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quarta-feira, 26 de março de 2014

A Confraria da Moenga e os Ciclos Agro-Pastoris


A Confraria da Moenga, sediada no Moinho do Cú Torto, em Évora, tem por objectivos: a preservação dos utensílios, usos e costumes ligados à gastronomia alentejana. Desde a sua fundação que tem desenvolvido um trabalho notável no sentido de prossecução dos seu objectivos estatutários. Do trabalho desenvolvido até aqui, destacamos a reconstituição de ciclos agro-pastoris, registados em vídeos que aqui divulgamos. 

CICLO DO PÃO
 A reconstituição histórica do fabrico do pão feita pela Confraria da Moenga enumera as diversas fases
pelas quais o pão passa desde a sementeira do trigo até ao seu consumo. Moinho do Alcaide – Herdade
das Mestras de Cima -  Évora – 22 de Junho de 2000. 

CICLO DO AZEITE
A reconstituição histórica do fabrico do azeite pela Confraria da Moenga enumera as diversas fases
pelas quais o azeite passa desde a criação da oliveira até ao consumo do azeite Quinta da Madeira -
 - Évora - 22 de Janeiro de 2001.

CICLO DO PORCO
A reconstituição histórica do ciclo do porco pela Confraria da Moenga enumera as diversas fases
pelas quais o porco passa desde a sua criação até ao seu consumo. Moinho do Alcaide – Herdade
das Mestras de Cima – Évora – 22 de Junho de 2000. 

CICLO DO BORREGO
Reportagem televisiva do ciclo do borrego organizada pela Confraria da Moenga no Rossio de São Brás
a 1 de Abril de 2012.

Hernâni Matos

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

Academia do Bacalhau


DISCURSO DO BACALHAU
(Proferido no dia 1 de Dezembro de 2012, no decurso
do XII Aniversário da Academia do Bacalhau de Estremoz,
no Teatro Bernardim Ribeiro desta cidade.)

A história que eu vou contar é uma história singela e cuja origem é muito antiga. É anterior ao tempo da outra senhora e mais velha que o tempo dos afonsinhos. É uma história que tem quase cinco mil milhões de anos, que é a idade estimada para o planeta Terra.
Quem nos conta a história é o Génesis, o primeiro livro do Antigo Testamento, que a tradição judaico-cristã atribui a Moisés. No seu capítulo I, de uma forma narrativa dá-nos uma visão mitológica da Criação do Mundo. Aí, nos versículos 20. e 21., é-nos referido o que Deus fez no quinto dia da Criação:
Versículo 20. Deus disse: “Que as águas fiquem cheias de seres vivos e os pássaros voem sobre a Terra, sob o firmamento do céu”.
Versículo 21. Deus criou as baleias e os seres vivos que deslizam e vivem na água, conforme a espécie de cada um, e as aves de asas conforme a espécie de cada uma. E Deus viu que era bom.
Aqui termina o relato necessariamente sucinto do cronista bíblico, o qual por motivos compreensíveis se esgota aqui. É a altura adequada para nós entramos em acção, como cronistas assumidos de tempos tão antigos, que já não cheiram a naftalina, porque este hidrocarboneto aromático teve mais que tempo para sublimar. É caso para perguntarem:
- Há quanto tempo?
É uma pergunta sem resposta. E sabem porquê. É que se

“O tempo pergunta ao tempo
Quanto tempo o tempo tem.
O tempo responde ao tempo
Que o tempo tem tanto tempo
Quanto tempo o tempo tem.”

