Canto e lamentação da cidade ocupada
Daniel Filipe (1925-1964)
1.
Ei-la a cidade envolta em dor e bruma
Ei-la na escuridão serena resistindo
Hierática Estranha Sem medida
Maior do que a tortura ou o assassínio
Ei-la virando na cama
Ei-la em trajes menores Ei-la furtiva
seminua sensual e no entanto pura
Noiva e mãe de três filhos Namorada
e prostituta Virgem desamparada
e mundana infiel Corpo solar desejo
amor logro bordel soluço de suicida
Ei-la capaz de tudo Ei-la ela mesma
em praças ruas becos boîtes e monumentos
Ei-la ocupada inerte desventrada
com música de tiros e chicote
Ei-la Santa-Maria-Ateia maculada
ignóbil e miraculosamente erecta
branca quase feliz quase feliz
Ei-la resplandecente de amor teoria
e prática nocturna mistério acontecido
doce habitável ah sobretudo habitável
vestido acolhedor café à noite
a voz distante e amada ao telefone
Ei-la que fica e sobrevive
e reflecte neons nos lagos do jardim
mesmo quando partimos e as lágrimas inúteis
roçam de espanto a solidão crescendo
Ei-la a cidade prometida
esperamos por ela tanto tempo
que tememos olhar o seu perfil exacto
flor da raiz que somos
meu amor
2.
Com ternura crescente, insone, canto.
Com simples flores de angústias,
canto.
Em termos de revolta, crise, sonho,
ergo, à mesa do café vazio e enorme,
meu sonho de viagem sem regresso.
Para enganar a solidão, o medo,
digo palavras, música, esperança.
Canto porque estou vivo e amarrado
à condição de ser fiel e agreste.
Porque em vão nos destroem a memória
com máquinas, rodízios, honorários.
Porque o sol torna fulvo o teu cabelo
e apetecem meus lábios os teus seios.
Canto para espantar o espectro indefinido
da besta apocalíptica, medonha.
Canto e louvo o teu sonho, amigo anónimo,
suando e trabalhando, algures oculto.
Canto a tua coragem, general,
confinado na prática e fora dela.
Canto como quem morde, ofende, esmaga
e, exausto, resiste e sobrevive.
Canto para saber que vale a pena
ter voz, músculos, nervos, coração.
à mesa do café, nas ruas, canto.
Nos jardins, nos estádios, sofro e canto.
No quarto abandonado, sonho e canto.
Nos pequenos cinemas rio e canto.
Entre teus braços doces, choro e canto.
Descerro a aurora com palavras graves,
cantando. Reinvento a melodia,
o sol aberto, o amor pelas esquinas,
a marca sensual nos ombros nus,
a memória da infância, a tua face
— e canto.
Inutilmente embora,
canto.
3.
Não fora o grito a faca
de súbito rasgando
a fronteira possível
Não fora o rosto o riso
a serena postura
de cadáver na praia
Não fora a flor a pétala
recortada em vermelho
o longínquo pregão
o retrato esquecido
o aroma da pólvora
a grade na janela
Não fora o cais a posse
do nocturno segredo
a víbora o polícia
o tiro o passaporte
a carta de Paris
a saudade da amante
Não fora o dente agudo
de nenhum crocodilo
Não fora o mar tão perto
Não fora haver traição
4.
Não basta estender as mãos vazias para o corpo mutilado,
acariciar-lhe os cabelos e dizer: Bom dia, meu Amor.
Parto amanhã.
Não basta depor nos lábios inventados a frescura de um beijo
doce e leve e dizer: Fecharam-nos as portas. Mas espera.
Não basta amar a superfície cómoda, ritual, exacta nos com-
tornos a que a mão se afeiçoa e dizer: A morte é o
caminho.
Não basta olhar a Amante como um crime ou uma injúria
e apesar disso murmurar: Somos dois e exigimos.
Não basta encher de sonhos a mala de viagem, colocar-lhe as
etiquetas e afirmar: Procuro o esquecimento.
Não basta escutar, no silêncio da noite, a estranha voz dis-
tante, entre ruídos de música e interferências aladas.
Não basta ser feliz
Não basta a Primavera.
Não basta a solidão.
5.
É preciso cantar, é preciso sorrir,
encher a escuridão com árvores sem nome.
Estamos sós no mistério dos nossos quinze anos.
A tormenta passou. A comida arrefece.
A viagem sem história concede-nos a calma:
serenos existimos, ocultos, dominados.
Só o navio de fogo navega sobre as águas
(ponto negro no mapa que não teremos nunca).
No silêncio da espera, murmuramos palavras,
desfraldamos bandeiras, corrompemos o sonho.
