sábado, 22 de março de 2025

Adágios para o Dia Mundial da Água



AGUADEIRO (Alentejo - Século XIX-XX). José Malhoa (1855-1933). Óleo sobre
tela (44,5 x 41,3 cm). Museu Nacional de Soares dos Reis, Porto.

À CATARINA, MINHA FILHA:

PRÓLOGO

A comemoração do Dia Mundial da Água, recurso finito, do qual estamos dependentes, passa pela consciencialização pública da importância de que se reveste a conservação, preservação e protecção da água.
Resolvemos dar um contributo para essa consciencialização, recorrendo à tradição oral e mais particularmente ao adagiário português sobre a água. Da nossa colecção de duzentos e noventa e cinco adágios sobre a água, extraímos alguns, visando contribuir para aqueles objectivos e sistematizar também o nosso pensamento sobre o assunto.

SINOPSE DUM ADAGIÁRIO PORTUGUÊS DA ÁGUA

A água é um agente de erosão:
- A água bate na rocha mas quem paga é o mexilhão.
- A água cava a dura pedra.
- A água é branda e a pedra dura; mas, gota a gota, fará fundura.
- Água escava a rocha, amolecendo-a.
- Água mole em pedra dura, tanto dá até que fura.
- Não há água como a do Norte que até às pedras amolece.
A água tem alguns efeitos nocivos:
- A água arromba os navios.
- A água faz desabar as paredes.
A água é uma bebida de excelência:
- A água é a melhor bebida.
- Água que veja o sol: sem cor, sem cheiro e sem sabor,
- Antes sem luz que sem água.
- Bebedice de água nunca acaba.
- Estar com o bico na água e não beber.
- Ir com muita sede ao pote.
- Na fonte onde hás-de beber, não deites pedras.
- Não bebas água que não vejas, nem assines carta que não leias.
- Não sujes a água que hás de beber.
- Não vá com tanta sede ao pote.
- Ninguém suje a água que tem de beber.
- Nunca digas, desta água não beberei.
- Quando a vasilha é nova e tem água boa, todos querem beber por ela.
- Quando não puderes beber na fonte, não bebas no ribeiro.
- Quando puderes beber na fonte, não bebas no ribeiro.
- Quanto mais água, mais sede.
- Quem bebe água na bica, aqui fica.
- Quem come salgado, bebe dobrado.
- Quem tanta água há-de beber, há mister comer.
- Quem vai à fonte e não bebe... não sabe o que perde.
Os bêbados escarnecem da água:
- A água é boa para lavar os pés.
- A água é para os peixes e o minar para a toupeira.
- A água faz bem, mas só daquela que o vinho contém.
- A água faz criar rãs na barriga.
- Água não quebra osso.
- Água para os peixes, vinho para os homens.
- Com água cantam as rãs.
- Com água ninguém canta.
Todavia, os bêbados são escarnecidos devido à água:
- A água não empobrece, nem envelhece.
- Afoga-se mais gente em vinho do que em água.
- Com água ninguém se embebeda.
- Quem almoça vinho, janta água.
- Quem bebe água não se empenha.
- Quem ceia vinho, almoça água.
Quer-se água corrente para beber:
- Água corrente não faz mal à gente.
- Água corrente não mata a gente.
- Água corrente, água inocente.
- Água corrente, esterco não consente.
- Água corrida. não faz mal à barriga.
Para beber são desaconselhadas as águas paradas:
- A Água detida é má para bebida.
- A água silenciosa é a mais perigosa.
- Água de alagoa nunca é boa.
- Água detida é má para bebida.
- Água detida faz mal à vida.
- Água parada cria limos.
- Água parada: água estragada.
- Água que não soa não é boa.
- Água silenciosa é sempre perigosa.
- Águas paradas, cautela com elas.
- Não há água mais perigosa do que a que não soa.
- Não há pior água que a mansa.
- Não te fies em vilão, nem bebas água de charqueirão.
Aconselha-se a ferver a água:
- Água danificada, fervida ou coada.
- Água fervida alimenta a vida.
- Água fervida ampara a vida.
- Água fervida tem mão na vida.
A Medicina Popular refere-se à água:
- Água ao figo e à pêra vinho.
- Água fria e pão quente, mata a gente.
- Água fria e pão quente, nunca fizeram bom ventre.
- Água fria lava e cria.
- Água fria tem mão na vida.
- Água fria, sarna cria; água roxa, sarna escocha.
- Água gelada e pão quente, não fazem bom ventre.
- Água sobre mel, sabe bem e não faz bem.
- Água sobre mel, sabe mal e não faz bem.
- Com malvas e água fria, faz-se um boticário num dia.
- Come pão, bebe água: viverás sem mágoa.
- Onde a água sobra, a saúde falta.
- Quando Deus quer, água fria é remédio.
