segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Auto dos barristas falecidos


 ESTREMOZ – Fotografia obtida nos anos 40-50 do séc. XX, pelo
fotógrafo Artur Pastor (1922-1999), natural de Alter do Chão.

A memória colectiva da cidade de Estremoz conta no seu acervo com um núcleo notável de figuras populares muito estimadas pela comunidade. Entre elas figuram os barristas nascidos no século XX e já falecidos. Foram eles que com as suas mãos mágicas, transmitiram de geração em geração, a arte de fazer bonecos ao modo de Estremoz, a qual chegou até nós e viabilizou a “Candidatura do Figurado de Estremoz a Património Cultural Imaterial da Humanidade”. Daí que não seja de admirar que, na sua reunião de 23 de Novembro de 2016, a CME tenha deliberado por unanimidade, homologar a acta da reunião da Comissão de Toponímia do Concelho de Estremoz realizada em 7 de Março de 2016 e consequentemente, aprovar a atribuição de 7 topónimos na freguesia de Arcos e de 27 na União das Freguesias de Estremoz. Entre eles incluem-se os nomes das barristas Maria Luísa da Conceição e Quirina Alice Marmelo. Tratou-se de um atitude louvável, mas que não teve em conta os nomes de outros barristas falecidos, o que provocou celeuma na comunidade, não só no seio daqueles que ainda por aqui andam, como no espírito daqueles que já estão no outro mundo. Só assim se compreende que o espírito de Mariano da Conceição, decano dos barristas nascidos no século XX e já finados, tenha convocado um plenário de oficiais do mesmo ofício, a fim de em conjunto, poderem reflectir sobre um assunto que a seu ver é delicado para a classe.   
Na sequência dessa convocatória, os espíritos dos barristas encontraram-se e reuniram-se num local arejado e luminoso, mesmo por cima da cidade de Estremoz, que tanto dignificaram com a sua arte. Começaram por se cumprimentar, tendo em conta que alguns já não se encontravam há muito. Terminadas as afectividades, Mariano deu início à assembleia, proferindo as seguintes palavras:
- Todos sabem o que aqui nos traz. Eu, pela minha parte, sinto-me incomodado por ter uma rua com o meu nome e a Ti Ana das Peles, com qual aprendi a arte, não ter sido ainda contemplada com essa distinção.
Ti Ana das Peles intervém, desabafando:
- Não tem importância Mestre Mariano. Se calhar não sabem sequer que eu existi ou o que fiz. Mas isso, para mim não importa. 
Mariano replica:
- Tem importância e muita, Ti Ana. Foi graças a si, que a nossa arte não se perdeu, quando muitos a consideravam já extinta.
José Moreira dá o seu assentimento:
- Concordo inteiramente com o Mestre Mariano. Foi com ela que eu também aprendi a nossa arte e penso que é inteiramente justo que tenha uma rua com o seu nome.
Enérgico, Mariano prossegue:
- Ninguém diz mais nada?
Responde Liberdade, a sua mulher:
- Eu não tenho razão de queixa, pois atribuíram o meu nome a uma rua, no tempo do Presidente Fateixa, que era nosso vizinho.
A filha, Maria Luísa, sente necessidade de intervir e diz:
- Deu o nome da mãe, mas não deu o do pai, o que só fez da segunda vez que passou pela Câmara.
Quirina não se aguenta mais e confessa:
