o lugar
no meio da casa?”

“Qual é a coisa
que faz mais falta numa casa? “

“Minha casa
não tem telha,
quando entro
vou de esguelha.”

“Feito de ossos de animais,
sendo redondo sou chato:
tenho um olho, raro três,
muitas vezes dois ou quatro. 

"Tenho uma casa só minha,
não entra lá nunca alguém:
vivo nela ou junto dela,
não cabe lá mais ninguém.“

Também conheço uma adivinha cuja solução é “botões”:

“São muitos vizinhos
com os mesmos modos;
quando um erra,
erram todos.”

A nível de lengalengas conheço esta:

“Rei, capitão
Soldado, ladrão
Menina bonita
Do meu coração.”

Esta lengalenga era acompanhada seguindo a sequência dos botões da peça de vestuário com o dedo polegar, a partir duma das extremidades. Assim, se a peça de vestuário tinha um botão, era-se “rei”, o que era o máximo. Se tivesse dois, era-se “capitão”, o que ainda era bom. Com três, era-se “soldado”, o que era menos bom. Com quatro, era-se “ladrão”, o que ninguém gostava de ser. Para os rapazes era péssimo ter cinco botões na peça de vestuário, pois então era-se “menina bonita”, o que era motivo de risota geral. Conta-se que alguns faziam birra em casa para não levarem para a escola, nada que tivesse cinco botões. Vejam lá as partidas que a língua portuguesa pregava aos pais de então.

[1] - JUNCEIRA (Tomar). Recolha de REDOL, Alves. Cancioneiro do Ribatejo. Centro Bibliográfico. V. Franca de Xira: 1950.

Publicado pela primeira vez em 23 de Agosto de 2010
O presente texto integra o meu livro "Memórias do Tempo da Outra Senhora"

segunda-feira, 31 de maio de 2010

100 anos da Sapataria Joaquim Miguel


Joaquim António Chouriço (1906-1999), reputado sapateiro e comerciante de calçado
da praça de Estremoz. Uma referência cívica para todas as gerações. Fotografia de Angel
Ordíalez Cortesia de Adriano Chouriço, actual proprietário da Sapataria Joaquim Miguel.

Recebi um convite para visitar a exposição “100 anos da Sapataria Joaquim Miguel”, surgindo-me desde logo a ideia de produzir um texto sobre o evento. Não um texto de circunstância, mas um texto em que eu, andarilho das palavras, pudesse revelar duma maneira ou de outra, a minha afectividade com todo o percurso dos sapatos. É certo que o outro eu, mais comedido que eu próprio, me advertiu logo do risco:
- É pá, vê lá o par de botas em que te vais meter!
Se é certo que há um rifão que diz que “A ignorância é atrevida”, o que não é menos certo é que eu não desisto facilmente de uma ideia.
Arregaçadas as mangas e ligado o computador, ficaram, desde logo, afastadas à partida várias hipóteses de abordagem do assunto.
Nada de falar de fabrico de sapatos, de que não percebo patavina, pois ainda sou daqueles que por auto-estima ou se quiserem por vergonha, não se atrevem a falar daquilo que não percebem.
Afastada também a hipótese de falar de pés célebres, de pés chatos ou de moléstias dos pés, como o pé de atleta, os calos e os joanetes, pois já chega os que cada um tem, quanto mais falar dos que atormentam o próximo.
Como sou rato de biblioteca, numa das minhas incursões pelo “Cancioneiro Popular Português” do Dr. José Leite de Vasconcelos, recolhi algumas quadras populares reveladoras das diferentes imagens que o povo faz dos sapateiros.
Nalgumas localidades os sapateiros eram considerados um bom partido. Em Paredes de Coura uma moça dizia:

"Eu hei-de tomar amores:
Há-de ser c’um sapateiro,
P’ra me fazer uns sapatos
E não me levar dinheiro."

Também nas Alcáçovas havia quem pensasse o mesmo:

"Se tomar agora amores
Há de ser c’um sapateiro,
Que me faça umas chinelas
E não me leve dinheiro..."