- Se queres beber sem receio, bebe água viva.
É variável a preferência por água fria ou água quente:
- A água é fria, mas mais é quem com ela convida.
- A quem tem vida, água fria é mezinha.
- Água quente adivinha outra.
- Água quente escalda a gente.
- Água quente, nem a são, nem a doente.
- Água quente, saúde para o ventre.
A água é um agente de lavagem:
- A água lava tudo.
- A água lava tudo, menos as más acções.
- A água lava tudo, menos as más-línguas.
- A água lava tudo, menos quem se louva e as más-línguas.
- Água suja sempre lava.
- Até ao lavar dos cestos é vindima.
- Lava mais água suja do que mulher asseada.
Com água se apagam fogos:
- O fogo e a água, são maus amos e bons criados.
- Queimada a casa, acudir com água.
- Sobre fogos, água; sobre peras, vinho.
A água é um agente de rega:
- A água é o sangue da terra.
- A água rega, o Sol cria.
A água comanda todo o calendário agrícola:
- A água de Janeiro traz azeite ao olival, vinho ao lagar e palha ao palheiro.
- A água de Janeiro vale dinheiro.
- Água de Janeiro mata o onzeneiro
- Janeiro quente trás o diabo no ventre.
- Por São Vicente (22 de Janeiro), toda a água é quente.
- Água de Fevereiro vale muito dinheiro.
- Água de Fevereiro, mata o Onzeneiro.
- Em Fevereiro entra o sol em cada ribeiro.
- Quando não chove em Fevereiro, nem bom prado nem bom celeiro.
- Água de Março é pior do que nódoa no fato.
- Quando o Março sai ventoso, sai o Abril chuvoso.
- A água com que no Verão se há-de regar, em Abril há-de ficar.
- A água de Abril é água de cuco, molha quem está enxuto.
- A água, em Abril, carrega o carro e o carril.
- Abril frio e molhado, enche o celeiro e farta o gado.
- Abril, chuvas mil.
- Em Abril águas mil.
- Em Abril, lavra as altas, mesmo com água pelo machil.
- O Abril bem molhado, enche a tulha e farta o gado.
- A água, Maio a dá, Maio a leva.
- Água de Maio, pão para todo o ano.
- Águas da Ascensão, das palhas fazem grão.
- Uma água de Maio e três de Abril valem por mil.
- Chuva de São João (24 de Junho) tira vinho e azeite e não dá pão.
- A água de Junho, bem chovidinha, na meda faz farinha.
- A água de Santa Marinha (18 de Julho), na meda faz farinha.
- Água de Julho, no rio não faz barulho.
- Quando é Junho a valer, pouco costuma chover.
- A água de Agosto faz mal ao rosto.
- Água de Agosto: açafrão, mel e mosto.
- Águas verdadeiras, por São Mateus (21 de Setembro) as primeiras.
- Setembro molhado, figo estragado.
- Dos Santos (1 de Novembro) ao Natal (25 de Dezembro) é Inverno natural.
- Dos Santos (1 de Novembro) ao Natal (25 de Dezembro) ou bom chover ou bom nevar.
- Depois de São Martinho (11 de Novembro), bebe o vinho e deixa a água para o moinho.
- Água de nevão dá muito pão.
A água está presente na pesca:
- Água preta não dá peixe.
- Grandes peixes pescam-se em grandes rios.
- Na água revolta, pesca o pescador.
A água é um bem em movimento:
- A água acode sempre ao mais baixo.
- A água ao moinho de longe vem.
- A água corre para a água.
- A água corre para o mar.
- A água corre para o poço.
- A água corre sempre para o mais baixo.
- A água corredia, não guardes cortesia.
- A água o dá, a água o leva.
- A água, por onde passa, molha.
- Água vem, água vai.
- Águas passadas não movem moinhos.
- Corre a água para o mar e cada um para o seu natural.
A água é um bem com valor:
- Quando a fonte seca é que a água tem valor.
- Só se sente a falta de água, quando o cântaro está vazio.
A água é um bem finito, que deve ser conservado:
- A água da fonte é muita, mas também se acaba.
- A água falta nos meses, mas nunca falta no ano.
- Água que não hás-de beber, deixa-a correr.
- Quem não poupa água e lenha, não poupa o mais que tenha.
A água não podia deixar de estar presente na religião:
- Água benta e caldos de galinha nunca fizeram mal a ninguém.
- Presunção e água benta, cada um toma a que quer.
- Presunção e água benta, cada um toma a que quer; mas a pia se esvazia, quando passa uma mulher.
- Quando a água benta é pouca e os diabos são muitos, não há quem os vença.
Referências também à água e à mulher:
- Água e mulher, só boa se quer.
- Quando uma mulher não sabe o que responder é porque não há mais água no mar.

