terça-feira, 28 de setembro de 2010

Irmãs Flores - Bonequeiras de Estremoz

A literatura filatélica

O nosso fado de coleccionadores leva-nos a deambular por aqui e por ali, à procura dum objecto que não encontramos, qual alquimista que procura sem sucesso a pedra filosofal, qual cavaleiro que procura igualmente sem sucesso o Santo Graal, mas não é por isso que deixam de procurar.
Por vezes até encontramos, mas a magreza da carteira não nos permite alimentar veleidades de posse. Resta-nos então a possibilidade de registo com o olhar, qual chapa fotográfica que procura fixar através do brometo, a beleza dum objecto que nos encheu as medidas.
Muitas vezes no regresso do mercado de sábado, marcados pelo sucesso ou insucesso de alguma compra, somos conduzidos sem dar por isso, à oficina-loja das irmãs Flores, duas barristas nossas vizinhas, a quem visitamos amiúde no Largo da República, em Estremoz, fascinados pela magia emergente das suas mãos de barristas populares. Por vezes, quando damos por nós, estamos lá em plena semana, o que tem o triplo significado de que o sábado anterior passou há muito, que o próximo ainda vem longe e de que gostamos muito de falar com elas, enquanto assistimos à gestação e ao nascimento dos bonecos. Poderá, porventura, haver maior felicidade para um coleccionador que a possibilidade de com o olhar, poder ser cúmplice com os criadores no próprio acto de criação?
As irmãs Flores, Maria Inácia e Perpétua, de seus nomes, discípulas de mestra Sabina Santos, com ela aprenderam a nobre arte do barro e com ela aprenderam a respeitar o que de mais genuíno têm os bonecos de Estremoz, no que respeita a modelos e tipos característicos, formas, cores e tintas. Mas, também e simultaneamente criaram novos modelos e apostaram em novos tamanhos, que têm vindo a enriquecer a vastíssima galeria de modelos de bonecos de Estremoz. São de sua criação há muito, bonecos como “Senhora a ler”, “A filatelia”, "A literatura filatélica", “O farmacêutico”, “A gastronomia”, “A florista”, “O acabamento da ceifa”, “Cristo na cruz” ,“Camponês rico“, bem como novos de modelos de presépio. Naturalmente que continuam a executar modelos tradicionais, como “Primaveras”, “O amor é cego”, “Púcaros”, “Cantarinhas”, “Peraltas “, “Cavaleiros”, “Pastores”, “Ceifeiras”, “Negros floristas”, etc., pois a imaginária popular é vasta.
Os bonecos são fabricados por elementos: cabeças, troncos, pernas, braços, que depois são montados de modo a constituir os bonecos. Estes, tal como nós, nascem nus e só depois é que recebem vestidos, capas, safões, cabelos e chapéus. Todas as peças são afeiçoadas à mão, à excepção do rosto dos bonecos, que é feito com moldes e sempre assim foi, devido à dificuldade em o fazer manualmente. As ferramentas que utilizam para trabalhar o barro são a palheta ou teque (de madeira, plástico ou metal, que permite escavar o barro e dar-lhe forma), os furadores (para furar) e o batedor (para estender o barro (embora haja quem o faça com o rolo da maça).
Antes de serem cozidos, os bonecos têm de secar durante vários dias. Depois de cozidos, os bonecos levam um dia para arrefecer. Só então podem ser pintados. Nesta operação são utilizados pincéis finos de várias espessuras e tintas fabricadas com pigmentos minerais: vermelhão (vermelho), almagre (vermelho escuro), zarcão (cor de laranja), terra de sena (castanho), verde bandeira (verde), azul do ultramar (azul), alvaiade (branco) e pó de sapato (preto). As tintas são feitas misturando os pigmentos com água e cola de madeira, um pouco a olho, mas na quantidade adequada para que a tinta agarre bem ao barro e não salte quando se lhe põe verniz, uma vez que depois da pintura estar seca (o que é rápido), os bonecos são envernizados para fixar a tinta.
As irmãs Flores são continuadoras da arte das “boniqueiras”, mulheres referidas em acta do Município de Estremoz de 10 de Outubro de 1770, conforme investigação recente de Hugo Guerreiro. Dessas boniqueiras são as peças do século XVIII e século XIX que estão no Museu Municipal Prof. Joaquim Vermelho, em Estremoz.


Pastor a comer as migas

Coqueira

Cozinha dos ganhões

Mulher a fazer chouriços

Castanheira

Mulher a cozinhar
Primavera de arco

Senhora a ler

Lavradeira de Viana do Castelo

domingo, 26 de setembro de 2010

Sermão de Santo António aos peixes

Com que os mudos peixes,
                                       saem ouvindo ao ar aberto.”