Em Vila Verde de Ficalho, no concelho de Serpa, outra moça dizia mais ou menos o mesmo:

"Meu amor me disse
E eu achei-lhe graça:
- Eu sou sapateiro,
Não andes descalça."

Já em Penafiel, os sapateiros não eram tidos em grande conta:

"Oh que rua tão comprida
No meio tem um letreiro:
Mal empregada menina,
Vai casar c’um sapateiro!"

A imagem do sapateiro chega a ser denegrida nas Alcáçovas:

"Sapateiros e alfaiates
São uma súcia de ladrões:
Sapateiro furta a sola,
Alfaiate, os botões. "

Em Reguengos de Monsaraz, os sapateiros chegam a ser objecto de humor algo exagerado:

"Quatrocentos sapateiros
Se juntaram em campanha
Com martelos e turqueses
P’ra matarem uma aranha."

Em Marco de Canaveses, ao quer parece, os sapateiros eram encarados sob um ponto de vista mais prático:

"Senhor mestre sapateiro,
Senhor mestre remendão,
Bata-me bem essa sola,
Deite-me aqui um tacão!"

Em todos os tempos e em toda a parte, os sapateiros se queixaram, que a arte não dá. Assim, em Baião dizia um oficial:

"Sou um triste sapateiro
Toda a vida a dar a dar:
Quem nasceu para ser pobre
Não le vale trabalhar!"