Apenas vos sabemos dizer que o personagem principal desta história se chama “bacalhau” e tem gostos que estão nos antípodas dos prazeres dos alentejanos. Estes protegem-se do frio, por dentro e por fora. Como? Bebem uns tintos e vestem capote. Sim! Porque um homem tem duas almas: a alma interior e a alma exterior. E o bacalhau? O bacalhau gosta de águas frias e por isso se instalou com armas e bagagens na Noruega, na Islândia e na Terra Nova. Aí os portugueses pescam bacalhau desde o século XV. Há sinais de consumo importante de bacalhau em Portugal desde o século XVI, sendo o peixe preferido dos pobres, a par da sardinha. Entretanto, o estatuto culinário do bacalhau mudou. De alimento popular passou a prato sofisticado, submetido a preparações muito elaboradas.
Actualmente a gastronomia do bacalhau é vasta e multifacetada. Há mais de mil e uma maneiras de cozinhar bacalhau, espelhando cada uma delas a suprema criatividade de sabores e saberes dos seus criadores, alquimistas de serviço, cuja matéria-prima principal são postas demolhadas do fiel amigo. A título meramente exemplificativo, permitimo-nos salientar alguns pratos consignados pelo uso: Açorda de bacalhau, Bacalhau à Brás, Bacalhau à espanhola, Bacalhau à Gomes de Sá, Bacalhau à lagareiro, Bacalhau à minhota, Bacalhau à Zé do Pipo, Bacalhau assado na brasa com batatas a murro, Bacalhau assado no forno, Bacalhau com broa, Bacalhau com natas, Bacalhau espiritual, Bacalhau na brasa, Empadão de bacalhau, Ensopado de bacalhau, Migas de bacalhau, Pastéis de bacalhau, Punheta de bacalhau, Pataniscas de bacalhau, Rissóis de bacalhau, Salada de bacalhau e Tiborna de bacalhau.
São pratos de lamber os beiços e chorar por mais. Todos têm um elo comum, o serem confeccionados com o “fiel amigo”. As razões desta designação assentam no facto de apesar de a costa portuguesa fornecer peixe, a maioria deste deteriorava-se rapidamente, só penetrando no interior espécies como a sardinha salgada, o polvo seco e no Sul, atum de barrica. Daí que entre nós, o bacalhau passasse a ser o peixe salgado e seco mais consumido. De resto, como “fiel amigo” que não apodrecia nas longas viagens marítimas, ele desempenhou um papel importante na alimentação dos homens de quinhentos, que com a força da raça desta nação lusitana, souberam dar Novos Mundos ao Mundo.
Decerto que também há razões históricas para o consumo do bacalhau. Ele está associado a ancestrais prescrições cristãs que impunham a abstinência do consumo de carne e de produtos de origem animal muitos dias do ano, com particular destaque para os 40 dias da Quaresma e para os 30 dias do Advento antes do Natal.
É sabido que somos sacerdotes da memória dos nossos ancestrais, o que nos tornou arqueólogos da oralidade da língua com a missão explícita de escavar os múltiplos géneros da nossa literatura popular. Daí que vos apresentemos aqui “pela rama” e “a talhe de foice”, alguns frutos dessas escavações.
Quanto a adagário, recolhemos dois provérbios:
- Dia de S. Silvestre (31 de Dezembro), não comas bacalhau que é peste.
- Bacalhau quer alho.
Vejamos agora o que nos diz o cancioneiro popular. António Thomaz Pires, de Elvas, no seu “Cancioneiro popular político” refere o bacalhau numa alusão ao Remechido, algarvio da guerrilha miguelista:

Isto é bem bom,
Está menos mau,
Tudo Remechido
Sabe a bacalhau.

Pires de Lima no “Cancioneiro de Vila Real” recolheu a seguinte quadra:

Ó Castedo, Ó Castedo
‘stás assente num calhau.
Mataram minha mulher
Com bolos de bacalhau.

Finalmente o “Cancioneiro da Serra d'Arga” cataloga esta quadra bastante brejeira:

A mulher para ser boa,
Tem que ter pernas de pau,
A barriga de manteiga,
As mamas de bacalhau.