                                                         CAMÕES (Écogla 6ª das Rimas Várias)

SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES (séc. XVIII).
Painel de azulejos da Igreja de Santo António dos Capuchos,
na freguesia de Oliveira do Castelo, em Guimarães.

Quando me vejo aflito, exteriorizo a minha preocupação com um oportuno:
-“Valha-me Santo António!”
O meu desabafo não é, porém, um desabafo isolado e singular. É que Santo António está sempre presente na vida quotidiana do povo, invocado pelos responsos ou orações que lhe são dirigidos ou, presente em imagens que nos rodeiam.
Já no século XVII o padre António Vieira dizia num dos seus famosos sermões [1], que os portugueses para tudo pediam o auxílio de Santo António. Pregava ele: “Se vos adoece o filho, Santo António; se vos foge o escravo, Santo António; se mandais a encomendas, Santo António; se esperais o retorno, Santo António; se aguardais a sentença, Santo António; se perdeis a menor miudeza da vossa casa, Santo António; talvez se quereis os bens da alheia, Santo António.”
-“Valha-me Santo António!”, é por vezes o meu desabafo. E que melhor maneira de Santo António me valer, senão levar-me a escrever sobre ele.
Nascido em Lisboa no dia 15 de Agosto de 1195, a sua intensa vida religiosa e apostólica estará porventura na origem da sua morte, aos 36 anos, a 13 de Junho de 1231, no Convento de Arcella, perto de Pádua. Canonizado em Maio do ano seguinte pelo Papa Gregório IX, foi declarado oficialmente Padroeiro de Portugal em 1932 e proclamado por Pio XII, Doutor da Igreja, em 1946.
Segundo o Papa Leão XIII, Santo António é o Santo de todo o Mundo: “A fama dos seus muitos milagres, tendo-se espalhado por todos os povos, contribui para aumentar o lustre e a glória do nome português e em especial da cidade de Lisboa que o teve por filho” [2].
A circunstância de o seu dia festivo (13 de Junho) coincidir com as festas do Solstício de Verão, fazem com que seja um dos mais populares santos celebrados em Portugal, com permanente presença honrosa na Literatura, na Pintura, na Escultura, Azulejaria, na Música, no Folclore, na Arte Popular e na Filatelia (selos, inteiros e marcas postais).
Dentre as muitas representações possíveis de Santo António, escolhemos para tema deste post, um painel de azulejos do séc. XVIII, da Igreja de Santo António dos Capuchos [3], na freguesia de Oliveira do Castelo em Guimarães, que representa o "Sermão de Santo António aos peixes". Vejamos o que nos diz o Padre António Vieira (1608-1694) no seu “Sermão de Santo António aos peixes” publicado pela primeira vez em 1682:
“Pregava Santo António em Itália, na cidade de Rimini [4], contra os hereges, que nela eram muitos; e como erros de entendimento são dificul¬tosos de arrancar, não só não fazia fruto o Santo, mas chegou o povo a se levantar contra ele, e faltou pouco para que lhe não tirassem a vida. Que faria neste caso o ânimo generoso do grande António? Sacudiria o pó dos sapatos, como Cristo aconselha em outro lugar? Mas António, com os pés descalços, não podia fazer esta protestação; e uns pés, a que se não pegou nada de terra, não tinham que sacudir. Que faria logo? Reti¬rar-se-ia? Calar-se-ia? Dissimularia? Daria tempo ao tempo? Isso ensinaria porventura a prudência ou a covardia humana; mas o zelo da glória divina, que ardia naquele, não se rendeu a semelhantes partidos. Pois que fez? Mudou somente o púlpito e o auditório, mas não desistiu da sua doutrina. Deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer a altas vozes: “Já que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes! Oh! maravilhas do Altíssimo! Oh! poderes do que criou o mar e a terra! Começam a ferver as ondas, começam a concorrer os peixes, os grandes, os maiores, os pequenos; e, postos todos por sua ordem com as cabeças de fora da água, António pregava, e eles ouviam”.
Diz a lenda que os peixes pequenos se chegavam aos grandes e, sem temor deles, se lhes abrigavam debaixo das barbatanas. É de resto o que nos diz esta quadra popular:

"Santo António Português,
Quando foi pregar ao mar,
Até os peixes na água,
Se puseram a escutar!" [5]

Termino, fazendo votos que este post tenha sido do vosso agrado. Caso contrário terei de dizer com redobrado denodo:

- “Valha-me Santo António!”