EPÍLOGO
Mais poderíamos acrescentar, mas esta prosa já vai longa, pelo que preferimos rematá-la, acrescentando:

- Conselhos e água só se dão a quem pedir.

Publicado inicialmente a 22 de Março de 2012

terça-feira, 18 de março de 2025

Liturgia popular do pão


A amassadura do pão (Estremoz).
Fotografia de Rogério de Carvalho (1915-1988).

Noutros tempos, nos campos do Alentejo, bem como nas suas vilas e aldeias, a amassadura e a cozedura do pão eram acompanhados de um certo ritual de liturgia popular. Assim, ao deitar-se o sal na água da amassadura, dizia-se:

“Em louvor de S. Gonçalo,
Que não saia ensolso nem salgado.” [5]

Antes de começar a amassar, quem o ia fazer, benzia-se e depois de fazer uma cruz na farinha, dizia:

"Senhor, eu vou amassar;
Nossa Senhora me queira ajudar,
Que me dê forças e valor
Para este pão bom ficar.” [4]

Ao acabar de amassar, o amassador ou a amassadeira, gravava na massa, com o dedo indicador direito, o sinal da cruz e sobre ele, cinco buracos, um ao centro e os quatro restantes, em cruz, os quais simbolizavam as cinco chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Após isto, benzia-se e dizia:

“Deus te ponha a virtude,
Que eu fiz o que pude.” [3]

Ao acabar de amassar, também podia ser feita uma cruz na massa, ao mesmo tempo que era dito:

Deus te finte,
Deus te acrescente,
E as almas do Céu para sempre.
A Virgem te ponha a mão
Que cresça mais um pão.” [4]

Terminada a amassadura, cobria-se a masseira ou o alguidar com um pano, a fim de a massa levedar e levantar. Dizia-se então:

“Pelo sinal da Santa Cruz...:
S. Mamede te levede,
S. Vicente te acrescente,
S. João te faça bom pão,
A Virgem Nossa Senhora
Te deite a santa bênção.” [4]

Em alternativa, ao acabar de amassar, podia-se dizer:

“Em louvor de S. Vicente,
Deus te acrescente;
Eu fiz o que pude,
Nosso Senhor lhe ponha a virtude.
Em nome do Padre, do Filho e do Espírito Santo
Ámen.” [4]

Outra oração popular possível, era:

“Em louvor de Nossa Senhora,
Deus te acrescente,
E as almas do Céu para sempre;
O diabo cego seja
Para que te não veja.” [4]

Terminada a amassadura, a massa ficava na masseira ou no alguidar até levedar. Para tal, com o auxílio da mão direita, gravavam-se três cruzes na massa e ao meter-se o pão no forno, dizia-se:

“O Senhor te acrescente
Como o fole da semente,
Dentro do forno e fora do forno
Como acrescentou o mundo todo.
Nós a comer, e tu a crescer,
Todos seremos cheios
Com bem pouco comer.” [3]

Ao meter-se o pão no forno, fazia-se uma cruz com a pá, dizendo:

“Em nome do Padre e do Filho e do Espírito Santo,
Que cresças no forno e fora do forno,
E os meus inimigos, que comam um corno”. [2]

De resto, ao meter o pão no forno, podia-se fazer uma cruz à frente da porta do mesmo, dizendo:

"Nosso Senhor te acrescente,
As almas do Céu para sempre,
Venha a dona e fique contente.
O diabo arrebente,
O Senhor S. João
Que faça bom pão,
A gente a comer,
E tu a crescer,
Tudo Deus pode fazer.
Queira Deus que cresças tanto no forno
Como mentiras há na... (nome da terra).” [4]

Ao meter o pão no forno ou ao acabar de amassar, podia ser dito também:

“Deus te acrescente
E as almas do Céu para sempre;
O Diabo que arrebente,
A dona que fique contente;
Que cresças tanto
Como mentiras há no povo.” [4]

Existia a crença que o primeiro pão cozido num forno, livra das maleitas e por isso era dado a quem o pedia. [1]

BIBLIOGRAFIA
[1] - CHAVES, Luís. Páginas Folclóricas I – A Canção do Trabalho. Separata do vol. XXVI da “Revistas Lusitana”. Imprensa Portuguesa. Porto, 1927.
[2] - CONSIGLIERI PEDROSO, “Supertições Populares”, O Positivismo: revista de Filosofia, Vol. III. Porto, 1881.
[3] – DELGADO, Manuel Joaquim. A Etnografia e o Folclore do Baixo Alentejo. Separata da Revista Ocidente. Lisboa, 1956
[4] – POMBINHO JÚNIOR, A.P. Orações Populares de Portel. Edições Colibri-Câmara Municipal de Portel. Lisboa, 2001.
[5] - THOMAZ PIRES, A. Tradições Populares Transtaganas. Tipographia Moderna. Elvas, 1927.

Hernâni Matos
Publicado em 1 de Julho de 2011

domingo, 16 de março de 2025

Espiga Pinto, presente!


Espiga Pinto (1940-2014), no início dos anos 60 do séc. XX.


Espiga Pinto, presente!
(No 85º aniversário do seu nascimento)

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A Obra de Espiga Pinto na sua fase dos anos 60 do século 20, interpreta duma forma magistral as mais variadas cenas da vida agro-pastoril do Alentejo de antanho. Por isso, os seus trabalhos são um reflexo da identidade cultural alentejana. Daí a emoção estética e regionalista que a sua obra desperta.

Os sobrenomes “Espiga” e “Pinto”, atribuídos na pia baptismal, terão sido, porventura, o prenúncio de que a sua obra de artista plástico, iria abordar o “agro” (Espiga) e o “pastoril” (Pinto).

Espiga Pinto (1940-2014), natural de Vila Viçosa, pintor da 3ª Geração Modernista e da fase tardia do Neo-realismo, foi professor na Escola Industrial e Comercial de Estremoz (1960-1965), era eu adolescente e já admirava a sua Obra. Muitos anos mais tarde e já neste século, tive o privilégio de falar com ele algumas vezes em Estremoz. Uma das suas preocupações na época era a dificuldade que estava a sentir com a Câmara Municipal de Vila Viçosa, no sentido de esta lhe assegurar um edifício que pudesse funcionar como espaço exposicional, o qual permitisse alojar o seu legado, de modo que o público pudesse usufruir do conhecimento da sua Vida e da sua Obra.

Neste momento, parece que o actual executivo municipal de Vila Viçosa está interessado em concretizar a intenção do artista. Vejamos o que o futuro nos reserva.

A importância da obra de Espiga Pinto é consensual entre “quem percebe da poda” e justifica plenamente o empenhamento da comunidade no sentido de que o desejo do artista se torne realidade.

A exposição “Espiga Pinto – Memórias do Alentejo”, promovida pela Galeria Howard’s Folly e o Legado de Espiga Pinto, no espaço daquela Galeria, por ocasião da celebração do 85º aniversário do nascimento do artista, decerto que irá aumentar e reforçar as hostes dos admiradores da sua Vida e da sua Obra, o que constituirá um justificado motivo de júbilo para o universo dos seus admiradores, entre os quais humildemente me posiciono.

