sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Nós os subversivos do Facebook



Perfilho há muito a ideia de que é necessário estabelecer pontes de entendimento entre as pessoas. Cada um de nós não está atomizado na sua individualidade, uma vez que a própria vida se encarrega de nos integrar em múltiplos grupos com características diversas, nem sempre convergentes.
Alguns grupos são fechados, com códigos de conduta rígidos que a pretexto da pureza de princípios, os incapacitam de dialogar com os restantes. Entre grupos fechados só são possíveis conversas de surdos, já que como não se ouvem uns aos outros, não sabem o que os outros dizem.
Uma atitude distinta é cada um de nós e os grupos em que se insere, procurarem ouvir os outros para perceber o que eles dizem, pensam e querem. Como retribuição podem ser ouvidos e os outros ficarão a saber o que dizemos, pensamos e queremos. É possível então chegar à conclusão de que partilhamos algumas ideias comuns, o que torna possível construir algo em conjunto, facto que introduzirá laços de união entre nós. É a unidade na diversidade.
Com o tempo é possível que a área de partilha aumente, mas também é possível que não. Porém, ficámos a saber o que os outros pensam e a respeitá-los porque nos respeitam a nós. E uma coisa é certa, a partilha é só de coisas que nos unem, não de coisas que nos separam. Podemos com outros partilhar amigos, se não todos, alguns. O que não somos é obrigados a partilhar os adversários. Isso é terreno que não é partilhável.
Uma das muitas coisas que partilho com os outros é a escrita, instrumento de libertação do Homem. Filho de alfaiate, aprendi a alinhavar palavras, que permitem cerzir ideias com que se propagam doutrinas. Esse o sentido da minha intervenção na blogosfera.
Furiosamente independente, procuro ser sempre incisivo, cáustico quanto baste, mas sempre preciso.
Modéstia à parte, tenho formação dura de físico teórico e fui treinado para pensar.
Procuro levar tudo às últimas consequências e como atirador franco do pensamento e da acção, procuro fazer o varrimento da transversalidade dos saberes.
Depois disso, a síntese dialéctica é um ovo de Colombo nascido no cú da galinha da minha cabeça.
É isso o rigor?
Então que seja!
Que a minha galinha continue a pôr ovos, por muitos anos e bons.
E desses ovos faremos suculentas e perfumadas omeletas verbais, que regaladamente trincharemos, sentados à mesa DO TEMPO DA OUTRA SENHORA, do CLUBE ROBINSON, dos ALENTEJANOS NO FACEBOOK, dos AZULEJOS PORTUGUESES e noutras mesas mais, onde habitualmente abancamos, degustamos e partilhamos saberes.
Nós somos os subversivos assumidos do Facebook, que apostámos forte em mudar a cara deste livro, o que diariamente fazemos com determinação, audácia e comunhão.
Nós, operários da palavra, homens e mulheres deste país, velhos e novos, tradicionalistas e alternativos, crentes e descrentes, de direita ou de esquerda, monárquicos ou republicanos, somos um paradigma do que são as potencialidades de redes sociais como o Facebook.
Comunicamos uns com os outros e partilhamos ideias e pensamentos, feitos de palavras, imagens e sons.
Aprendemos a respeitar-nos uns aos outros e a ter em conta a opinião do interlocutor. E passamos a fazer caminhadas comuns até onde é possível fazê-lo, de livre vontade e sem constrangimentos.
Talvez estejamos as lançar os alicerces dum mundo novo, nós os subversivos do Facebook.

Publicado inicialmente em 11 de Setembro de 2010

Textos do Facebook

Imagem recolhida na pasta "A LEITURA É UNIVERSAL"
(Biblioteca Escolar de Marvão)

