quarta-feira, 25 de setembro de 2019

A visão multifacetada das coisas


Fig. 1 – Varredor de rua. Fotografia de Guy Le Querrec. Estremoz, 1967.

Prólogo
Alguns são historiadores. Uns são encartados e outros não. Eu sou simplesmente estoriador ou seja um contador de estórias ao jeito que já conhecem. São estórias de vida daqueles que me cercam. São também estórias de vida daqueles que já partiram, mas permanecem vivos no registo quântico da minha memória. São ainda estórias de vida que chegam até mim, através de imagens que observadores atentos captaram e fixaram para a posteridade. Cabe-me a mim, proceder à leitura dessas imagens. Em primeiro lugar daquilo que é óbvio e salta à vista de todos. Tanto pode ser uma como várias estórias. Depois vem a leitura daquilo que não é evidente e apenas é visível para observadores mais atentos e minuciosos. Segue-se a leitura do lado oculto das imagens, o que já exige outros dons. Só no fim vem a lição, a mensagem ou o aviso que essas imagens transmitem.
Pausa no trabalho                                                    
A imagem que me chegou às mãos e que é objecto da presente crónica, é da autoria do fotógrafo francês Guy Le Querrec e foi obtida em 1967, em Estremoz, à saída do Largo da República para a Rua Brito Capelo. Terá sido fruto da conjugação de um raro sentido de oportunidade e de um elevado grau de consciência antropológica do seu autor.
O personagem central da fotografia é um varredor de rua, encostado à parede e que no decurso de uma pausa no trabalho se prepara para enrolar um cigarro. Fumava tabaco de onça, que seria o único permitido pelo seu magro salário. Creio que no fim não terá lançado a beata para o chão, por cuja limpeza era responsável. À sua frente, os instrumentos de trabalho de que se serve, o vasculho e um carro de mão com dois baldes com tampa, dum dos quais espreita o cabo de uma pá de apanhar o lixo.
Loja de Artesanato
A personagem secundária da fotografia, mas com importância para a presente crónica, é a montra da Loja de Artesanato Regional da Olaria Alfacinha, situada no n.º 30 do Largo da República. No recheio da montra figuram Bonecos de Estremoz e destaca-se uma peça de Olaria enfeitada, conhecida por “Candelabro enfeitado”. O chão e o passeio estão limpos, o rodapé da parede, em pó de sapato, é elevado. À esquerda a parede está descascada, indiciando salitre. De resto a alvura da parede está comprometida pelos cabos eléctricos ali estendidos pela EDP.
A Loja de Artesanato da Olaria Alfacinha foi encerrada em 1987, quando do trespasse da Olaria pelo casal Rui e Cristina Barradas, que foram proprietários da Olaria até ao seu encerramento definitivo em 1995.
Mas isso são tempos que já lá vão. Foi Luís de Camões que disse: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,/ Muda-se o ser, muda-se a confiança; / Todo o Mundo é composto de mudança, / Tomando sempre novas qualidades.”
Talho
A loja mudou de ramo. Ali já não se vendem recordações que têm a ver com a matriz identitária local e regional. Ali já não se vendem Primaveras, Peraltas, Senhoras de Pezinhios, Frades a cavalo e Matanças de porco. É que a Loja de Artesanato deu origem a um talho. Agora vende-se ali dobrada, segredos, morcelas, farinheiras, costeletas, bifes da vazia e hamburguers feitos na hora. E não é só isto, mas muito mais, já que à matança do porco se acrescentou a do borrego, da vitela, dos frangos e dos perus. Há carne de todos os feitios e paladares, à vontade do freguês.
A imagem do exterior do talho (Fig. 2) é da autoria do barrista Ricardo Fonseca e foi obtida na actualidade. A montra da Loja de Artesanato deu origem a uma janela com persianas e cuja função é iluminar o talho com luz natural. O rodapé, agora mais vivo, baixou de altura. A alvura da parede é agora maior, como maior é o número de cabos da EDP a profanar a parede. À esquerda da montra, uma caixa também da EDP e à direita um gradeamento que evita o estacionamento no local e impede que os peões sejam atropelados pelos automóveis que por ali transitam.                        
Recuperar a Olaria