- Eu cá também não me sinto bem, por terem dado o meu nome a uma rua e não se terem lembrado do meu marido, com o qual aprendi a nossa arte.
Responde-lhe António Lino:
Não te rales mulher, que não merece a pena.
Contrapõe Quirina:
- Isso é que merece!
Lino, sente então que também dever dar a sua opinião:
- Pela minha parte, acho mal não terem dado a nenhuma rua o nome da Dona Sabina, que foi minha patroa na Olaria Alfacinha. Foi ela que a seguir a Mestre Mariano deu continuidade à arte, trabalhou durante mais tempo e criou Escola, pois foi Mestra da Isabel Carona, da Fátima Estróia e da Maria Inácia e da Perpétua Fonseca.
Sabina acha que também não deve ficar calada e argumenta:
- Eu também acho mal não terem dado a uma rua, o nome do José Moreira. É que ele foi o barrista que mais contribuiu para a divulgação dos bonecos de Estremoz. Percorreu o país de lés a lés e não houve feira ou exposição de artesanato a que ele não fosse.
Mariano intervém novamente, dizendo:
- A meu ver é também da mais elementar justiça, atribuir a uma rua o nome de Aclénia Pereira, que nos anos 40 do séc. XX foi minha discípula na Escola Industrial António Gonçalves e que foi barrista até ao fim da vida, mesmo depois de se ter transferido para Santarém, em cujo distrito foi uma grande embaixadora da nossa arte.
Aclénia embevecida pelas palavras de Mariano, confessa:
- Desde que criança que por influencia familiar gostei de artes manuais como a tapeçaria, os bordados e os registos, mas foi com os bonecos que aprendi a fazer com o Mestre, que me senti realizada.
António Lino acha que nem tudo está dito e pede para falar novamente:
- O Mário Lagartinho também não pode ficar de fora, pois além de oleiro como eu e o Mestre Mariano, também fez bonecos de muita categoria, que vendia no stand do Rossio.  
Mário Lagartinho intervém, exprimindo-se assim: 
- Vocês é que sabem. Eu sou novo por aqui e por isso tenho estado calado.
Depois de todos terem falado, Mariano com a desenvoltura que sempre lhe foi habitual, apresentou uma proposta de recomendação à Comissão de Toponímia do Concelho de Estremoz, a qual foi aprovada por unanimidade. Diz o seguinte: “A atribuição a ruas de Estremoz dos nomes de apenas alguns barristas não é justa, pois há nomes que foram omitidos. Uns não podem ser filhos e os outros enteados. É da mais elementar justiça que na próxima atribuição de nomes a ruas da cidade, seja contemplada a memória dos barristas que agora foram esquecidos.”
Mariano ia dar a reunião por encerrada, quando com uma trombeta na mão, surge um Anjo semelhante aos que decoram o berço do Menino Jesus, que todos incluíram nos seus presépios. Diz o Anjo:
- Sou o vosso Anjo Protector e tenho estado a pairar sobre vós, sem terdes dado por isso. Quero manifestar-vos a minha inteira solidariedade face à questão que vos mobilizou. 
Seguidamente, pensando na Comissão de Toponímia do Concelho de Estremoz, ergue os olhos para o alto e implora:
- Perdoai-lhes Pai, que eles não sabem o que fazem!
Só então Mariano dá a reunião por encerrada, dela sendo então lavrada uma acta, que sob a forma de auto, foi transmitida por sonhos ao autor destas linhas, coleccionador e estudioso do figurado de Estremoz.