O bacalhau é um termo muito usado na gíria popular. Vejamos então:
- Apertar o bacalhau a alguém = Cumprimentar uma pessoa com um aperto de mão
- Bacalhau = Açoite de correias com que no Brasil se castigavam os escravos negros
- Bacalhau = Mulher ordinária
- Bacalhau = Órgão sexual feminino
- Bacalhau = Pessoa muito magra
- Bacalhau basta = Qualquer coisa serve
- Bacalhau de porta de tenda = Pessoa demasiado magra
- Bacalhaus = Colarinhos largos e muito engomados, pendentes sobre o peito
- Bacalhaus = Orelhas grandes e separadas do crânio
- Bacalhauzada = Aperto de mão = Prato de bacalhau com batatas
- Bacalhoada = Grande porção de bacalhau
- Bacalhoada = Guisado de bacalhau
- Bacalhoada = Surra ou pancada com bacalhau
- Bacalhoeiro = Bisbilhoteiro = Falador
- Bacalhoeiro = Grosseiro
- Bacalhoeiro = O que vende bacalhau
- Bacalhoeiro = Que gosta muito de bacalhau
- Cadeiras de Bacalhau = Cadeiras de pinho
- Cheirar a bacalhau = Tresandar a suor por falta de higiene
- Comer bacalhau = Apanhar chicotadas de bacalhau
- Ficar em água de bacalhau = Ficar em nada; frustrar-se
- Magro como um bacalhau = Extremamente magro
- Meter o bacalhau em alguém = Espancar = Censurar
- Pesar bacalhau = Cabecear de sono
- Rabos de bacalhau = Abas da casaca
Em termos de alcunhas alentejanas há a registar as seguintes:
- BACALHAU – outorgada a quem gosta muito de comer bacalhau. É muito vulgar no Alentejo:
- BACALHAU SUECO – alcunha atribuída em Grândola a uma mulher que cheira mal.
A nível de antroponímia, “Bacalhau” é sobrenome ou nome de família que tem a ver com a ascendência do utilizador. Referindo-me só a personalidades recentes temos:
- A escritora Marisa Bacalhau, que ainda há pouco apresentou na Cozinha dos Ganhões, o seu livro “Gaturamo – Os Regimentos da Europa na Reconquista do Rio Grande do Sul”;
- Ana Bacalhau vocalista do grupo Deolinda.
Eu também conheci em Estremoz, nos anos 60, um ardina chamado Bacalhau, vendedor de jornais pela cidade. Curiosamente, o Bacalhau que gostava da pinga era um trinca-espinhas e trabalhava para um Sardinha que fazia dois dele.
No que concerne a toponímia, “Bacalhau” é também um nome muito usado. Vejamos algumas dessas utilizações:
- Avenida Prof. Dr. José Bacalhau (Espinhal);
- Bacalhau Novo, lugar da Freguesia de Benfica do Ribatejo, concelho de Almeirim;
- Bacalhau Velho, lugar da Freguesia de Benfica do Ribatejo, concelho de Almeirim;
- Jardim do Bacalhau (Beja);
- Poço do Bacalhau, lugar da Freguesia da Fajã Grande, Flores, Açores;
- Quinta do Bacalhau (Lisboa);
- Rua António Bacalhau (Alcácer do Sal);
No que respeita a anedotas, destacamos apenas esta:
Numa rua do Porto, um cego passa em frente a uma mercearia daquelas que têm por hábito pendurar peças de bacalhau à porta. Ao passar bate com a cabeça num bacalhau, o que a leva a dizer:
- Desculpe-me minha senhora!
Dá mais dois passos e exclama de seguida:
- Puxa! Carago! Esta mulher é mesmo alta!
No que toca a lengalengas respigámos várias, das quais aqui apresentamos duas:

ANA RITA, PIROLITA
Anarita, pirollita
Bacalhau, sardinha frita
Quantas patas tem o gato?
Um, dois, três, quatro

Ó MARIA COTOVIA
Ó Maria Cotovia,
Fecha a porta,
Já é dia,
Vem aí
O bicho mau
Que te papa
O bacalhau.
Tapa a tua
Chaminé
Com a ponta
Do teu pé.
Tapa também
A janela
Com a colcha
Amarela.
E assim
O bicho mau
Não te papa
O bacalhau.

Também o adivinhário regista a presença do bacalhau. Vejamos alguns exemplos:
- Porque é que a água do mar é salgada? (RESPOSTA: Porque tem bacalhau de molho).
- Qual é a coisa, qual é ela
Compra-se cru,
Faz-se cozido
E vende-se cru. (RESPOSTA: Bacalhau).
- Qual a parte da mulher que cheira bacalhau? (RESPOSTA: O nariz).
PREPAREM-SE QUE ESTA É TERRÍVEL!
- Sabem quais são os três alimentos que fazem mal à saúde?
(RESPOSTA: O bacalhau, que tenrabo.
A couve que tentalo.
E o feijão verde que tenfio.)
Depois de tanta brejeirice é altura de falar mais a sério, mais em termos institucionais. Há dois tipos de associações centradas no bacalhau:
- A Confraria Gastronómica do Bacalhau, sediada na cidade de Ílhavo, a “Capital do Bacalhau”. Tem por objectivos: divulgar as ementas à base de bacalhau, dinamizar as várias maneiras de o confeccionar, bem como divulgar a história da epopeia da faina maior.
- As Academias do Bacalhau, espalhadas pelo mundo da Lusofonia, que reúnem pessoas que independentemente da sua etnia, posição social ou grau de cultura, se congregam sem finalidades políticas, religiosas, comerciais ou lucrativas, para fomentar, encorajar e desenvolver laços de amizade, cooperação, confraternização entre elas, bem como a defesa do prestígio e expansão da Portugalidade, o que passa pela difusão da cultura e valores tradicionais portugueses, assim como pela assistência moral e material aos mais carenciados.
Não queremos terminar sem deixar de apresentar dois apontamentos:
Um deles é para vos dar a conhecer uma receita conhecida por “Bacalhau à Salazar”. Trata-se de bacalhau cozido com batatas, temperado com vinagre, alho e pimenta. De acordo com o inspirador do prato, não leva azeite, pois se o bacalhau for gordo é um desperdício e se for magro, um desperdício é. Trata-se de um prato que não admite reclamações, pois de contrário, a coisa pode dar para o torto.
O outro apontamento é um apontamento de natureza estatutária. Eu quero aqui propor uma alteração aos Estatutos da Academia do Bacalhau de Estremoz. Proponho que o Presidente deixe de se chamar Presidente e se passe a chamar “Bacalhau-Mor”! Estão de acordo? Sim? Está aprovado.
Para a Academia do Bacalhau de Estremoz e para o meu amigo Chico Ramos que teve a coragem de aqui me trazer, sem saber bem onde isto podia ir parar, peço uma calorosa salva de palmas.