Após esta digressão etnográfica pelos sapateiros no imaginário popular, decidi calçar as alpergatas da minha infância e fazer uma abordagem topográfica do assunto.
A Sapataria Joaquim Miguel está situada no Largo da Liberdade. Liberdade apeada pelo 28 de Maio e restituída pelo 25 de Abril. Lembras-te camarada Binadade, quando na véspera do primeiro 1º de Maio em liberdade, apareceste à sede do Círculo Cultural de Estremoz, com uma extensa lista de ruas cuja toponímia, tu defendias, devia ser reposta? Eu fui dos poucos que te ouviu, pois na época pensava-se e agia-se febrilmente e existiam outras prioridades. Mas, o que é certo é que o teu alvitre não caiu em saco roto e com a brevidade possível, lá foi o 28 de Maio restituído à Liberdade.
Até aos anos 50 morei na Rua da Misericórdia, a qual conjuntamente com a de Frei Nuno iam desaguar no Largo 28 de Maio. E digo desaguar, pois sendo ruas de acentuado declive, era esse o termo correcto em dias de fortes chuvadas. Eu morava a meio da rua, do lado direito de quem desce, numa casa que já não existe, mesmo nos altos do caleiro, que também era ferro-velho e montava o estraminé na feira, onde hoje é o Bairro da Cobata. Desta vizinhança e da amizade com o caleiro, cuja casa frequentava, terá surgido o meu gosto por antiguidades e velharias. Ao cimo da Rua da Misericórdia, do lado esquerdo de quem desce, moravam a D. Dionísia e a D. Enué Palma, mãe e filha, com umas mãos como não havia outras. Ainda hoje retenho na memória, embora de forma vaga, o fascínio que exerciam sobre mim os trabalhos que elas executavam, fossem registos ou trabalhos em papel recortado ou em escamas de peixe. Que pena que tenho de não possuir um único trabalho dessas senhoras...
Na Rua de Frei Nuno, onde hoje há uma Fábrica de Bolos, havia a Padaria do Traguedas onde eu aviava o pão para a casa de meus pais e levava bolos para o forno, nos dias de anos ou por ocasião de festas cíclicas.
Mais acima e do mesmo lado, ficava a barbearia do meu amigo Can Can, uma linguinha de prata com um par de óculos que mais pareciam os telescópios de Monte Palomar. Era um organizador exímio de excursões, que os frequentadores, todos gentes do povo, pagavam aos bochechos, pois os tempos eram difíceis. Estou convencido que quando nos encontrarmos lá em baixo, ainda me há de levar numa excursão a Portimão ou ao Portinho da Arrábida.
Mais abaixo, onde hoje está a Drogaria era a Oficina do Mestre Capeto, carpinteiro de carroças e trens. As horas que eu ficava a vê-lo trabalhar!
Do outro lado da rua, ao cimo, ficava a Pensão Marangas, mais tarde Pensão Jantareta. Que raio de nome havia de ter o dono da pensão! Até parecia que os hóspedes eram mal servidos, o que não era o caso, como decerto o atestaria o professor Grilo, um hóspede perpétuo.
No Largo 28 de Maio converge ainda a Travessa da Levada, onde havia a Retrosaria do Mamede e a Casa de Comidas – e também dormidas - do Geadas, que também vendia e distribuía lotaria.
No Largo 28 de Maio converge igualmente a Rua do Almeida. Aqui eram dignas de nota, a mercearia do Genaro, onde eu ia comprar rebuçados com cromos de jogadores de futebol, a Fábrica de Pirolitos do Massano que tinha uma secção de enchimento que era um espectáculo para a época e a Adega do Zé da Glória, já retiro castiço e afamado na época.
Uma vez que através das ruas circundantes já contextualizei topograficamente o Largo 28 de Maio, é altura de começar a falar no Largo 28 de Maio propriamente dito. Além da Retrosaria do Dias, havia a Drogaria da D. Virgínia, onde minha mãe me mandava ao petróleo, bem como a Adega do Sebastião Barrigudo onde tomei conhecimento do ritual diário que constitui um bêbado matar o bicho. Havia também a casa da Família Cortes, com cavalariça e trem, a Loja do Fernandes dos sacos, a Oficina de Reparação de Bicicletas do Conim, a Mercearia do Adriano Pimenta, a Taberna do velho Viana com a caixa da malandrice e a Tipografia Brados do Alentejo. E que fascinante que era para mim, ver o Parelho, de porta aberta, trabalhar com a ainda hoje existente Heidelberga, que num vaivém maquinal, estampava magicamente as letras no papel.
Havia então poucos automóveis e no Largo estacionavam, por vezes, carros de parelha pertencentes a casas de lavoura do concelho ou a simples camponeses, que tinham ido tratar alguma coisa por perto.
Dominando todo o Largo, dum lado e do outro, a Sapataria Joaquim Miguel. Dum lado, a secção de venda de calçado, dirigida por Joaquim António Chouriço, tendo ao lado a secção de venda de solas e cabedais, orientada pelo irmão, Leonel Chouriço. Precisamente nos baixos da casa da D. Silvina e no local onde existira a Mercearia de meu tio-avô, João António Carmelo, vulgo o Carmelinho - porque nascera nos dias pequenos - o qual no princípio deste século ali tinha torrefação e moagem pelos mais aperfeiçoados processos, comercializando o afamado “Café Roca do Príncipe”.
Do outro lado do Largo, ficava a secção de consertos, que fervilhava de vida. O mestre, os oficiais, os aprendizes, a ajuntadeira e, é claro, os fregueses. Era uma época em que se mandava ali fazer calçado por medida, bem como pôr meias solas, remendos, reforços, tacões novos e protectores ou carda na solas, a fim de que melhor resistissem ao desgaste. Ainda não tinha chegado o tempo das boutiques de calçado, das lojas de pronto a calçar e do hábito de deitar fora o calçado usado e menos vistoso. Ali ia, mandado por meus pais, levar calçado para pôr meias solas, gaspear ou pôr umas capinhas. Era a nossa sapataria e é, ainda, a minha sapataria. Muda-se de camisa, muda-se de mulher ou de marido, muda-se de partido, mas não se muda nem de clube nem de sapateiro.
Desde miúdo que conheço e admiro Joaquim António Chouriço, uma pessoa simples, um grande filósofo da vida, um referencial de civismo, uma fortaleza de qualidades humanas que todos reconhecem e que por isso apenas se sublinham aqui. Joaquim António Chouriço é um filho amado de Estremoz, de que a cidade justamente muito se orgulha. No centenário da sua firma, apetece-me dizer-lhe:
- Obrigado, senhor Joaquim António pela perseverança e pelo belo exemplo de firma e de vida, esta também quase centenária. Bem haja, por isso!
Chegado a este ponto do texto sobre os “100 anos da Sapataria Joaquim Miguel”, estou certo que alguns não gostaram e estarão a esta hora a invocar o ditado que diz: “Quem te manda a ti, sapateiro, tocar rabecão?”. A esses responderei com outro ditado: “O sapateiro não julga mais que os sapatos”, para acrescentar de seguida, que os não sapateiros, nem calçado sabem julgar.