sábado, 7 de janeiro de 2017

Poetas em Defesa da Olaria de Estremoz - 01


Georgina Ferro (1948-).
 Professora, natural de Aldeia do Bispo (Sabugal). Reside em Estremoz.
LIVROS PUBLICADOS: - Plantas medicinais da Serra d'Ossa (2005). - Por
um Amanhã Mais Verde, Mezinhas caseiras com Plantas da Serra d'Ossa
(2005) - O meu arraiar por terras do Sabugal (2013-Poesia).

Barros de Estremoz

Realçando com sua sábia mestria
Já, Luís de Camões dizia em rima,
“Quem não sabe a arte, não a estima”
Tal é e será, como ele dizia

Os barros de Estremoz têm magia
Na arte do oleiro que os anima
Ao fazer deles a sua obra-prima
Se, desamada, finará breve dia

Os bonecos coloridos de encanto
As carminas cantarinhas à porfia
São obras de arte do maior espanto

Mas se o artesão não trabalha e cria
Fenecerá sua arte em triste pranto
Nesta cidade mais pobre e vazia

sexta-feira, 6 de janeiro de 2017

Venham mais cinco!



É sabido que compete às Câmaras Municipais a atribuição de nomes às ruas, o que pode ser feito mediante recomendação da Assembleia Municipal e das Juntas de Freguesia do Concelho, bem como por Associações de Moradores, Culturais ou Desportivas, grupos de cidadãos ou munícipes a titulo individual.
Antes de serem objecto de deliberação pela Câmara Municipal, as propostas devem ser apreciadas por uma Comissão de Toponímia de âmbito concelhio. Só após ter recebido as propostas que lhe foram apresentadas pela Comissão de Toponímia, é que a Câmara Municipal delibera, como legalmente é de sua competência exclusiva.
Tudo isto é o que é habitual por este país fora. Todavia, há uma observação legítima que não deve deixar de ser feita. O artigo 22º do “Regulamento de Toponímia e Numeração de Polícia do Concelho de Estremoz” diz que a Comissão de Toponímia é constituída no mínimo por 3 elementos: Um eleito da Câmara Municipal que presidirá às reuniões, um representante da Junta de Freguesia da área geográfica referente às toponímias em apreciação e um representante dos CTT. Contudo, nada obriga a que a Comissão seja constituída apenas por 3 elementos. Ter só 3 ou ter mais, depende exclusivamente da vontade do executivo municipal e este tem determinado que a Comissão funcione apenas com 3 elementos.
A situação apontada leva-me a parafrasear o saudoso Zeca Afonso, recorrendo ao título da sua bem conhecida canção “Venham, mais cinco”. Pensando na Comissão de Toponímia do Concelho de Estremoz, sou levado a sugerir “Venham mais alguns!”. 
Sabem porquê? É que há concelhos em que no início de cada mandato, a Câmara Municipal convida para integrar a Comissão de Toponímia, um certo número de cidadãos de reconhecido mérito, pelos seus conhecimentos ou estudos sobre o concelho. Esse número é bastante variável de concelho para concelho. Das inúmeras soluções encontradas, destaco: Lagoa (De 1 a 3), São João da Pesqueira (4), Portimão (5), Lagos (Até 9).
Uma opção deste tipo, valoriza a Comissão de Toponímia, uma vez que esses cidadãos de reconhecido mérito têm um espectro largo de conhecimentos e de memórias, que potenciam e valorizam a reflexão sobre a atribuição de topónimos, tornando-a mais sólida e consistente, ao mesmo tempo que pode vir a prevenir a ocorrência de omissões e de injustiças relativas, que ainda que involuntárias são sempre desagradáveis. Foi o que aconteceu na reunião da Comissão de Toponímia ocorrida no passado dia 7 de Março, cuja acta foi homologadas em reunião de Câmara, realizada no passado dia 23 de Novembro. Foram distinguidos com nomes de ruas, duas barristas já falecidas e não foram tida(o)s em conta, quatro outra(o)s barristas igualmente já falecida(o)s e que não tiveram mérito inferior às agraciadas. Uma ocorrência que causou incomodidade, que não devia ter acontecido e que urge ser corrigida numa próxima atribuição de topónimos. Uma situação que talvez não tivesse ocorrido, se a Comissão de Toponímia não fosse tão restrita.
A atribuição de um nome a uma rua, corresponde ao reconhecimento público do valor identitário da nossa Cultura e da nossa História e do mérito daqueles que com o seu exemplo e esforço, contribuíram para a edificação do presente. Constitui também um estímulo para uma cidadania activa ao serviço da Comunidade, na medida em que é uma forma de sinalizar que esta reconhece o trabalho voluntarioso e generoso dos seus membros. Daí que seja imperioso tomar providências, para que casos como o ocorrido não se voltem a repetir.

sábado, 31 de dezembro de 2016

Cromo de Natal


Convento dos Congregados - Edifício dos Paços do Concelho de Estremoz

Em tempos que já lá vão, a CME dava uma mãozinha ao comércio local na época natalícia. As artérias de maior densidade comercial eram decoradas com graciosas iluminações, confeccionadas pelos electricistas do Município. Simultaneamente os nossos ouvidos eram estimulados por canções e músicas alusivas à quadra festiva. E tudo isto começava muito antes do Natal. Era uma prática de que as pessoas gostavam e entre elas, os comerciantes da urbe. É que a iniciativa conferia animação às ruas, que além de espaços de convívio, constituem rotas usadas na procura de prendas que queremos oferecer a alguém que amamos ou a quem estamos gratos.
Este ano, nada disso aconteceu. Desta vez, a Câmara não deu a mãozinha ao comércio tradicional que tenta sobreviver face às grandes superfícies comerciais e só em Estremoz são quatro.
Todavia são visíveis iluminações na fachada de todo o Convento dos Congregados e na zona limítrofe. Trata-se de uma iniciativa que embeleza o edifício do Município e chama a atenção para o mesmo, mas que não aquece nem arrefece o comércio tradicional. Há quem diga que é só fachada, da qual perdurará o registo fotográfico como cromo natalino, que só não está completo, porque falta ali o Pai Natal.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

62 - Berços do Menino Jesus - 1


Berço enfeitado (Anos 80 do séc. XX).
Liberdade da Conceição (1913-1990).
Colecção particular.

O núcleo central do figurado de Estremoz inclui o chamado presépio de trono ou de altar, no qual figura um berço com o Menino Jesus. Também os chamados presépios de 3, 6 e 9 figuras, incluem um berço idêntico. Esta singularidade, levou-nos a contextualizar o nascimento de Jesus.