LÁ VAI UM
À Manuela Mendes:
Nós somos recicladores, reutilizadores, reintegradores no presente das memórias do passado.
Nas nossas veias corre, provavelmente, sangue do Jurássico, aí pelo menos com uns 150 milhões de anos, o que é uma bagatela para a idade estimada para a Terra, que amavelmente nos serve de habitáculo.
Somos pois dinossauros, resquícios e memórias vivas de ecosócioetnosistemas, que o tempo, esse maganão, caldeou. É caso para perguntar:
- O que é o tempo?
- O que é a idade?
Não sei, apesar de nos circuitos neuronais intuir a percepção de que o tempo não perdoa. E é cruel, também. Todavia, eu não me rendo nunca. Nem nú, nem de fato e de gravata!
Talvez um dia destes, fale sobre o tempo na Literatura Oral. Mas hoje não, Manuela, que tenho falta de tempo. Hoje falarei sobre o tempo geológico, dos fósseis como eu, oriundos da proto-Pré-História, nascidos no funil do tempo, mercê dum salto quântico no espaço-tempo-energia.
Carnívoros uns, herbívoros alguns e omníveros outros, partilhamos desde os tempos ancestrais, quando a variável tempo foi imediatamente superior a zero segundos, a consciência de em nome da sobrevivência, haver necessidade de reciclar, de reutilizar, de reintegrar, como quem mapeia o passado, para poder construir o futuro com solidez.
Por isso, Manuela, eu, fóssil vivo, não reconhecido nem por Spielberg, nem pela Sociedade Geológica de Portugal, recuso-me a deixar de ter rugas, cabelos brancos. Para longe vá o reumático e outras formas de caruncho animal!
Eu gosto do que tem a patine do tempo.
O meu lugar é aí.
Hernâni
LÁ VÃO DOIS
À Teresa Bailão (vítima dum resfriado):
A gente tem sempre aquilo que não quer...
Quantos ricaços em Portugal, com os bofes de fora por causa do calor, não gostariam de ter a possibilidade de apanhar um resfriado?
É uma prova de que o dinheiro não compra tudo…
Um abraço:
Hernâni
LÁ VÃO TRÊS
Ao Feliciano Cupido (Um amigo pintor):
Quando releio ou mentalmente revejo poemas e prosa do Manuel da Fonseca, por vezes sinto arrepios de espinha. Imagens sociológicas dum Alentejo que já não existe, que a gente não quer que se repita, porque era opressivo e repressivo, mas que a gente não quer olvidar, para transmitir às gerações mais novas, a memória dos que sofreram e resistiram.
Feliciano:
Você tem o Alentejo na massa do sangue e através dele faz o registo conjugado dos volumes, das formas, das cores e das texturas, em tudo aquilo que nos toca a alma.
Partilhe connosco no Facebook, esse Alentejo que lhe vai na sua e na nossa alma.
Um abraço do amigo:
Hernâni
LÁ VÃO QUATRO
Ao Josué Carronha:
Desânimo, nem pensar!
Eu tenho um metro e noventa de altura e deixei de me pesar certo dia, já longínquo, em que uma balança me comunicou que a minha massa corporal era excessiva, porque ultrapassa os cem quilogramas. Ora eu, que não sou dado a depressões e gosto de respirar nos poros, o prazer da vida, dei-me ao trabalho, por questões meramente metodológicas, de mandar fazer uma série de exames ao esqueleto e àquilo que o reveste.
Quais os resultados?
As rugas, as olheiras e os cabelos brancos escondem um corpo de Fórmula 1, rodado em provas de fundo.
É caso para dizer:
- PORRA PARA AS BALANÇAS!
LÁ VÃO CINCO
À Maria Reis (Que esteve na origem deste texto):
Caros amigos e leitores:
O meu irmão gémeo, dado a pirraças e que me anda sempre a atazanar o juízo, no outro dia disse-me uma coisa que me ficou no sentido:
- “Pois! Agora deu-te para essa do blogue… Quando fores crescido hás-de ter muitos leitores. Hás-de, hás-de…Ouve lá, oh pá! Faz algum sentido, falares em coisas de que tu falas? Ministros? Burros? Penicos? Colheres de Pau? Morcelas e chouriços? Arte conventual? Cornos trabalhados? Tu estás doido! Mas mais doidos que tu, são esses do tal Grupo de Fãs…Valha-me, Santo António, aos pulos! As Marias e os Maneis que tu não arranjaste, para dizer ámen às tuas missas…”
No seu olímpico desprezo, o outro filho parelho de minha mãe, à sua maneira enviesada e tortuosa, encontrou uma maneira singular de realçar o papel dos fãs.
Às Marias e aos Maneis de que ele fala, independentemente do nome que tenham, só uma coisa é possível dizer pela minha parte:
- “Obrigado amigos, por confiarem em mim! Tenho motivos para estar feliz! Para vocês todos, o meu reconhecimento pela amizade desinteressada, acompanhado dum abraço do tamanho do mundo…"
Até sempre!
O Vosso Hernâni DO TEMPO DA OUTRA SENHORA

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

O humor é uma arma

                                         CONVERSA DE TIRADORES DE CORTIÇA:
                                        - Atão a escada, camarada?
                                        - Na é precisa, que o camarada de baixo tem bom lombo!