domingo, 18 de dezembro de 2011

A Santa Inquisição e o assado de borrego

Auto-de-fé promovido pela Inquisição Portuguesa
na Praça do Comércio em Lisboa, antes do terramoto de 1755.
Gravura anónima do séc. XVIII.

Poucas coisas igualarão o sublime, aromático e gostoso assado de borrego com que fui regalado neste almoço de domingo.
Se fosse o Padre António Delicado (1) e se o Perfeito da Congregação para a Doutrina da Fé me autorizasse a fazer declarações, eu adagiaria: “Pela boca morre o alentejano!”. Todavia, se Sua Reverência não me autorizasse, das duas uma: ou pagava Bula ou ia dar com os costados ao mais próximo cárcere do Santo Ofício. Aí, de acordo com os Cânones em uso, permaneceria imerso em vinha de alhos, até ser considerado apto a ser assado em lume mais ou menos brando, conforme superior determinação do Inquisidor-Mor. Todavia, como não sou muito gordo, ficaria bem passado, enquanto o Diabo esfrega um olho. Terminada a assadura, Sua Reverência proclamaria:
- Está bem passado o herege. Graças a Deus!
Nesta altura acordei do pesadelo causado por uma digestão difícil que me conduzira à sonolência pós-repasto. E acordei no preciso momento em que a minha pele esturricada pelo lume, rejeitava com frontalidade aquele piedoso “Graças a Deus”. Chiça que não ganhei para o susto!

(1)– António Delicado. Adagios portuguezes reduzidos a lugares communs / pello lecenciado Antonio Delicado, Prior da Parrochial Igreja de Nossa Senhora da charidade, termo da cidade de Euora. Officina de Domingos Lopes Rosa. Lisboa, 1651.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

In Vino Veritas

“Os bêbados” ou “Festejando o S Martinho” (sem data).
José Malhoa (1855-1933).
Estudo em carvão sobre papel (33x45 cm).

In Vino Veritas (No vinho a verdade) é uma máxima latina que traduz a liberdade com que o bêbado se exprime sempre, em virtude da embriaguez soltar a língua e fazer a verdade vir ao de cima. Para alguns, a sentença exprime igualmente a sacralidade e a inviolabilidade dos contratos confirmados com o vinho.
Julgo que In Vino Veritas seja o título mais adequado para designar a presente trilogia de histórias sobre bêbados. É que para além do sabor do vinho, há também as histórias deliciosas que este suscita. E estas são histórias reais.

Passou ou não passou?
Em meados do século passado, um conterrâneo meu da família dos Margalhos, conhecido por ser um bom bebedor, pretendia atravessar a fronteira em Badajoz. A isso se opunha a Guarda Civil, alegando que ele era portador dum garrafão com razoável quantidade de vinho. Vai daí, entraram em acesa discussão, porque o Margalho era teimoso que nem um jumento e o guarda espanhol não lhe ficava atrás. Passa e não passa. Passa e não passa. Passa e não passa. E não saíam dali, até que o Margalho que era esperto que nem um rato, se passa dos carretos e leva o garrafão às goelas, emborcando o conteúdo integral de uma assentada. Ingerido o último golo, questiona então o guarda:
- Posso ou não posso passar com o garrafão?
O guarda, contestado na sua autoridade e vermelho de raiva, não viu outra saída que não fosse a resposta que deu:
- Agora pode passar!
O Margalho, inchado de gozo por ter vencido a discussão, atravessou então a fronteira, ao mesmo tempo que “farpeava” o guarda com um bem medido gracejo, daqueles em que era pródigo:
- Então senhor guarda? Passou ou não passou?