Estremoz, 16 de Março de 2025

sábado, 15 de março de 2025

Tocador de ronca

 

Tocador de ronca. Modelação de Carlos Alves. 
Pintura de Cristina Malaquias.

No Alentejo de outrora, grupos de homens agasalhados do frio, percorriam as ruas dos povoados em compasso lento e solene, entoando cantares de Natal ou das Janeiras. Paravam aqui e ali, para dedicar os seus cantos aos moradores de determinadas casas. Os cantares eram acompanhados pelo som, grave e fundo, das roncas percutidas por tocadores. A ronca é um instrumento musical tradicional do Alentejo, pertencente à classe dos membranofones de fricção. Ainda pode ser encontrado na zona raiana (região de Portalegre, Elvas, Terrugem e Campo Maior).

Hernâni Matos

sexta-feira, 14 de março de 2025

Exposição "Memórias do Alentejo" de José Manuel Espiga Pinto na Galeria Howard's Folly

 



Transcrito com a devida vénia de
do jornal E, nº 352,
de 14 de Março de 2025

A Galeria Howard’s Folly, em Estremoz, e o Legado de Espiga Pinto vão apresentar, no espaço daquela galeria, a exposição “Memórias do Alentejo”, por ocasião da celebração do 85º aniversário do artista plástico José Manuel Espiga Pinto (1940-2014).

A mostra, que inclui pintura, desenho e escultura, vai estar patente ao público entre 16 de março e 27 de abril e conta com o apoio institucional da BIALE, Bienal Internacional do Alentejo 2025.

As peças expostas, criadas na década de 60, aquando do regresso de Espiga ao Alentejo, refletem a excelência do seu período neorrealista e a infância do artista em Vila Viçosa.

A mostra integra peças em diversos suportes, desde a pintura, trabalhos sobre papel, desenho em tinta-da-china sobre cortiça escultura em bronze. A imagem representa a vida típica do Alentejo histórico, com composições que incluem o cavalo, o touro, a roda, a carroça, a apanha da azeitona, os agricultores, a camponesa e as festas locais.

“Roda”, de 1965, é a obra que sobressai pelo seu valor icónico, com tons laranja evocando a luz do amanhecer sobre a carroça no labor matinal nos campos e representando o símbolo de continuidade da vida. As peças escolhidas, nos vários suportes, continuam a complementar e a ecoar a roda ao longo da exposição.

A roda é um dos principais elementos recorrentes da iconografia de Espiga Pinto, presente em todas as suas fases subsequentes. A exposição centra-se nestes primeiros trabalhos da década de 1960, a “Série do Alentejo”, proporcionando uma narrativa de caráter histórico inspirada no profundo afeto do artista pela sua cultura.

Nascido em Vila Viçosa, em 1940, durante a Segunda Guerra Mundial, Espiga Pinto estudou escultura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, tendo sido distinguido com importantes prémios e distinções ao longo da vida pela sua contribuição multidisciplinar para as artes.

Foi membro da Academia Nacional de Belas Artes. As memórias e a ligação à vida rural no Alentejo influenciariam toda a sua obra. Espiga afirmou que foi na sua chegada a Estremoz, tinha então cerca de 20 anos, que assumiu como “sentido cósmico” para a sua vida “cantar o Alentejo”, explorando as principais formas figurativas e temas recorrentes, que mais tarde se tornariam a base para o simbolismo cósmico, patentes ao longo de uma extensa carreira de mais de 60 anos.

A arte de Espiga está amplamente estabelecida dentro e fora de Portugal, contando mais de 80 exposições individuais, com uma multiplicidade de obras em locais públicos e trabalhos presentes em prestigiadas coleções. Obras de Espiga foram recentemente incluídas em importantes exposições coletivas: Jaime Isidoro e Vila Nova de Gaia; 50 anos após os 1ºs Encontros Internacionais de Arte (2024), NEO-REALISMO – Memórias Guardadas do Acervo de Hernâni Matos (2024), Uma Terna (e Política) Contemplação do que Vive, obras da coleção Norlinda e José Lima (2023), 60º Aniversário da Cooperativa Árvore (2023) e Contra a Abstração, Obras da Coleção da Caixa Geral de Depósitos (2019).