(Publicado inicialmente em 31 de Maio de 2010)

Leonel Augusto Chouriço (1914-1997), irmão de Joaquim António Chouriço e
igualmente uma referência cívica para todas as gerações. Fotografia de Angel
Ordíalez. Cortesia de Adriano Chouriço, actual proprietário da Sapataria Joaquim Miguel.

Estremoz - Largo da Liberdade nos finais do século XIX. Em frente, o edifício da
Sapataria Joaquim Miguel, fundada em 1897, cuja entrada era feita pelas portas que
se  vêem ao fundo, protegidas por toldos. Fotografia de autor desconhecido.
 Cortesia de Adriano Chouriço, actual proprietário.

Estremoz - Interior da Sapataria Joaquim Miguel nos finais do século XIX. Fotografia de
autor desconhecido. Cortesia de Adriano Chouriço, actual proprietário.

sábado, 24 de abril de 2010

Igreja de Santo André - História dum Crime


Foto de C.J. Walowski (1891). 

“Igreja de Santo André – História de Um Crime”, foi o título de uma exposição fotográfica, que a Associação Filatélica Alentejana, levou a efeito no Centro Cultural Dr. Marques Crespo, em Estremoz, em Novembro-Dezembro de 2009. Essa exposição teve por finalidade relembrar aos mais novos, aquele que foi, sem sombra de dúvida, o maior crime perpetrado contra o património construído em Estremoz – a demolição da Igreja de Santo André, no ano de 1960. Mas foi também, uma denúncia e um libelo acusatório contra aqueles que foram responsáveis por esse crime: o regime de Salazar, então no poder e em força, pois ainda não eclodira a guerra colonial.
Os meus votos então foram no sentido de aquela exposição constituir um indicador da nossa firme determinação dum julgamento moral à revelia, daqueles que foram responsáveis por esse hediondo crime.
Vejamos em breves palavras, a história do crime que, na verdade, foi a demolição da Igreja de Santo André, em Estremoz.
Diz-nos Marques Crespo em “Estremoz e o seu Termo Regional”, que a Igreja de Santo André, de uma só nave, sete capelas e exterior majestoso, viu abater com muito estrondo a sua abobada, no dia 8 de Outubro de 1940, cerca das 22 horas e 30 minutos, não tendo ocorrido felizmente qualquer desastre pessoal. A partir daí, o culto e a actividade paroquiana passaram a ser exercidos no vizinho templo do Convento de S. Francisco. Diz-nos ainda Marques Crespo, que desde logo foram tentadas as reparações necessárias, que foram sofrendo interrupções, por serem dispendiosas.
Também o semanário regionalista “Brados do Alentejo”, na sua edição de 13 de Outubro de 1940, relata que: “No passado dia 8, terça-feira, petas 22,30 horas, foi a população de Estremoz sobressaltada por um enorme estrondo. Minutos depois, correu pela cidade a noticia de ter desabado a abóbada da nave central da igreja paroquial de Santo André, com 20 metros de comprimento por 10 de largura.
A nova causou ainda algum pânico, pois minutos antes do desabamento, tinham saído do templo os fieis que tomaram parte na devoção do Rosário. Felizmente, porém, não havia, no momento da derrocada, pessoa alguma na igreja, senão estaria Estremoz hoje de luto por muitas famílias.
A abóbada, de há muito largamente fendida, tendo desprendido dela horas antes um pedaço de caliça, estava assim desde o tremor de terra de Benavente, sendo possível ligar agora também a derrocada a um abalo sísmico quási imperceptível, pois que muitas pessoas viram na mesma ocasião em suas casas lâmpadas da iluminação eléctrica a tremer.
O estrondo foi enorme, ouvindo-se a muita distância, e da igreja erguiam-se altas e espessas ondas de pó”.
