quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Prefácio de António Júlio Rebelo ao livro "Bonecos de Estremoz", de Hernâni Matos


António Júlio Rebelo

PREFÁCIO

Com este livro vamos fazer uma viagem. Quem nos orienta é Hernâni Matos, um colecionador apaixonado e ciente de que a eternidade se ganha na recolha diária de objetos. Hernâni, na sua ânsia comunicativa, irá conduzir-nos por uma paisagem humana que se expressa na história dos Bonecos de Estremoz.
É esse grau de ligação, essa saudável mistura aquilo que, na verdade, as viagens têm de bom. Sendo humana, é também feita de barro, formas e cores. Nesta trilogia apetecível, esta viagem revela ao pormenor os Bonecos de Estremoz. Do interior fundo dessa mistura delicada que os constitui irrompem homens e mulheres, que, pela sensibilidade e técnica, criaram com as suas mãos e utopia objetos vivos. Vivos pela pertença, vivos pelas histórias e memórias, vivos pelo poder que a simbologia concebe ao imaginário. Esta viagem assinala os diversos momentos dessa existência material que cada vez mais se vai tornando em persistência imaterial. Trata-se de uma humanidade e de uma comunidade reveladas ao longo de muitos anos.
Vamos então para esse lugar habitado pelos Bonecos. Comecemos pelos primórdios e como tudo começou e ficou em suspensão, uma ameaça terrível, não consumada, de imerecida extinção. Depois, como tudo aquilo que permanece, o ressurgimento. Tudo isso é contado nesta viagem em andamento. A paisagem, entretanto, muda, e nesse renascimento há, através dos Bonecos, uma dádiva à nossa história comum. Uma visibilidade que nesse momento se tornou mais ampla, tão datada e tão precisa.
A viagem prossegue e faz-se nas narrativas da tradição, compatibilizando inovação e produzindo novos paradigmas. Neles a Escola está assinalada. Ela foi hospedeira, laboratório, espaço criativo de aprendizagem. A Escola é o arranque, a pré-história dos sonhos. E os Bonecos avançam e nós também. De tanta presença manifestada já não sabemos, afinal, se viajamos com eles ou se são eles, pela sua inexplicável atração, quem nos acolhem nesta viagem. Eles são demasiados em exemplos de profissões, de atividades, de modos de existir.
Na viagem em prossecução, a narrativa pormenoriza-se neste itinerário com marcas de identidade, de autores, de uma nomenclatura própria e, igualmente, no diálogo constituído com a literatura oral. Pela oralidade descobrimos e identificamos muitos nomes que falam de si, pela exposição do Hernâni. São um sem fim de artesãos e artesãs que connosco passam a fazer parte desta viagem. Por isso, nesse percurso de Bonecos concebidos, existentes pela forma e cores impregnadas, quem os criou reforçou, afinal, o lado humano, tornando-os mais objetivos na presença efetiva desses criadores habitantes permanentes da nossa viagem. Conhecemos, por isso, muitos nomes, parcelas de vida e experiências que se cruzam. E a viagem continua humana, detentora de objetos que expressam uma simbologia que é representativa daquilo que têm no seu interior mágico. Cada fragmento visível, seja de forma ou de cor, é um pequeno mundo exemplar que conta uma história, desvenda um significado.
Esta viagem, como todas as viagens, parece chegar a um fim. Um fim que é, somente, uma simples paragem maior, uma vez que as viagens desta natureza nunca, em rigor, têm um fim. Abrir-se-á assim uma praça com um monumento que elogia e comemora. Justo reconhecimento da arte, das vivências do humano que se fundiram com o barro e fizeram nascer os Bonecos de Estremoz. Esse é o momento da obra do artista e da alegria pela abertura ao mundo. Uma situação única, um singular horizonte que importaria aproveitar.
Façamos as devidas despedidas ao Hernâni convictos de que a viagem irá prosseguir. As três geometrias explicadas, a placa, a bola e o rolo, verdadeiros elementos representativos da natureza, mas também do humano, farão o seu caminho na direção do futuro.

António Júlio Rebelo[1]
Meados de Setembro 2018


[1] António Júlio Andrade Rebelo, natural de Tomar e a viver em Estremoz, professor do Ensino Secundário a exercer funções na Escola Secundária/3 Rainha Santa Isabel dessa cidade. Licenciado em Filosofia, em 1981, pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa; Doutorado em Filosofia e Cinema, em 2014, pela Universidade de Évora.


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