Engenheiro Brandy Lopes
Nos anos setenta do século passado, na Escola Industrial e Comercial de Estremoz, leccionava desenho técnico, um professor, agente técnico de formação, que a gíria estudantil alcunhara de engenheiro Brandy Lopes. É que o homem, a dar para o castiço, era um bebedor inveterado e andava quase sempre aconchegado interiormente com aquilo que se vende nas tabernas. Constava-se também que a esposa não lhe ficava atrás, existindo apenas uma diferença entre eles: um bebia do branco e outro bebia do tinto.
Certo dia regressavam a casa, depois de se abastecerem na mercearia mais próxima. Ele à frente com os dois garrafões. Numa mão o do branco e na outra o do tinto. Mais atrás, a esposa carregava um saco com o avio da mercearia.
Ou porque a calçada era irregular ou porque já ia “bem tratado”, o nosso engenheiro tropeça na calçada e para não se estatelar no chão, deixa escapar os garrafões. Como uma desgraça nunca vem só, um dos garrafões partiu-se. A esposa alarmada, não lhe chega a perguntar se ele se magoara ou não. Célere e instantaneamente apenas lhe faz esta pergunta lacónica:
- Foi o teu ou o meu?
Responde ele:
- Foi o meu!
Resposta da esposa:
- Então não faz mal!

O corte do petisco
Com a crise que atravessamos cada vez mingua mais o dinheiro disponível para o petisco, essa notável instituição alentejana. O dinheiro não dá para tudo. Ou se corta no vinho ou se corta no petisco, é o dilema que muitos enfrentam.
Ti Zé Venâncio, frequentador habitual das tabernas, queixava-se da situação, dado que não atinava entre optar pela bebida ou pela comida. Lamentava assim a sua triste sina de se ver nesta situação. E eis que entra na conversa, Ti Chico Pinguinhas, velho camponês de pele seca como o pechelim, que diz de rompante:
- Para mim só há uma saída. É a mesma que tivemos a seguir à grande Guerra, quando a miséria era grande.
Pergunta então o Zé Venâncio.
- E qual é, ti Chico?
- A gente bebe e não come. Era o que a gente fazia. Bebíamos um garrafão a olhar para um caroço de azeitona…

Hernâni Matos

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Todo o preto tem o seu dia

“Os bêbados” (1922). Miniatura em cerâmica de Francisco Elias (1869-1937). Museu da
Cerâmica, Caldas da Rainha. Reprodução de “Os bêbados” (1907), óleo sobre tela de José
Malhoa (1855-1933), Museu José Malhoa, Caldas da Rainha.

É sabido que o homem português gosta de profusamente regar com vinho, aquilo que opiparamente come, preparado pelas sacerdotisas incumbidas de satisfazer as necessidades ancestrais do seu palato. Essa terá sido, porventura, a superior forma encontrada para coroar a majestade e a excelência da gastronomia da região a que pertence.
Por vezes, o homem português lida mal com quantidades e mete o pé na argola, eufemismo manso, tradutor duma, por vezes, real carraspana. Vale então alguém que, para além do adorado e consagrado vinho, sabe também usar da água, pelo menos para pôr água na fervura, quando anima o “derrotado” com um antigo e oportuno adágio:
- "Todo o preto tem o seu dia!"
Trata-se de oralidades que transvazam amplamente o contexto temporal do Dia de S. Martinho, pois o homem português está sujeito a meter o pé na argola, em qualquer dia do calendário litúrgico.
Um velho bêbado, meu confrade de libações báquicas, proclamou um dia do alto da sua vermelhusca cor:
- Bebedeiras de S. Martinho? Só para amadores que não sabem beber. Falta-lhes traquejo!
É caso para dizer:
- E esta, hein?