Muita prosa emocionada foi escrita desde então na imprensa local. E não cabe aqui dar conta dela. Torna-se necessário dar um grande salto no tempo. Em 3 de Maio de 1959, diz J. Barros, articulista do jornal local “Brados do Alentejo”: “Mas então vai ser demolida a Igreja de Santo André?! Ter-se-ia chegado por meio de estudos técnicos adequados à desoladora e dura conclusão de que o edifício em causa sofre de uma progressividade ruinosa à qual pouco ou nada é possível opor?
Ter-se-ia encarado o problema em todos os aspectos técnicos relacionando-os com as possibilidades financeiras de realizar as obras de consolidação e restauro bem definidas pelo estudo do assunto visando a restituição do templo ao culto religioso?
Não se pode supor que nada disto tivesse deixado de ser meditado, estudado e apreciado, pois não é de crer que semelhante resolução — se é que em verdade foi já tomada — houvesse sido a preferida entre as que se oferecessem. A ser assim, teria certamente surgido longa matéria técnica e financeira que fundamentou e justificou a dolorosa solução de demolir a condenada Igreja.
É sem dúvida custoso admitir que o templo ao que parece ora condenado, não tenha possibilidade de reparações e consolidações e que por coincidência singular, seja o local onde ele se encontra erigido, o que merece a preferência para nele construir o Palácio de Justiça.
Mas não haverá em Estremoz, na baixa da cidade, e em ponto central, outro local onde a construção do Palácio de Justiça se possa efectivar sem ter que demolir uma das maiores Igrejas da cidade, desaparecendo assim mais outro templo religioso?"
E depois disto o que se passou? Para ser rápido, há que dar um salto ainda maior no tempo. Sob o título “ESTREMOZ – A DEMOLIÇÃO DA IGREJA DE SANTO ANDRÉ E O PALÁCIO DA JUSTIÇA”, diz o “Diário de Notícias” de 5 de Outubro de 1960: “Começou a demolição da Igreja paroquial de Santo André, em pleno coração da cidade. A restauração da Igreja foi a sua morte. A nova abobada, tinha um corpo que as paredes laterais não suportavam e os técnicos verificaram depois de várias experiências que a derrocada da Igreja seria um facto sem qualquer possibilidade de evitar-se. Autorizada a sua demolição, no mesmo local se erguerá em breve o Palácio da Justiça, cuja construção se impunha, dadas as deficientes e apertadas instalações das repartições locais deste Ministério.”
A Igreja foi demolida e o Palácio da Justiça foi construído. A inauguração deste Palácio da Justiça, que como resultado do crime cometido, se deveria chamar antes, Palácio da Injustiça, foi efectuada a 3 de Abril de 1964, com pompa e circunstância pelo mais alto magistrado da Nação – modo como se designava então, eufemisticamente, o Presidente da República, Almirante Américo Tomaz.
Da inauguração, há registo fotográfico de Rogério de Carvalho. A partir daquela data, tinham impunemente imposto a Estremoz, mais um edifício cinzento e incaracterístico, símbolo de uma distorcida capacidade empreendedora do Estado Novo, que não olhava a meios para atingir os seus fins.
Estremoz ficara então mais pobre. O seu património edificado, por sinal religioso, empobrecera ao ser despojado da vetusta Igreja de Santo André, que apenas por estar ferida, foi condenada à morte, eliminada fisicamente e feita desaparecer do mapa topográfico de Estremoz, que não da memória de elefante dos mais velhos como eu ou ainda mais velhos do que eu. Nunca esqueceremos o crime cometido, nem tão pouco os que o cometeram. Os elefantes são assim.
Honra seja feita aqueles que com as armas possíveis – as palavras – lutaram com convicção e emoção, para que tal não acontecesse. Um destaque muito especial para o padre Serafim Tavares, pároco de São Francisco, homem de púlpito que soube usar a tribuna da imprensa local e foi um dos líderes da resistência ao crime que viria a ser perpetrado.