Em 2020, Penelope Curtis, então Diretora na Fundação Calouste Gulbenkian, selecionou mais de 50 importantes obras, ampliando o já significativo conjunto de obras de Espiga na coleção do CAM – Centro De Arte Moderna Gulbenkian, incluindo peças associadas à temática da presente exposição.

O legado de Espiga Pinto preserva a obra e o acervo biográfico deste extraordinário artista, estando em curso uma extensa investigação com vista à elaboração de um catálogo raisonné. Esta exposição tem a curadoria de Amie Conway e Alex Cousens, profissionais independentes com um longo trajeto nas artes, baseados em Londres, Reino Unido, trabalhando diretamente com os dois herdeiros, Aurora e Leonardo Espiga Pinto, filha e filho, respetivamente. As obras são provenientes da coleção que o próprio artista cuidadosamente construiu, com agradecimentos pelo empréstimo de outras obras por parte de importantes coleções particulares.

Além do apoio institucional da BIALE 2025, esta exposição tem ainda o apoio da The Sovereign Art Foundation, do Grupo de Hotéis Marmóris, da Galeria Alvarez, da Galeria Aqui d’El Arte – CECHAP, da T.ARTe Collage.pt.

“A galeria do The Folly recebe normalmente artistas contemporâneos locais, mas estamos muito satisfeitos por, desta vez, recebermos um verdadeiro ícone da cena artística local que, infelizmente, já não está entre nós. Ter um artista desta estatura a expor na nossa galeria durante a BIALE do Alentejo é, na nossa opinião, muito propício” refere Howard Bilton, proprietário da Howard’s Folly e presidente da The Sovereign Art Foundation.

Aurora e  Leonardo Espiga Pinto, filhos do artista asseguram que “o regresso de Espiga Pinto ao seu Alentejo, e a Estremoz, tem um enorme significado. Esta é a primeira exposição de desenho, pintura e escultura de Espiga Pinto desde o seu falecimento. Além disso, a sua célebre “Série do Alentejo” (década de 1960) não era mostrada ao público há 15 anos. E, finalmente, a exposição tem lugar em Estremoz, lugar onde o nosso pai viveu e criou estas mesmas peças, na sua casa-atelier”.

quinta-feira, 13 de março de 2025

Tocadora de adufe

 

Tocadora de adufe do rancho do acabamento da azeitona.
Modelação de Carlos Alves. Pintura de Cristina Malaquias.

No Alentejo de antanho, no termo de Estremoz, terminada a safra da azeitona, o rancho da apanha dirigia-se ao monte do lavrador a agradecer a concessão do trabalho sazonal então terminado.
Com um avental confeccionava-se um pendão que era transportado até ao monte e traduzia simbolicamente a intenção festiva do grupo. Uma vez chegado ao monte, o rancho era mimoseado pelo lavrador com comes e bebes. Retribuíam cantando modas acompanhadas da percussão de adufes, membrafones característicos não só da Beira Baixa, como do Alentejo e de Trás-os-Montes, os quais eram percutidos por mulheres.

Ganchos de meia e meias de cinco agulhas (2ª edição)

 

Tipo 3 – Da esquerda para a direita e de cima para baixo: Tarro, bolota, jarra, balde,
 bolota, suporte de copo, sapato com lira, sapato com cruz.

Uma das características mais importantes das peças de arte pastoril é a de corresponderem a uma necessidade sentida por alguém, o que leva essa peça a desempenhar uma função. É o caso dos chamados “ganchos de meia”, que as mulheres das nossas famílias usavam quando faziam croché ou tricotavam peças de vestuário, de lã ou algodão, como era o caso das chamadas “meias de cinco agulhas”.

Ganchos de meia
Independentemente da sua morfologia e decoração, estes ganchos de meia, confeccionados em madeira ou osso, têm um sulco ou um buraco, por onde passa o fio, que do novelo é redireccionado para as agulhas. É fixado na blusa ou no vestido da mulher, na parte superior do peito, geralmente do lado esquerdo. Aí é seguro através dum alfinete-de-ama ou cozido com linha, podendo eventualmente o gancho de meia incluir um pedaço de arame dobrado em U (gancho) para pregar no vestuário.
No decurso do trabalho, o fio que passa pelo gancho de meia, posiciona-se sempre entre o corpo e o trabalho, enrolado no dedo médio e sendo a cada malha, movimentado com o polegar esquerdo.
Tanto os ganchos de meia com sulco como os ganchos de meia com orifício, podem-se desprender da roupa onde estão fixados, sempre que se interromper a execução do trabalho. Todavia, só os ganchos de meia com sulco se podem soltar da peça em execução, pois os ganchos de meia com orifício têm o fio introduzido nele desde o início do trabalho e só o libertam quando este é cortado.