Desejamos o amor, completo e derradeiro
como o cheiro do mosto nos lagares de Setembro
— mas olhamos o sexo e não compreendemos
a noite preenchendo um corpo de mulher.
E pura que ela fosse! desfar-se-ia em bruma…
De mãos vazias vamos para o sono comum.
Um cavalo na estepe, o nosso vago anseio
marcando-nos temores na impúbere face.
recolhemos o gesto, a flor primaveril,
o canal dos sentidos debruado de escombros
— e rígidos a planície inútil
com nervuras de sal no rosto imaginado.
6.
Pelo silêncio na planície pela tranquilidade em tua voz
pelos teus olhos verdes estelares pelo teu corpo líquido de
bruma
pelo direito de seguir de mãos dadas na solidão nocturna
lutaremos meu Amor
Pela infância que fomos pelo jardim escondido que não teve
o nosso amor
pelo pão que nos recusam pela liberdade sem fronteiras
pelas manhãs de sol sem mácula de grades
lutaremos meu Amor
Pela dádiva mútua da nossa carne mártir
pela alegria em teu sorriso claro pelo teu sonho imaterial
pela cidade escravizada pela doçura de um beijo à despedida
lutaremos meu Amor
Pelos meninos tristes suburbanos
contra o peso da angústia contra o medo
contra a seta de fogo traiçoeira cravada
em nosso doce coração aberto
lutaremos meu Amor
Na aparência sozinhos multidão na verdade
lutaremos meu Amor
7.
Aqui ainda podemos esquecer-nos
aqui ainda podemos fechar os olhos e sonhar
aqui ainda podemos ignorar voluntariamente
o dragão pela noite
Aqui ainda podemos fingir de homens
aqui ainda podemos sorrir como se nada fosse
aqui ainda podemos jogar obsessivamente o xadrez
Aqui ainda podemos ter pequenas ambições
aqui ainda podemos ser pequenos em tudo
aqui ainda podemos cruzar inteligentemente os braços
Aqui ainda podemos estar mortos e ler o jornal todos os dias
aqui ainda podemos responder a anúncios
aqui ainda podemos ter um tio nas Américas
Aqui ainda podemos ter um rádio portátil
aqui ainda podemos gostar de futebol
aqui ainda podemos ter uma amante oculta
Aqui ainda podemos ir cedo para casa
aqui ainda podemos estar no café com os amigos
aqui ainda podemos ter um jeito marítimo
Aqui ainda podemos
em silêncio esperar.
8.
O que menos importa é o fato surrado
afinal cada qual tem o seu próprio fado
Comer uma só vez por dia não tem importância
é até um bom preceito de elegância
Recear a prisão a pancada as torturas
ora quem os manda meter em aventuras
Não chega o dinheiro para pagar o aluguer
nem para ir ao cinema nem para ter mulher
Disparates Doutra forma o poder cai na rua
e lembrem-se senhores a revolução continua
9.
Mas há a noite. O estar sozinho
e no entanto acompanhado — servo de um deus estranho
cumprindo o ritual jamais completo
mas há o sono. A lúcida surpresa
de um mundo imaterial e necessário,
com praias onde o corpo se desprende.
mas há o medo. Há sobretudo o medo.
Fel, rancor, desconhecido apelo,
suor nocturno, rápido suicídio.
10.
Entanto, enquanto dói,
ouçamos folhetins (de rádio ou doutros):
cavalgam pelo écran fotogénicos potros
e a rapariga beija o seu cow-boy).
A solidão é chaga que rói, rói?
Não pode a vida suportar o mito?
(devora as unhas o espectador aflito,
não vá morrer de tiro ou tédio o herói).
E há quem diga que o diabo foi
o responsável desta história toda.
(nem fomos convidados para a boda
leia-se FIM — da moça e do cow-boy).
11.
E de novo a cidade ó ritmo esquecido
de estranhas convulsões cheiro de pecado visco
mãos esguias pedimos uma esmola negada
suave
deslizar de carros inconcretos
E de novo a terrível sedução da manhã
o jeito da navalha no riso do playboy
a náusea pressentida o tem-de-ser agora
meu amor meu amor ver-nos-emos depois
E de novo a pastora na gravura da sala
o grito da ambulância o conto do vigário
o som da água corrente o choro da criança
tuas mãos distraídas preparando o almoço
E de novo a usura a promessa de emprego
a carta que não chega o anúncio interdito
o rosto seco e ardente frias salas de espera
vá passando por cá talvez tenha mais sorte
E de novo este pão não amassado de lágrimas
mas salgado de pranto mas comido com raiva
com desespero angústia tempero obrigatório
amargo condimento fel e raiz da esperança
Daniel Filipe (1925-1964)
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