O humor faz parte integrante do nosso dia a dia e é uma constante quer na nossa literatura oral, quer na escrita.
Gil Vicente (1465?-1536?) retratou com humor a sociedade portuguesa do século XVI, criticando os costumes que achava errados. É sem sombra de dúvida um dos maiores percursores do humor português.
E o povo? Nas condições mais duras de trabalho, os servos da gleba nunca perderam o sentido lusitano do humor, que na maioria das vezes encerrava profunda crítica social. Isso mesmo nos é revelado pela seguintes quadras do rico cancioneiro popular alentejano:

“Na cidade de Lisboa,
Quem é rico, passa bem;
Assim é na minha terra
Ou noutra qualquer tambem.” [1]

“Eu vi o filho do rico
Em lindo berço embalado;
Eu vi o filho do pobre
Em tristes palhas deitado.” [2]

“Sobe o rei no alto trono,
Desce o pastor ao val’ fundo;
Uns p’ra baixo, outros p’ra cima
Vai-se assim movendo o mundo." [3]


“Se o rico comprasse a vida,
ai do pobre, o que seria!?
O rico seria eterno,
só o pobre é que morria.” [4]


Mesteirais da palavra como eu, fiéis às origens da sua natureza ancestral, ainda hoje sentem na alma, o que era o sofrer de quem estava na base da pirâmide social.
Como artífices da palavra é para nós gratificante, quando temos leitores que partilham as nossas emoções, muitas das vezes porque tiveram vivências semelhantes às nossas ou porque viveram em contextos que abordamos. Deste modo, para além de instrumento de libertação, a escrita é também uma ponte de união entre os homens, bem como um reconhecimento dos seus traços comuns de identidade.
Artesões da palavra, procuramos agradar ao leitor. O humor, esse é fundamental, sempre que tal é possível num texto. A questão está em encontrar no contexto, o lugar certo para ele.
O humor atrai o leitor para o resto do texto, é como um digestivo das palavras. Mas o humor também ajuda a descarregar tensões e pode ser corrosivo, derrubante, desintérico, petrificante e mesmo mortífero. Nesse sentido, o humor é uma arma de palavras, a que um franco-atirador verbal, muitas vezes recorre. E como arma, é uma arma de precisão.
Um humorista pode derrubar um Governo com Honra. Mas também pode ser um haraquiri, para quem não sendo humorista, o utilize desajeitadamente. Veja-se o recente caso do Ministro Manuel Pinho, forçado a demitir-se na sequência da triste figura que em Julho do ano passado, fez na Assembleia da República. A graça dele foi a sua desgraça.


[1] – PIRES, A. Thomaz. Cantos Populares Portugueses. Vol. IV. Typographia e Stereotypia Progresso. Elvas, 1910.
[2] – VASCONCELLOS, J. Leite de. Cancioneiro Popular Português. Vol. II. Acta Universitatis Conimbrigensis. Coimbra, 1979.
[3] – DELGADO, Manuel Joaquim Delgado. Subsídio para o Cancioneiro Popular do Baixo Alentejo. Vol. I. Instituto Nacional de Investigação Científica.Lisboa, 1980.
[4 ] – SANTOS, Victor. Cancioneiro Alentejano. Livraria Portugal. Lisboa, 1959.

terça-feira, 7 de setembro de 2010

O prazer da gastronomia alentejana


COZINHA DOS GANHÕES - Boneco de Estremoz das Irmãs Flores.
Fotografia de José Cartaxo.