A Olaria Alfacinha foi extinta em 1995 e a última Olaria existente, a Olaria Regional, acabou com a morte de Mestre Mário Lagartinho em 2016. Há 3 anos que se encontra extinta a Olaria em Estremoz. É um interregno que começa a doer, como doeu o interregno de 14 anos na manufactura de Bonecos, entre 1921 e 1935, até á revitalização promovida nos anos 30 do século passado, por Sá Lemos, Director da Escola Industrial António Augusto Gonçalves. Como não tenho espírito sebastianista, não estou à espera de um novo Sá Lemos, que venha reactivar a extinta Olaria de Estremoz. Creio torna-se necessário gizar um plano para a sua recuperação e salvaguarda. Não basta a Olaria estar musealizada, é preciso que esteja viva.
A Olaria, filha bastarda da Barrística
A Barrística Popular Estremocense tem duas componentes: a manufactura de Bonecos e a Olaria. A primeira desde 2017 que integra a Lista Representativa do Património Cultural Imaterial da humanidade.
Quanto à Olaria é uma arte popular tradicional mais antiga que os Bonecos e que na cidade se firmou desde tempos remotos e que por isso mesmo tem também a ver com a identidade cultural local e regional. Todavia, a Câmara há muito que virou a cara para o lado e assobia distraidamente, como se não fosse nada com ela. É caso para lhes perguntar:
- “Porque é que só se interessam pelos Bonecos?”
É claro que não vão responder, mas a resposta que ocorrerá, decerto, a muito boa gente é que:
- “Os Bonecos é que estão a dar!”
É caso para lhes perguntar:
- “E a Olaria não é gente?”
A meu ver, a recuperação da extinta Olaria tradicional de Estremoz é necessária,
inadiável e urgente, o que me incita a dar algumas recomendações à Câmara:
- “Metam o assobio no bolso. Arrepiem caminho. Abram os olhos, que ainda não chegou o tempo de os fechar.”
E acrescento:
“Já vos foi sugerido um caminho com viabilidade assegurada, visando aquela recuperação. Todavia, alguém que já não está aí, não quis. Decerto que há outros caminhos alternativos àquele que vos foi sugerido. Têm é de escolher um e percorrê-lo até ao fim. Não podem é enterrar a cabeça na areia como o avestruz.” 
Literatura de Tradição Oral
A literatura de tradição oral faz uma abordagem antropológica da figura do varredor. Assim, na GÍRIA POPULAR, o varredor é conhecido por “Almeida” e por “Escrivão de pena grande”. A nível de PROVÉRBIOS são conhecidos alguns: “Lixo é o que não presta”, “A vassoura nova é que varre bem” e “Se caiu no chão é para quem varrer a rua”. Quanto a SUPERSTIÇÕES são conhecidas estas: “Varrer os pés de uma pessoa faz com ela nunca se case” e “Varrer a casa ao meio-dia e deitar cisco fora é muito mau, porque se deita fora a fortuna”. No âmbito das LENGALENGAS é bem conhecida esta: “Varre, varre vassourinha / Varre, varre vassourinha / Varre bem esta casinha / Se varreres bem dou-te um vintém / Se varreres mal dou-te um real.” No domínio das ALCUNHAS ALENTEJANAS, “Varredor” é uma alcunha de origem profissional (Redondo), “Vassourinha” a designação aplicada a uma mulher que em criança era muito irrequieta (Arraiolos) e “Vassoura dos penicos” o cognome atribuído a uma mulher muito vaidosa (Redondo). No que respeita a TOPONÍMIA e apesar da importância social de que sempre se revestiu a actividade diária dos varredores, estes estão ausentes da toponímia nacional. Por outro lado, também não conheço qualquer referência ao varredor no CANCIONEIRO POPULAR. Todavia no álbum “Madrugada dos trapeiros” editado em 1977, o cantor Fausto termina a canção “O varredor”, dizendo: “Neste trabalho braçal / de tudo varre o varredor: / gato morto e um aborto semanal / o que nos falta em rigor, sim senhor, é varrer o capital.”
Epílogo
A realidade é multifacetada, pelo que variando a profundidade da observação há que sucessivamente perscrutar o óbvio, sondar o menos visível e penetrar no oculto. A realidade é também multidimensional no espaço e no tempo. Por isso, a análise de uma imagem tem que se lhe diga. Requer mais instrumentos que os ingredientes comportados pelo cozido à portuguesa. Pensem bem nisto e não se deixem arrastar pelo óbvio.
(Estremoz, 15 de Setembro de 2019)

Fig. 2 – Janela de talho. Fotografia de Ricardo Fonseca. Estremoz, 2019.

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