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

A origem das alheiras


                              

À  Manuela Mendes:                      

Por diligência de D. João III junto da cúria romana, o Tribunal do Santo Ofício da Inquisição, foi imposto em Portugal pela bula "Cum ad nihil mugis", de 23 de Maio de 1536 e só seria extinto em 1821.
A Inquisição foi singularmente activa em Lisboa, Coimbra e Évora, com poder religioso, político, social e cultural, que institucionalizou o espírito de intolerância, particularmente anti-judaico e organizou um autêntico genocídio cultural através da censura literária.
Quando o pesado braço da Inquisição iniciou a perseguição aos judeus portugueses, estes viram-se na necessidade de se converter ao cristianismo, adoptando os seus costumes, pelo menos na aparência.
Como a tradição judaica, recusava o consumo da carne de porco, em virtude de esta ser considerada "impura", os nossos judeus viram-se na contingência de inventar a alheira, enchido no qual a carne de porco era substituída por uma extensa gama de carnes, que incluía galinha, peru, pato, perdiz, vitela, carneiro, cabra,os quais eram envolvidos por uma massa de pão, que lhes conferia consistência.
A alheira é, hoje, um dos mais afamados ex-libris transmontanos. Lá diz o rifão: "A necessidade é mestra de engenho". Na verdade, as disposições regimentais do Tribunal do Santo Ofício, em contraposição com as leis e garantias do direito civil, permitiam o secretismo das testemunhas de acusação, a inviabilização da defesa do réu, a viciação do sistema de provas admissíveis e a validade da tortura, muitas vezes pelo fogo, na ratificação das confissões, ainda que estas fossem posteriormente desmentidas. Muitas vezes, as sentenças acarretavam a confiscação de bens e a morte pelo fogo.
Foi nesse contexto repressivo, que os nossos “marranos”, temerosos de perderem os bens e a vida, criaram a saborosa alheira. É caso para dizer:
- "Bem hajam, por isso!"
- "Honra e glória à criatividade da comunidade judaica portuguesa!"

BIBLIOGRAFIA
- DIVERSOS. Dicionário ilustrado da História de Portugal. Publicações Alfa, Lisboa, 1985.
- DIVERSOS. História da Arte em Portugal. Publicações Alfa, Lisboa, 1986.
- DIVERSOS. Marcos da Arte Portuguesa. Publicações Alfa, Lisboa, 1986
- SARAIVA, José Hermano. Imagens da História de Portugal. Publicações Alfa, Lisboa, s/d.

Publicado inicialmente em 19 de Agosto de 2011

terça-feira, 26 de abril de 2011

Cozinha dos ganhões


 GANHÃO (Início do séc. XX).
Cliché de Faustino António Martins, Lisboa.

COZINHA DOS GANHÕES (1911).
Herdade das Pinas, de D. Theodoro Rodrigues, Estremoz.

A GANHARIA
Os “ganhões“ eram assalariados agrícolas indiferenciados, que se ocupavam de tarefas como lavras, cavas, desmoitas, eiras, etc., com excepção de mondas, ceifas e gadanhas. A sua actividade está registada no cancioneiro popular:

“Eu sou um ganhão da ribêra,
Da ribêra sou ganhão.
Lavro com dois bois vermelhos
Que fazem tremer o chão. [3]

“Bom arado e bom tomão
Faz’uma bela intanchadura;
Boa junta e bom ganhão
Deitam um rego à d’reitura”. [3]

Numa lavoura existiam duas espécies de ganhões: os de pensão e os rasos. Os primeiros ajustados ao ano, pelo S. Mateus e os segundos por temporada de faina agrícola, ganhando estes menos que aqueles.
O conjunto dos ganhões era designado por “ganharia“ ou “malta“ e tinha por dormitório a chamada “casa da ganharia “ ou “casa da malta“, casa ampla que podia acomodar vinte a trinta homens, em tarimbas improvisadas ao longo das paredes. A casa da ganharia tinha sempre uma lareira espaçosa, onde à noite, os ganhões se sentavam nos burros, bancos improvisados com pernadas de azinheira ou de sobreiro. Aí se enxugavam de eventuais molhas, se aqueciam e conversavam pelo serão fora.
A ganharia tinha como mandante o “abegão“, que só recebia ordens do grande lavrador, que o tinha como seu representante em todas as tarefas agrícolas. Era ele que dava as ordens para começar a trabalhar, comer ou parar e que tratava da acomodação e pagamentos da ganharia. Era ele quem determinava o ritmo de tudo:

“Cá ‘stou á porta da rua,
Sem manta nem cassação;
Oh rapazes, vão lá fora,
Que lá vem o abegão.” [6]