Tipologias dos ganchos de meia
Na minha colecção identifiquei as seguintes tipologias de ganchos de meia:
TIPO 1 – Com um orifício para passar o fio do novelo e um gancho de arame para prender no vestuário;
TIPO 2 - Com um orifício para passar o fio do novelo e 2 orifícios para passar o fio que o prende ao vestuário;
TIPO 3 – Com um sulco para passar o fio do novelo e um orifício para passar o alfinete-de-ama ou o fio que o prende ao vestuário;
TIPO 4 – Com dois sulcos para passar o fio do novelo e um orifício para passar o alfinete-de-ama ou o fio que o prende ao vestuário;
TIPO 5 – Com uma argola por onde pode passar simultaneamente, o fio do novelo e o alfinete-de-ama ou o fio que o prende ao vestuário;
TIPO 6 – Com 3 argolas que permitem a passagem do fio do novelo e do alfinete-de-ama ou do fio que o prende ao vestuário;
TIPO 7 – Com várias aberturas que permitem a passagem do fio do novelo e do alfinete-de-ama ou do fio que o prende ao vestuário;

Meias de 5 agulhas noutros tempos
Com cinco agulhas se fazia o tricô circular usado na manufactura de meias. Estas, eram lisas ou lavradas com motivos diversos, monocromáticas ou multicolores, decoradas com barras ou motivos florais ou geométricos.
Sempre houve quem manuseasse com mestria as cinco agulhas, com a mesma rapidez e precisão que as mãos dum virtuoso, percorrem o teclado dum piano. Mãos que falavam e davam resposta às necessidades caseiras, mas que também faziam para vender para fora, pois era necessário engrossar o magro orçamento familiar.
Havia quem começasse as meias de cima para baixo, em direcção à calcanheira e à biqueira, mas também havia quem as começasse exactamente em sentido contrário.
Quando as meias se gastavam pelo uso, geralmente na calcanheira ou na biqueira, eram reparadas, recorrendo novamente às cinco agulhas. A vida não dava para extravagâncias e poucos se podiam dar ao luxo de desperdícios inúteis. Apesar disso, o aparecimento no comércio de meias baratas, de fabrico industrial e a pressão da vida moderna, conduziram ao decaimento por desuso da manufactura artesanal das meias de cinco agulhas.
Na região onde me insiro, Estremoz, a manufactura das meias de cinco agulhas era uma prática corrente nas suas treze freguesias. Bem próximo de nós, eram famosas as meias manufacturadas pelas mulheres da Aldeia da Serra.

Meias de 5 agulhas na actualidade
Actualmente, a reacção ao consumo desenfreado suscitado pela sociedade capitalista, tem levado mulheres, especialmente jovens, a um “regresso às origens”, manufacturando meias para si e para as suas crianças. São estilos de vida alternativos e salutares, que se saúdam. É o retomar de práticas que retiram das vitrinas, jóias da arte pastoril, como os ganchos de meia que estiveram na génese do presente texto.

Publicado inicialmente em 2 de Junho de 2023

Tipo 4 – Coração.

Tipo 1 – Sapato, bolota.

Tipo 2 – Sapato (vista superior e vista lateral).

Tipo 5 – Gral, panela de ferro, bolota, bolota, badalo.

Tipo 6 – Par de sapatos, par de bolotas, par de bolotas.

Tipo 7 – Cadeirinha de prometida [1]


[1] Símbolo usado para “selar” o contracto pré-matrimonial no Alentejo de antanho. Através dele, o moço oferecia à sua “prometida” uma cadeirinha em madeira que ela passaria a usar, presa na fita do chapéu de trabalho, até à altura do matrimónio. Depois disso poderia vir a adquirir outra funcionalidade, como a de gancho de meia.