COZINHA DOS GANHÕES
Há muito que foi sobejamente demonstrado que o Alentejo é uma região com uma identidade cultural própria. Assim o atesta a sua paisagem singular, o carácter do seu povo, o trajo popular, a arte popular, o cancioneiro popular, o cante, a casa tradicional e é claro a gastronomia, que anualmente está em grande destaque em Estremoz, na Cozinha dos Ganhões, que em Novembro de 2010 vai ter a sua XVIII edição.
Na Cozinha dos Ganhões é possível partilhar com os outros, o prazer da gastronomia alentejana.
GASTRONOMIA ALENTEJANA
É sabido que o Alentejo é a região do borrego e do porco e estes são recursos com elevada cotação na bolsa de valores gastronómicos. Daí que na Cozinha dos Ganhões, o borrego e o porco imperem como reis e senhores. Ensopado de borrego, cozido de borrego com grão, borrego assado no forno, segredos de porco, lombo de porco assado, migas com carne de porco e carne de porco à alentejana são pratos definidores da nossa identidade cultural, como o são a açorda, o gaspacho, a sopa de cação, a sopa de beldroegas ou a nossa doçaria conventual.
A gastronomia alentejana é património culinário legado pelos nossos ancestrais: pré-históricos, fenícios, celtas, romanos, visigodos, mouros e ganhões. É património para mastigar, para saborear e para lamber os beiços, a comer e a chorar por mais, pois barriga vazia não conhece alegrias... Por isso, apetece gritar bem alto: - Viva o património mastigável! - Viva!
A gastronomia alentejana envolve as matérias-primas usadas na preparação dos pratos de culinária alentejana, a culinária alentejana propriamente dita e os vinhos alentejanos.
No que respeita às matérias-primas usadas na preparação dos pratos de culinária alentejana, podem-se classificar em cinco tipos:
1 – Vegetais [1]: batatas, túberas, cogumelos, alabaças (labaças ou catacuzes), arrabaças, cardinhos (tengarrinhas) acelgas (celgas), saramagos, cunetas, pimpalhos, beldroegas, espinafres, nabiças, espargos, couve, repolho, tomate, abóbora, mogango, pepino, pimento, feijão, feijão-frade, grão, favas, ervilhas e azeitonas.
2 – Carne e ovos - carne, bofe, fígado, gordura, coração e pés de porco, chispe, entrecosto, chouriço, farinheira, morcela, toucinho, mioleira, carne de borrego, caça e ovos.
3 – Pescado - bacalhau, cação e pexelim.
4 – Temperos [2] - sal, massa de pimento, alho, cebola, azeite, vinagre, poejo, coentros, salsa, hortelã, salva, manjerona, orégãos, murta, tomilho, hortelã da ribeira, louro, colorau, cominhos, cravinho e pimenta.
5 - Pão – O alentejano é pãozeiro, gosta de comer tudo com pão. Come-se pão quando se tira uma bucha com queijo ou chouriço, para enganar a fome a meio da manhã ou a meio da tarde. O pão é de resto acompanhamento obrigatório de qualquer refeição e matéria-prima essencial à confecção de alguns pratos da nossa gastronomia (migas com carne de porco, açorda, sopa de cação, sopa da panela, etc.). E o melhor pão alentejano é naturalmente o do tipo conhecido por pão caseiro, como aquele que antigamente era cozido nos fornos dos montes, alimentados por labaredas de esteva.
No que concerne à culinária alentejana, o fogo permite criar sabores, por detrás dos quais estão sábias operações de alquimia doméstica como o cozer, o grelhar, o assar, o alourar, o refogar, o fritar e o gratinar. Através delas se busca atingir o sabor criado pelo fogo e nelas, mais que magia iniciática de pedra filosofal demandada, o sabor encontrado constitui um prazer simultaneamente onírico e telúrico.
No que se refere aos vinhos alentejanos, estes fazem parte integrante da gastronomia, para acompanhar aquilo que se come. A paisagem e o solo alentejano e em particular, os de Estremoz, são dádivas que a natureza se encarregou de conceder em termos de condições perfeitas para a plantação e exploração da vinha. Os solos são argilosos, argilo-calcários ou de origem xistosa.
Os vinhos tintos, em maioria, nascem de castas nacionais como Aragonês, Trincadeira Preta, Castelão, Tinta Caiada, Touriga Nacional e Alicante, mas são ainda utilizadas castas internacionais como Syrah, Cabernet Sauvignon, Alicante Bouschet, Petit Verdot e Merlot.
Os vinhos brancos, em minoria, nascem de castas como: Antão Vaz, Arinto, Roupeiro e Rabo de Ovelha.
A vindima é manual, com rigorosa selecção de cachos, de modo a originar vinhos de excepção. A pisa é feita a pé, em lagares. A fermentação realiza-se em cubas inox, seguida de transfega para pipas de carvalho francês, onde os melhores lotes vão estagiar.
As adegas alentejanas utilizam tecnologia moderna baseada em métodos tradicionais antigos. São várias gerações de sabedoria, ao serviço da arte da vinicultura, produzindo vinhos de alta qualidade.
A variedade de vinhos alentejanos torna o seu consumo adequado a quase todos os tipos de pratos da nossa gastronomia, fazendo ponte com eles, constituindo como que uma espécie de binómio prato-vinho. 
[1] - “…os alentejanos, motivados pelas fomes periódicas, foram obrigados a aprender a comer a ervas que os campos lhes oferecem. Poejos, alabaças, espargos, beldroegas, arrabaças, acelgas, saramagos, cardinhos, orégãos, etc” – ALVES, Aníbal Falcato – Os Comeres dos Ganhões. Porto: Campo das Letras, 1994.
[2] - Para “…compensar a magreza do caldo com ouropéis mágicos de ervas, cheiros e misturas que dão sabores disfarceiros das pobrezas.” – Helder Pacheco in prefácio a ALVES, Aníbal Falcato – Os Comeres dos Ganhões. Porto: Campo das Letras, 1994.