O abegão dava o apoio necessário aos ganhões:

“Corri matos e charnecas,
Eu mais o meu abegão,
Para achar um par d’aivecas
À minha satisfação.” [6]

A condição de abegão era cobiçada pelas raparigas casadoiras:

“Belo monte da Gramicha
Que já não tem abegão
Eu hei de p’ra lá mandar
O amor do meu coração.” [6]

O abegão trabalhava e comia juntamente com os ganhões, mas dormia em casa própria com o “sota“, que era coadjutor e substituto do abegão em tudo que podia e sabia. A condição de sota também era invejada. Daí que estes fossem capazes de dizer às moças:

“Sou sota no taboado,
Na Pina dou-te partido;
Se eu não sou do teu agrado
Diz-me qual é o motivo.” [6]

Algumas gostariam de ter um sota por padrinho de casamento:

“No dia em que eu casar
É que levanto a bandeira,
O meu padrinho há de ser
O sota lá da Padeira.” [5]

AS REFEIÇÕES DA GANHARIA
No monte, as refeições da ganharia tinham lugar na chamada cozinha dos ganhões. Aí se sentavam em burros dispostos ao longo de uma mesa comprida e estreita. A cozinha dispunha igualmente de uma lareira espaçosa onde se podia cozinhar em panelas de ferro.
No Outono, no Inverno e na Primavera, as refeições da ganharia consistiam em almoço (antes do nascer do sol), merenda (ao meio-dia) e ceia (ao anoitecer).
Normalmente o almoço, ao levantar, constava de açorda acompanhada com azeitonas. A merenda, no local de trabalho, consistia em pão e queijo, um para cada homem e pão à descrição. A ceia, ao regressar do trabalho, baseava-se em olha com batatas e hortaliças, condimentadas em dias alternados com toucinho ou azeite. No dias de azeite, cada homem recebia meio queijo e azeitonas.
No Verão, as refeições da ganharia constavam de almoço (às sete da manhã), jantar (ao meio-dia) e merenda ou ceia, conforme se comia respectivamente ao sol-posto ou à noite. O almoço constava de sopas de cebola acompanhadas com azeitonas e meio queijo por cabeça.

“Triste vida a dum ganhão
agarrado ao rabanejo,
de manhã é calatrão [a]
ao meio dia pão e queijo.” [7]

O jantar consistia em olha de legumes com toucinho e morcela ou badana. A merenda ou ceia compunha-se de gaspacho acompanhado com azeitonas e meio queijo por homem. Em vez do gaspacho também podiam ser batatas cozidas temperadas com azeite e vinagre.
A mesa da cozinha dos ganhões era posta pelo abegão e pelo sota, que se sentavam cada um à sua cabeceira da mesa. A entrada dos ganhões na cozinha só se verificava depois do abegão ter bradado para o exterior: “Ao almoço!”, ”À ceia!” ou “Ao jantar!”, conforme a refeição de que se tratava. A malta acudia logo à chamada, tirava o chapéu e sentava-se à mesa sempre no mesmo lugar. O que era para comer já tinha sido previamente vazado pelo abegão e pelo sota, em grandes alguidares, conhecidos por “barranhões”. Só faltava migar as sopas de pão, o que cada um fazia puxando da navalha que trazia consigo. Lá diz o adagiário: "Sopa de ganhão, cada três um pão."
Amolecidas as sopas, o abegão dava ordem de comer, soltando um “Com Jesus!”. De cada barranhão comiam quatro a seis ganhões, cada um dos quais metia sempre a colher no mesmo local do barranhão, já que "Não há guerra de mais aparato que muitas mãos no mesmo prato."
O abegão e o sota comiam cada um deles em sua tigela, mais pequena que o barranhão e que era unicamente para cada um deles.
"A hora de comer é a da fome" e por isso, as refeições corriam sem pressas, em silêncio e ordeiramente, com cada um concentrado no acto de comer, já que "Quem não é para comer não é para trabalhar."
Durante as refeições, se alguém precisava de pedir qualquer coisa, batia com a navalha na mesa. Se alguém batesse no barranhão era para pedir a rodilha para se limpar.
Quando todos tinham deixado de comer, o abegão punha-se imediatamente de pé, o que correspondia a dar ordem de retirar, o que cada um fazia, voltando a pôr o chapéu na cabeça. No exterior ou na casa da malta era então chegada a altura dos fumadores puxarem da onça de tabaco e do livro de papel, para enrolarem um cigarro que acenderiam com fuzil e isca:

“O regalo do ganhão
É comer em prato cheio,
Beber vinho, se lh’o dão,
Fumar do tabaco alheio.” [6]

No início do século passado, ainda persistia o costume de no final da refeição, o abegão juntar as mãos e dizer “Demos graças a Deus.” A malta punha então as mãos e pelo menos aparentemente, todos rezavam e só deixavam de o fazer, quando o abegão se benzia, dizendo: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!”. Nessa altura benziam-se e só depois se retiravam.