Hoje um crime destes não seria possível, porque a opinião pública, livre de peias e de mordaças, se mobilizaria em massa para o impedir. Porém, para que cada vez menos, seja possível aconteceram crimes como este, é que exposições como esta são importantes. Para lembrar aos mais novos e às gerações vindouras, aquilo que aconteceu, para alertar consciências e despertar resistências, para memória futura.
Creio que em Évora, aqui bem próximo de nós, um crime destes não teria sido possível, pois desde o primeiro quartel do século XX, mais precisamente desde 1919, que ali existe e está activo o Grupo Pro-Évora, uma Associação de Defesa do Património daquela cidade, cuja acção foi decisiva numa época em que se assistia à mutilação das características históricas mais relevantes daquela urbe. A Câmara Municipal de Évora desenvolveu, de resto, um trabalho notável, pelo que a classificação do Centro Histórico de Évora como Património Cultural da Humanidade pela UNESCO, em Novembro de 1986, foi como dizem os seus responsáveis “o corolário de um longo caminho tendente a salvaguardar o conjunto edificado da cidade intramuros”.
Neste ano de graça ou de desgraça, dependendo do ponto de vista, de 2009, Estremoz ainda não tem uma Associação de Defesa do Património, a qual como órgão independente, lidere a opinião pública, intervindo activamente na defesa do património da nossa cidade. Por isso, porque estamos atrasados no tempo, é muito difícil, se não improvável que alguma vez o Centro Histórico de Estremoz, consiga ser classificado pela UNESCO como Património da Humanidade. Oxalá me engane.
Esta exposição não teria sido possível sem a recolha por nós efectuada, no decurso do tempo, de fotografias e de postais ilustrados, expostos ampliados, em sequência cronológica, procurando mostrar a grandeza tutelar dum templo, o qual para além de local de culto, demarcava um espaço sociológico de convívio cívico que se perdeu. Para além das fotografias registadas por fotógrafos anónimos que trabalhavam para editoras comerciais de postais ilustrados no século XX, merecem especial destaque as fotografias de Wolanski (finais do século XIX - princípio do século XX) e de Rogério de Carvalho e de Tony (2º quartel do século XX), três grandes repórteres fotográficos do tecido urbano e etnográfico da nossa urbe transtagana.
Porém, o que avalizou o registo fotográfico do crime cometido, foram as fotografias obtidas por Manuel Gato, um dos sócios da extinta firma Quadrado e Gato, do Rossio Marquês de Pombal. Foi ele que com a sua elevada consciência cívica e raro sentido de oportunidade e importância de reportagem fotográfica, obteve uma sequência de fotografias, a qual relatam duma forma fria e imparcial, a demolição impiedosa de uma Igreja que era sede de Paróquia. Igreja cuja demolição efectuada em 1960, por ordens do poder salazarista, já havia sido, de resto, alvo na imprensa local, de uma crónica de morte anunciada. Esta a história do maior crime perpetrado contra o património em Estremoz.
Chegados a este ponto, julgo ser opinião unânime dos estremocenses e não só, que neste julgamento à revelia, o réu – o regime de Salazar – deva ser considerado culpado pelo horrendo crime cometido contra o património construído da nossa cidade.
A vítima – a veneranda Igreja de Santo André – nós nem ninguém a poderá restituir à sua existência física, apenas lhe poderemos reservar um lugar muito especial nas nossas memórias e relembrá-la às gerações mais novas.

Texto publicado inicialmente em 24 de Abril de 2010
Texto que integra o meu livro "Memórias do Tempo da Outra Senhora"
editado pela Colibri em 2012.

Foto de Rogério Carvalho (cerca de 1940).


Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Fotografia de Manuel Gato (1960).

Palácio da Justiça. Postal edição Câmara Municipal de Estremoz (1986).