Publicado inicialmente em 7 de Setembro de 2010

PASTOR DAS MIGAS - Boneco de Estremoz das Irmãs Flores.
Fotografia de José Cartaxo.

COQUEIRA - Boneco de Estremoz das Irmãs Flores.
Fotografia de José Cartaxo.

MULHER A COZINHAR - Boneco de Estremoz das Irmãs Flores.
Fotografia de José Cartaxo.

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

A ânsia de toda a beleza do mundo



O cancioneiro popular encarregou-se de "arranjar um par de botas" aos sapateiros, que geralmente nele são mal vistos. Talvez porque haja repentistas que são autênticas "linguinhas de prata":

“Sapateiros e alfaiates
São uma súcia de ladrões:
Sapateiro furta a sola,
Alfaiate, os botões.” [1]

Já a nível da arte pastoril, parece existir maior apreço pelos sapateiros, uma vez que na solidão eremítica da charneca alentejana, o rabadão que já fora zagal e já andara descalço, sabia o que era andar a pé limpo por sobre a terra escaldante, as rochas angulosas ou a vegetação parente do saramago.
Quem anda a pé limpo, tem um pé blindado, que só encontra parente próximo nas mãos do cortiçeiro envolvido em tórrida e recente despela.
Quantos não foram os camponeses alentejanos que usaram calçado pela primeira vez, quando foram à tropa?
Por isso, o camponês alentejano era capaz de exaltar e mitificar coisas aparentemente comezinhas, como o calçado.
É o caso deste sapato (9, 5 x 2 x 3 cm), talhado e bordado em madeira, por quem se identificou com a obra e resolveu deixar na sola, a sua marca de criador: JMV.
Comprado no Mercado das Velharias em Estremoz, mercado de memórias, onde eu faço parte da “mobília”, na qualidade de comprador.
Não é um sapato frívolo de quem anda envolvido em danças de salão. É um sapato sóbrio e austero, nascido da alma de quem conhece a dureza do que é andar a pé limpo num solo que corta como lancetas. Mas é um sapato bordado, porque o camponês, servo da gleba, tinha na sua alma, a ânsia de toda a beleza do mundo.

[1] – ALCÁÇOVAS – Recolha de VASCONCELLOS, J. Leite de. Cancioneiro Popular Português. Volume I. Acta Universitatis Conimbrigensis. Coimbra,1975.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

António Telmo (1927-2010)