A CONDIÇÃO DE GANHÃO
A vida de ganhão era uma vida dura e humilde, saída em sina a homens robustos, com escassa possibilidade de, por mérito próprio, conseguirem ascender à condição de sota ou de abegão. Daí o pendor negativo do pensamento de alguns deles:

“Por me ver’s de pau e manta
Não cuides que sou pastor,
Sou um pobre ganhão
Do conde de Vila-Flor.” [6]

“Triste vida a de um ganhão,
Andar sempre a trabalhar!
Dá-lhe Deus uma doença,
Vai morrer ao Hospita!” [6]

Alguns queixavam-se dos pais das moças em idade de casar:

“Já não há quem queira dar
Uma filha a um ganhão.
Pensam que lhe há de vir
Das ilhas um capitão…” [3]

Outros desiludiam as próprias moças:

“Tenho vida de ganhão,
Não te posso assistir:
De dia ganho o meu pão,
De noite quero dormir.” [3]

Todavia, alguns tinham consciência de classe, que se traduzia em profunda crítica social:

“Mais vale um ganhão
Todo roto e esfrangalhado,
Que valem trinta pandilhas
Dos que usam marrafa ao lado.” [3]

“Mais vale um ganhão
Sem manta nem nada,
Que trinta peraltas
De bota engraxada.” [7]

E que pensavam as moças casadoiras? Nem todas pensariam o mesmo. Umas diziam que:

“Eu não quero amor ganhão,
Que não quero ser ganhoa,
Quero o amor hortelão,
Que eu quero ser horteloa.” [6]

Algumas iam mesmo mais longe.

“Ò moças não queiram
casar com ganhões,
não ganham avondo [b]
p’ra comprar botões.” [7]

Porém, outras tinham opinião contrária:

“Todas me lavam a cara,
Do meu amor ser ganhão:
É bonito, eu gosto dele,
É honrado e ganha pão.” [6]

Algumas lamentavam-se da sua sina:

“Eu nasci num berço d’oiro,
Quem havia de dizer
Que nos braços d’um ganhão
Havia de vir morrer!” [6]

O que é um facto, é que a avaliação predominante, não era favorável aos ganhões:

“Quem tiver filhas bonitas,
Não as deixe ir a funções,
Que são rodilhas de todos,
Onde se limpam ganhões.” [6]

Já que “Todo o preto tem o seu dia”, anualmente o ponto alto da vida de um ganhão era a ida às Festas do S. Mateus, a Elvas:

”Ó feira de S. Matheus,
Onde as ganharias vão
A gastarem o dinheiro
Da temporada do v’rão.”


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[a] - Sopas de cebola.
[b] - O bastante.

Publicado inicialmente em 26 de Abril de 2011

BIBLIOGRAFIA
[1] – CAPELA E SILVA, J. A. A linguagem rústica no concelho de Elvas. Revista de Portugal. Lisboa, 1947.
[2] – CAPELA E SILVA, J. A . Ganharias. Imprensa Baroeth. Lisboa, 1939.
[3] - LEITE DE VASCONCELLOS, J. Cancioneiro Popular Português, vol. I, Acta Universitatis Conimbrigensis, Coimbra, 1971.
[4] – PICÃO, José da Silva. Através dos Campos (2ªed.). Neogravura, Limitada. Lisboa, 1941.
[5] - PIRES, A. Tomaz. Cantos Populares Portuguezes. Vol. III. Typographia e Stereotipía Progresso. Elvas, 1912.
[6] - PIRES, A. Tomaz. Cantos Populares Portuguezes. Vol. IV. Typographia e Stereotipía Progresso. Elvas, 1912.
[7] - SANTOS, Victor. Cancioneiro Alentejano. Livraria Portugal. Lisboa, 1959.
[8] – VIEIRA DE SÁ, Mário. O Alemtejo. J. Rodrigues e C.ª. Lisboa, 1911.