Francisca de Matos
Texto lido por Francisca de Matos na sessão
“Bons
filhos à casa tornam” que a 5 de Janeiro de 2019,
teve lugar na Escola Secundária da Rainha
Santa Isabel em Estremoz,
para
apresentação pública do livro “Bonecos
de Estremoz”, de Hernâni Matos.
Fotografia de Luís Mariano Guimarães.
Chamo-lhe assim, cosmogénese, porque
neste livro se relata, com base em documentos e em depoimentos, toda a história
da criação dos Bonecos de Estremoz e também a genealogia dos artesãos que foram
os seus criadores e continuadores. Cada um deles, em determinado momento da sua
vida e pelas mais diversas razões, pegou no barro vermelho de Estremoz e
afeiçoou-o com as suas próprias mãos, dando-lhe forma humana, recriando e
perpetuando no tempo os usos e costumes de uma sociedade da qual, hoje, já
poucos se recordam. Neste ato criativo, que inclui naturalmente a alegria muito
especial que o artesão/criador sente perante a obra criada, vejo quase uma
parábola do Génesis bíblico. Isto, sem esquecer que a galeria dos Bonecos de
Estremoz é, no seu todo, uma espécie de presépio agigantado que, à semelhança
dos presépios barrocos que foram a sua inspiração, provoca, tal como eles, o
arrebatamento dos sentidos, devido à graça, ingenuidade e colorido das suas
figuras e à diversidade das cenas representadas e recriadas, ou seja, os
Bonecos de Estremoz são um verdadeiro microcosmo à escala, representativo da
região de Estremoz e do próprio Alentejo.
Neste sentido estamos
também, aqui, hoje, para dar a conhecer ao público uma bíblia, não no sentido
religioso do termo (Deus nos livre de tal...) mas no sentido de “Obra que
contém os fundamentos de uma área, de uma disciplina ou de um assunto”[1]
e que, tenho a certeza, virá a ser também “muito lida ou muito consultada” por
todos aqueles que querem saber um pouco mais sobre estes graciosos Bonecos que,
sendo de Estremoz, são também já Património da Humanidade.
Este livro - “Bonecos de
Estremoz” - pode também descrever-se, de forma metafórica, como um autêntico
puzzle, cujas peças se foram encaixando num jogo de paciência que não conhece
limites, ou não estivéssemos nós a falar do Hernâni Matos. A exaustiva pesquisa
bibliográfica e documental, organizada de forma diacrónica, surge acompanhada e
ilustrada por aquilo que o próprio autor designa como as “jóias da coroa”, as
suas, bem entendido, porque é sobretudo a sua própria coleção pessoal,
consolidada com tanto amor e devoção ao longo dos anos, que dá um brilho muito
especial a esta obra, materializando página a página toda a plasticidade e
colorido que tornam os Bonecos tão fascinantes.
Esta viagem no tempo
começa,pois, nas mais antigas referências conhecidas aos barros de Estremoz, em
meados do séc. XIII, e prolonga-se até à década de 30 do séc. XX, quando, no
seu nº 210 de 3/2/1935, o próprio Brados do Alentejo reconhece que os
Bonecos que tanta fama tinham alcançado estavam extintos. O próprio José Maria
de Sá Lemos, escultor que, 3 anos antes, havia tomado posse como professor e
diretor da então Escola António Augusto Gonçalves, escrevia também no Brados
do Alentejo, em novembro desse mesmo ano, que “as derradeiras feitureiras
(...) haviam levado consigo o segredo para o túmulo (...) sem terem deixado
escola” (p. 32). Mas esta sentença de morte não haveria de ser definitiva
porque, dessas antigas bonequeiras, ainda restava uma, a Ti Ana das Peles,
embora ela já mal se lembrasse dos bonecos que fizera muitos anos antes. E foi
ela que, com a persistência férrea de Sá Lemos, acompanhado pela mestria e
entusiamo do mestre de Olaria da escola, Mariano da Conceição, ajudou a
reerguer os Bonecos de Estremoz das cinzas a que pareciam estar condenados.
De tal forma que, em 1940
e por mérito próprio,os Bonecos de Estremoz já marcaram forte presença no
“Pavilhão da Vida Popular” durante a Exposição do Mundo Português, o que lhes
conferiu visibilidade e permitiu, definitivamente, virar a página da mais que
provável extinção.
O Hernâni Matos conta-nos
depois a biografia dos “Continuadores”, e são muitos, felizmente. Alguns, ainda
hoje moldam e trabalham o barro vermelho, produzindo não apenas os “Bonecos da
Tradição” – cuja descrição e caracterização pormenorizada constitui uma das
partes mais importantes do livro – mas também os da “Inovação” porque a arte,
quando é verdadeira, não é estática e muito menos rígida. Evolui, tal como os
próprios artesãos.
Estão aqui também
documentadas de forma exaustiva as marcas pessoais e as formas muito próprias
como cada artesão fez e faz os Bonecos, bem como a técnica de base da sua
feitura, os utensílios e as matérias-primas utilizadas.
E depois vem aquela que
me parece ser a parte mais importante da obra: a que regista a biografia de
cada um dos artesãos que, ao longo de gerações, tem dado identidade e uma alma
muito própria a estes Bonecos, assim contribuindo para a sua preservação.
Incluindo aqui as circunstâncias muito particulares que levaram cada um deles a
fazer os Bonecos e o modo como aprenderam a fazê-los: por necessidade de
subsistência, por circunstâncias familiares, por gosto pessoal, ou outros. E
sublinho ainda um aspeto que me parece ser muito pertinente: a forma como a
complexa teia de relações familiares, profissionais ou de afinidade entre os
diversos artesãos permitiu perpetuar esta arte ao longo do tempo. No fundo, a
tal “escola”de que falava Sá Lemos em 1935: aquela que implica haver quem
ensine, quem aprenda, quem pratique a arte, mas também quem a valorize e a
preserve. A “escola” que todos esperamos não volte a fechar portas para que os
Bonecos de Estremoz continuem a povoar as nossas memórias e, sobretudo, a
interpelar a nossa imaginação com a sua profusão colorida. Julgo ser esse o
grande objetivo do Hernâni Matos ao escrever este livro.
Julgo sobretudo que, com
este livro, o Hernâni Matos oferece aos seus conterrâneos a partilha generosa
de um conhecimento aprofundado e consolidado por anos de pesquisa e descoberta,
sedo este, sem qualquer dúvida, o seu maior e mais importante legado.
Francisca de Matos
Estremoz, 5/1/2019
[1] in Dicionário
Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, [consultado em
02-01-2019].
Bom dia, muitos parabéns por todo o conhecimentos dos Bonecos de Estremoz que transmite a todos nós. Gostava de adquirir o livro. Como fazer ? muito obrigado e grato pela sua atenção.
ResponderEliminarMuito obrigado pela apreciação que faz do meu trabalho.
ResponderEliminarO livro editado pela Afrontamento encontra-se esgotado.
Cumprimentos.