ANTÓNIO TELMO (1927-2010)
Fotografia de João Albardeiro

O filósofo, escritor e professor António Telmo faleceu no passado sábado, dia 21 de Agosto, ao princípio da manhã, no Hospital de Évora. O seu funeral realizou-se no domingo, dia 22, em Estremoz. Com o seu óbito, a Cultura e a Filosofia Portuguesas ficaram mais pobres. Estremoz perdeu um filho adoptivo, intelectual de prestígio, com obra e nome firmados a nível planetário.
António Telmo era um filólogo e um hermeneuta, envolvido no esoterismo e no hermetismo, na procura daquilo que está oculto e que pode ser revelado e desvendado. E fê-lo, sobretudo, através do estudo da kabbalah, do sufismo e da filosofia. Era visto como o maior representante vivo do grupo do movimento da “Filosofia Portuguesa” fundado por Álvaro Ribeiro.
Para António Telmo, a reflexão filosófica deve ser exercida informalmente, livre dos grilhões da Academia, pelo que acreditava que aprendeu muito mais nas tertúlias de café do que nas salas de aula da Universidade.
A obra de António Telmo é caracterizada pela importância conferida à palavra e à linguagem, através das quais, segundo o autor, se pode aceder a regiões mais profundas do conhecimento e da espiritualidade.
António Telmo defendia, igualmente, a originalidade do pensamento português, ligado ao conceito de portugalidade, a um patriotismo de raiz mística, à tradição cultural e à poesia.
António Telmo Carvalho Vitorino nasceu a 2 de Maio de 1927, em Almeida, de onde saiu com dois anos de idade, a caminho de Angola. Regressou a Portugal com seis anos, para Alter do Chão. Daqui vai para Arruda dos Vinhos, onde permaneceu até aos dezasseis. Da Arruda mudou-se para Sesimbra, onde ficou até ir para Lisboa, frequentar a Universidade. Na sua infância e juventude, foi um autodidacta, pois estudava em casa e fazia os exames em Lisboa.
Aos vinte e três anos, entrou para o grupo da Filosofia Portuguesa, depois de ter travado conhecimento com José Marinho (1904-1975), Álvaro Ribeiro (1905-1981), Agostinho da Silva (1906-1994) e Eudoro de Sousa (1911-1987).
Por convite destes dois últimos, no início dos anos 60 foi professor de Literatura Portuguesa, durante três anos, na Universidade de Brasília. De lá foi para Granada e, só depois, é que regressou a Portugal. Foi director da Biblioteca de Sesimbra e posteriormente fixou-se em Estremoz onde leccionou Português na Escola Preparatória Sebastião da Gama, continuando a publicar livros com regularidade.
Discípulo de Agostinho da Silva, António Telmo lega-nos uma extensa obra:
- Arte Poética, Lisboa, Guimarães, 1963.
- História Secreta de Portugal, Lisboa, Vega, 1977.
- Gramática secreta da língua portuguesa, Lisboa, Guimarães, 1981.
- Desembarque dos Maniqueus na Ilha de Camões, Lisboa, Guimarães, 1982.
- Filosofia e Kabbalah, Lisboa, Guimarães, 1989.
- O Bateleur, Lisboa, Átrio, 1992.
- Horóscopo de Portugal, Lisboa, Guimarães, 1997.
- Contos, Lisboa, Aríon, 1999.
- O Mistério de Portugal na História e n’ Os Lusíadas, Lisboa, Ésquilo, 2004.
- Viagem a Granada, Lisboa, Fundação Lusíada, 2005.
- Contos Secretos, Chaves, Tartaruga, 2007.
- A Verdade do Amor, seguido de Adoração: Cânticos de amor, de Leonardo Coimbra, Lisboa, Zéfiro, 2008.
- Congeminações de um neopitagórico, Vale de Lázaro, Al-Barzakh, 2006/ Lisboa, Zéfiro, 2009.
- A Aventura Maçónica, Lisboa, Zéfiro, 2010.
- Luís de Camões, Estremoz, Al-Barzakh, 2010.
- O Portugal de António Telmo, Lisboa, Guimarães, 2010.
À família enlutada apresentamos as nossas mais sentidas condolências.

Publicado também no nº 91 (3-9-2010) do Jornal ECOS
e em Estremoz Net

sábado, 28 de agosto de 2010

Os motores de combustão a palha


Carros de bois alentejanos com trigo para a eira. Cliché de bilhete-postal ilustrado do início do século XX
Edição de Faustino António Martins – Lisboa.