Referências bíblicas
Um dos grandes símbolos religiosos, que retrata o Natal e o nascimento de Jesus é o presépio. De acordo com Rafael Bluteau (1713) e Cândido de Figueiredo (1819), a palavra “presépio” provem do latim “praesepium”, que genericamente significa curral, estábulo, lugar onde se recolhe gado e que, numa outra óptica designa qualquer representação do nascimento de Cristo, de acordo com os Evangelhos (LUCAS 2: 1 a 18) e (MATEUS 2: 1 a 11). Deles destaco a anunciação do anjo do Senhor aos pastores: “Isto vos servirá de sinal: achareis um recém-nascido envolto em faixas e posto numa manjedoura.” (LUCAS 2: 12), bem como “ Foram com grande pressa e acharam Maria e José, e o menino deitado na manjedoura.” (LUCAS 2: 16).
O presépio é uma referência cristã que nos remete para o nascimento de Jesus numa gruta de Belém, na companhia de José e Maria, que ali pernoitaram na sequência do recenseamento de toda a Galileia. Jesus terá nascido numa manjedoura destinada a animais e foi reconhecido após o nascimento, por pastores da região, avisados por um anjo, e, dias mais tarde, por Reis Magos vindos do Oriente, guiados por uma estrela e que terão chegado até Jesus no dia 6 de Janeiro, data que em presentemente se comemora o “Dia de Reis”.

Literatura de tradição oral
O nascimento de Jesus tem múltiplos registos na nossa literatura de tradição oral. No que respeita a ADAGIÁRIO assinalo: “Depois que o Menino nasceu, tudo cresceu”, bem como “Quando o Menino nasceu, tudo cresceu” e ainda: “Um menino nasceu, o mundo tornou a começar”.
No que concerne a CANCIONEIRO POPULAR ALENTEJANO, Jesus é identificado como mais pobre que os pobres: "Qualquer filho de homem pobre / Nasce n’um ceo de cortinas. / Só tu, menino Jesus, / Nasceste n’umas palhinhas." Também é dito que passou frio: “Jesus menino, / Mal agasalhado, / Tremendo com frio, / Em palhas deitado.” Todavia, um poeta mais imaginativo, porventura pensando naquilo que não tinha, pintou um menino empanturrado com aquilo que o porco e a terra dão: "Olha o Deus Menino, / Nas palhinhas deitado, / A comer pão e toicinho, / Todo besuntado!”.

terça-feira, 27 de dezembro de 2016

61 - O aguadeiro - 11


Aguadeiro.
Sabina Santos (1921-2005).
Colecção particular.

Figurado de Estremoz – 2 (2ª Parte)
À frente do homem, um burro cinzento de tom variável (AP, MC, LC, SS, IC, IF) ou castanho de tom igualmente variável (MLC, JM), com manchas negras ou simplesmente castanho (QM), que estando a marchar para o esquerdo do observador, apresenta a cauda, comprida e com linhas incisas, viradas para o lado do observador (JM) ou para o lado contrário (AP, MC, LC, SS, MLC, IC, IF, QM).
À excepção de QM, cujo asno não apresenta cascos, todos os outros exemplares (AP, MC, LC, SS, JM, MLC, IC, IF) ostentam cascos pintados a preto e que num dos casos (AP) fazem lembrar sapatinhos.
Na cabeça aparecem linhas que representam a cabeçada que cinge a cabeça e o focinho da cavalgadura, bem como as rédeas para a condução da mesma e que numa representação ingénua e simplificadora, passam por debaixo da albarda, supostamente em direcção à mão do aguadeiro, que está apoiada no quadrúpede. Tais linhas são negras (AP), castanhas em tom variável (MC, JM, SS, MLC, IF) ou cor de zarcão (LC e SS). Um exemplar apresenta cabeçada com volumetria e a castanho, embora esteja implícito que as rédeas passem por debaixo da albarda (IC). Noutro exemplar (QM) e a castanho, a cabeçada apresenta volumetria, tal com as rédeas assentes na manta.
No lombo do asinino está assente uma manta rectangular castanha de tonalidade variável, na qual se apoia uma albarda, igualmente castanha, ornamentada com borlas pintadas de cor azul (AP), verde e vermelho (MC, LC, JM, MLC), preto (SS) ou vermelhas, alternadas com faixas brancas (IF). Num exemplar não existe manta nem albarda (QM) e noutro (IC) não existe albarda e a cangalha assenta directamente sobre a manta.
Sobre a albarda está disposta uma cangalha de tonalidade amarela (AP) ou castanha (MC, LC, JM, SS, IC, MLC, IF). Contudo um dos exemplares (QM) não ostenta cangalhas. Em sua substituição, observa-se aquilo que parece configurar duas golpelhas (alcofas grandes de esparto), de cor castanho-claro, assentes paralelamente no lombo do quadrúpede e cada uma delas, pendendo para qualquer dos lados.
Nas cangalhas e nas golpelhas estão alojados de cada lado do jumento, dois cântaros com tampa, de cor prateada configurando folha metálica e com uma asa constituída por um porção arqueada de arame (AP, MC, LC, JM, SS, MLC, IC). Porém, dois exemplares apresentam asas em barro (QM e IF), o que no segundo caso constituiu uma situação pontual.
O binómio homem-animal assenta numa base trapezoidal de cor verde, pintalgada de branco, amarelo e zarcão e pintada lateralmente desta mesma cor (AP, MC, LC, JM, SS, MLC, IF). Todavia, pode ser integralmente verde (IC) ou verde, pintada lateralmente de zarcão, ainda que rectangular com as extremidades arredondadas (QM). A base trapezoidal pode apresentar os quatro cantos cortados em bisel (SS, IC).


sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

Sua Excelência, a cunha


Brasão dos Cunha

A cunha está na ordem do dia. Porque se trata dum termo susceptível de interpretação bivalente, merece ser analisado à lupa.

A cunha em si própria
A cunha é uma máquina simples que consiste numa peça de aço ou madeira rija, terminada em ângulo diedro muito agudo e que se introduz à força pela aresta correspondente ao ângulo diedro mais agudo, entre as partes dum mesmo corpo que se querem separar. As cunhas permitem fender ou dividir corpos sólidos como madeiras ou rochas, aproveitando sempre que possível quaisquer sulcos, fendas ou veios que aquelas apresentem. Na prática, uma cunha é um duplo plano inclinado transportável, cujo funcionamento obedece ao mesmo princípio do plano inclinado. Ao mover-se no sentido da sua extremidade afilada, a cunha gera forças intensas na direcção perpendicular ao sentido do movimento. A cunha é a base de todas as ferramentas de corte usadas no trabalho de materiais, como o formão, o escopro, o machado, o ferro da plaina, os pregos, as lâminas das facas e das tesouras.
Enquanto máquinas simples, as cunhas estão registadas no adagiário português: “Com cunhas se racham pedras” e “Se não fossem as cunhas, não se rachavam paus”. Na gíria popular, “ À cunha” significa “Completamente cheio”. Em termos de toponímia, “Cunha” é topónimo aplicável a lugares de freguesias e freguesias, havendo ainda que distinguir entre “Cunha Alta”, “Cunha Baixa” e “Cunhas”. O anexim “Cunha” aparece também no contexto das alcunhas alentejanas. A nível de antroponímia, “Cunha” é um sobrenome português e galego de origem toponímica, documentado desde o século XIII e aplicável a inúmeras pessoas notáveis. No que respeita a heráldica, “Cunha” é uma figura heráldica em forma de cunha, o conhecido utensílio dos ra­chadores de lenha, o qual só figura nas armas das famílias com este nome e é representável por um trapézio isósceles com a base virada para cima. Da heráldica dos “Cunha”, muito haveria a dizer, mas que se omite, não por preconceito republicano, mas por real falta de espaço.

A cunha em sentido figurado
Na gíria popular, a palavra “cunha” é usada como sinónimo de “tráfico de influências”. Meter uma cunha” significa “Pedir o favor de uma pessoa influente” e “Ter uma cunha” é “Contar com a protecção de uma pessoa influente”. Daí, que com tal sentido, esteja registada no adagiário português: “Para lá da Gardunha só te safas com uma cunha”. É caso para perguntar:
- E na nossa terra?
A resposta é óbvia:
- Estamos para lá da Gardunha. Existe uma instituição chamada “cunha”!
Diz-nos o adagiário português que, embora haja quem pense que “Um favor qualquer um faz”, isso não exclui a presunção de que “Favores alegados, pagos estão”, bem como “De grandes senhores, grandes favores”, os quais não os farão indiscriminadamente, já que “Favor ao comum, favor a nenhum”.
Há quem diga que isto está a mudar. Eu tenho bastantes dúvidas, já que “A dúvida é a sala de espera do conhecimento” e “Quem duvida não se engana”.