Na labuta diária das herdades alentejanas, os carros de tracção animal eram um equipamento indispensável ao lavrador, no transporte da carga de um lado para o outro. E o papel dos carros agigantava-se quando das grandes fainas agrícolas, como as ceifas ou a tiragem da cortiça. Eram carros puxados a bois ou a mulas, embora burros e cavalos também pudessem ser utilizados.
Para se transportar na herdade, o lavrador andava a cavalo ou de charrete, veículo que de resto utilizava quando ia à vila ou à cidade, tratar de assuntos do seu interesse.
Os camponeses com mais posses deslocavam-se em carroças com toldo (churriões) que os protegiam tanto da chuva como da torrina do sol.
Na cidade, os recoveiros usavam carroças puxadas a mulas, para transportar mercadorias entre a estação da CP ou da camionagem e os estabelecimentos comerciais.
O cancioneiro popular tem referências sobre almocreves e carreiros:

“A vida dum Almocreve
É uma vida arriscada,
Ao subir duma ladeira
E ao descer duma carrada.” [1]

“Sou almocreve de uma parelha,
Carreteio e faço lavoura:
Sou da freguesia da Amareleja,
Pertencente ao concelho de Moura.” [2]

“O meu amor é carreiro,
Traz arreatas na mão;
Também eu o trago a ele
Dentro do meu coração.” [3]

O rifonário popular tem referências a “carreiro”:
- “Muito fraco é o carreiro que tem um carro só”
Tem também referências a “carregar”:
- “Quem pega peso de graça é a balança.”
Tem ainda referências a “carga”.
- “A carga leve, ao longe pesa.”
- “Carrega o carro à traseira, andará à dianteira.”
- “Carrego caído, carrego vendido.”
- “Carro carregado pode com mais um rameiro.”
- “Grande carga leva a carreta, maior a leva o dono dela.”
- “Para a banda é que a carga cai.”
- “Quem não pode com a carga, arreia.”
Nos carros era indispensável a corna do sebo, usada no transporte de sebo com que se ensebavam os eixos dos carros de tracção animal, afim de evitar a infernal chiadeira que nos atazanava os ouvidos. As carroças carregavam normalmente esta corna na parte traseira, pendurada para o lado de fora dos varais ou então por debaixo do estrado. Lá diz o rifonário popular:
- “Pelo andar dos bois se conhece o peso da carroça”
- “Carro apertado é que canta”
- “O boi é que sofre, o carro é que geme”
- “Carro que chia quer untura”
- “Quem seu carro unta, seus bois ajuda”
- “Carro que canta, a seu dono avança”
- “Carro que não canta, não avisa chegada”
- “Carro parado não guincha”
Assim foi seguramente até aos anos sessenta do século passado, em que a tracção dos veículos era assegurada por bois, mulas, burros e cavalos. Animais estes que eu designo genericamente por motores de combustão a palha. Estes motores são do melhor que há. O lubrificante é água fresca, não poluem e produzem a afamada bosta portuguesa, que além de ser bio-degradável tem reconhecidas propriedades fertilizantes. Apetece-me assim proclamar:
- VIVA OS MOTORES DE COMBUSTÃO A PALHA!
- VIVA A BOSTA PORTUGUESA!
Na actualidade, o fertilizante expelido pelos motores de combustão a palha poderia ser alvo de intervenção da ASAE. E das duas uma: ou se purgavam os motores para não bostarem ou se purgava a ASAE. Inclino-me mais para a segunda solução, pois a primeira deixaria os motores enfraquecidos, o que faria baixar a sua potência e o seu rendimento. Haveria, pois, que purgar a ASAE.
Esta crónica está a crescer e sinto que há da vossa parte um certo mal-estar, por se estar a falar da comida de alguns (a palha) e estarmos todos de barriga vazia. E como "Barriga vazia não conhece alegrias", há que vos dar algo que comer.
Como se tem estado a falar de palha, já estou a ver que alguém que só vê em mim, ruins intenções, deve estar a pensar que eu o quero presentear com um "bife de 3 arames". Nada disso. A minha real intenção era oferecer a todos os intervenientes e seguidores desta discussão, uma caixinha de "palha de Abrantes". Porém, o meu irmão gémeo, que é mais prudente do que eu e que ao contrário de mim, é forreta, desaconselhou-me disso:
- “Eh pá, tira daí o sentido. Com a calorina que está, isso a seguir pelo correio, nem as moscas a queriam.”
E rematou:
- “Era como se estivesses a condenar os teus amigos a apanhar uma sultura!”
Então não querem lá ver que o ferrabrás do meu irmão gémeo é capaz de ter razão?
Só há uma solução, é dar-vos mesmo palha. Não a real palha que dá para encher a barriga. Por isso ireis continuar de barriga vazia. Mas podereis ficar alegres pela minha lembrança de vos enviar proverbial palha. Aqui vai uma carrada dela: 
 “A água de Janeiro traz azeite ao olival, vinho ao lagar e palha ao palheiro.“
- “A barriga de palha, a feno se enche.“
- “A majestade sem potência é gigante de palha.“
- “A palha no olho alheio e não trave no nosso.”
- “A palha, boa ou má, toda faz palheiro.”
- “Antes palha do que nada.”
- “Burro velho, palha nova.”
- “Com palha e milho, leva-se o burro ao trilho.”
- “Dia de S. Barnabé, seca-se a palha pelo pé.”
- “Em ano bom o grão é feno e no mau a palha é grão.”
- “Fogo de palha não dura.“
- “Inimigos nem de palha.“
- “Maio hortelão, muita palha, pouco pão.”
- “Melhor é palha que nada.”
- “Nem todos os doidos estão nas palhas.“
- “O que é palha, palheiro enche.”
- “O vento ajusta a palha e depois espalha.“
- “O vento suão cria palha e grão.“
- “Ofício de albardeiro, mete palha e tira dinheiro.”
- “Toda a palha faz palheiro.”
- “Todo o burro come palha, o ponto é saber-lha dar.”
- “Tudo o que é palha enche palheiro.”
- “Um homem de palha, vale uma mulher de ouro.“
Esta proverbial palha alimenta o espírito e pode ser consumida sem qualquer receio. Mesmo o da ASAE, porque a proverbial palha não se transforma em fertilizante orgânico daquele que serve para adubar as terras, mas antes em fertilizante espiritual, que podereis usar se assim o entenderdes, na adubação das vossas searas de escrita.
Lá está o meu irmão gémeo a atazanar-me o juízo outra vez:
- “Eh pá, acaba lá isso, que é só palha e para alguns é palha a mais.”
Será que tem razão, o implicante? É que o meu irmão gémeo, que é irritante como tudo, costuma dizer à tripa forra:
-" O que tu tens é palheta!"
Uma ração de palha quer-se farta, para maximizar a pujança do consumidor. Daí que eu agora vos alimente com uma boa dose de palha metafórica:
“A lume de palha = Rapidamente“
“A nome de palhas = De graça”
“Cor de palha = Cor amarelada“
“Fumo de palha = Coisa de pouco valor“
“Homem de palha = Homem preguiçoso“
“Meter palha na albarda = Iludir alguém com palavras enganadoras“
“Morrer nas palhas = Morrer pobre“
“Não mexer uma palha = Ser preguiçoso“
“Nascer nas palhas = Ser pobre de nascença“
“Por dá cá aquela palha = Por motivo fútil“
“Tirar palha a alguém = Gracejar“
“Tomar a palha a alguém = Exceder alguém“
“Travar palha com alguém = Gracejar“
“Vá para as palhas! = É doido!“
Como sobremesa da refeição, tendo em conta que o substantivo “palha” tem como diminutivo o substantivo “palhinha”, vou-vos presentear com uma pequena dose de palhinha metafórica:
“Tirar palhinha = Gracejar”
“Esconder a palhinha = Ser homosexual”
E pronto, a palheta chegou ao fim e com ela a presente crónica.


[1] - MOURA - Recolha de VASCONCELLOS, J. Leite de. Cancioneiro Popular Português. Volume II. Acta Universitatis Conimbrigensis. Coimbra,1979.
[2] - AMARELEJA (Concelho de Moura) - Recolha da Casa do Povo divulgada por Luís Chaves in Primeira Investida na Colheita Folclórica (Lírica) das Casas do Povo. Mensário das Casas do Povo, nº 225, Lisboa, 1965.
[3] - VEIROS- Concelho de Estremoz - Recolha de VASCONCELLOS, J. Leite de. Idem. Obra citada.

Carradas de cortiça na Herdade da Favela. Bilhete-postal ilustrado do início do século XX.
Edição de Faustino António Martins – Lisboa.

Churrião. Bilhete-postal ilustrado do início do século XX.
Edição de Faustino António Martins – Lisboa.
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Churrião junto ao Aqueduto – Elvas. Bilhete-postal ilustrado de meados do séc. XX.
Edição da Livraria e Papelaria Rego - Elvas.