[1]-O padre António Vieira pregou dois sermões sobre Santo António: um em Roma, na Igreja dos Portugueses, outro na Baía, na Igreja de Santo António. Vêm ambos na edição dos “Sermões” publicada em Lisboa no ano de 1855.
[2]-Carta de Leão XIII, ao Cardeal Patriarca de Lisboa, de 2 de Maio de 1895.
[3]-O Convento e a Igreja e de Santo António dos Capuchos, localizados na freguesia de Oliveira do Castelo em Guimarães, começaram a ser construídos em 1664 por D. Diogo Lobo da Silveira, Prior da Colegiada e antigo Provedor da Misericórdia. A igreja, entretanto arruinada e demolida, seria reedificada em 1742. Foi, então acrescentado o coro alto e o segundo andar do claustro. Em 1748 foi construída a sacristia e em 1763 foi refeita a fachada da igreja, ao gosto barroco.
[4]-Rimini, cidade do NE de Itália, na região de Emília, província de Forli, situada na costa do Adriático e na foz do Mareccha, a 44º 3’ 43" de latitude Norte. A cidade de Rimini teve origem na antiga Ariminum, fortaleza e posto de grande importância política e militar no período romano. Já na Idade Média, Rimini foi porto de importância e domínio dos Malatesta, senhores cruéis e requintados mecenas. Actualmente é uma das maiores e mais famosas estações balneares de Itália.
[5]-Quadra recolhida por Armando de Mattos (ver Bibliografia).

BIBLIOGRAFIA
- Chagas, M. Pinheiro. Portugueses Ilustres. Porto, 1983.
- Grande Enciclopédia Luso-Brasileira.
- Informações prestadas pela Embaixada de Itália.
- Matos, Hernâni António Carmelo de. Bilhetes-Postais Comemorativos do VII Centenário do Nascimento de Santo António de Lisboa in Catálogo da Inteiromax - Eça de Queiroz 2000, Póvoa de Varzim, Agosto de 2000.
- Mattos, Armando de. Santo António nas Tradições Populares, Porto, 1937.

SANTO ANTÓNIO PREGANDO AOS PEIXES (1ª metade do séc. XVII).
 Painel de azulejos (6 x 5). Fabrico de Lisboa.
Proveniente das Escadinhas do Jogo da Pela, Lisboa.
 Museu Antoniano, Lisboa. 
SANTO ANTÓNIO PREGANDO AOS PEIXES (c. 1725 - 1745).
 Painel de azulejos (111x80 cm).
 Museu Nacional do Azulejo, Lisboa. 
SANTO ANTÓNIO PREGANDO AOS PEIXES (séc. XVIII).
Painel de azulejos da Igreja do Convento dos Capuchos, Lisboa.
SANTO ANTÓNIO PREGANDO AOS PEIXES (séc. XVIII).
Painel de azulejos da Igreja do Convento dos Capuchos, Lisboa. 
SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES (séc. XVIII).
Painel de azulejos da Sé de Aveiro.
SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES (séc. XVIII).
Painel de azulejos da Capela Baptismal da Sé de Lisboa. 
SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES (séc. XVIII).
Painel de azulejos da Igreja do Convento de Santo António da Lourinhã. 
SERMÃO DE SANTO ANTÓNIO AOS PEIXES (séc. XVIII).
Painel de azulejos da Igreja de Nossa Senhora da Vitória,
ilha de Santa Maria, Açores.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Alberto de Souza e Estremoz

 
Fig. 1 - Carro alentejano. 

"Grande Artista!
Alberto de Souza realizou toda a sua obra
de olhos voltados para Portugal
– sem os desviar um momento da terra que lhe foi berço."


JÚLIO DANTAS
(in Prefácio do livro de Alberto de Souza
“50 Anos de Vida Artística”)

Sou cartófilo desde que me reconheço como coleccionador, aí pelos dez anos de idade. E a Cartofilia servir-me-ia de trampolim para outros voos como a Etnografia, uma vez que a Cartofilia é um poderoso auxiliar daquela, visto os postais ilustrados registarem para a perpetuidade, elementos recolhidos num dado contexto geográfico, social e temporal, relativos às características de uma determinada comunidade, rural ou urbana: o seu traje, a sua faina, os seus usos e costumes, as suas festas e romarias.
O registo cartófilo, tanto pode ter por base o cliché dum fotógrafo com sensibilidade ou pendor para as questões da identidade cultural regional, como as pinceladas magistrais de pintores que sentiram estética, plástica e cromaticamente, o pulsar do Povo Português, o Povo que lava no rio, que apascenta o gado na charneca ou na montanha, que cavalga na lezíria, que charrua a terra-mãe ou que da rede lançada ao mar, recolhe o seu e o nosso pão nosso de cada dia.
Creio que o pintor mais representado na cartofilia portuguesa seja Alberto de Souza (1880-1961), notável aguarelista e ilustrador, que calcorreou o país de lés a lés na primeira metade do século XX, funcionando como consciência plástica da Nação, pela oportunidade e rigor do registo etnográfico, efectuado através das suas exemplares aguarelas.
Alberto de Souza esteve em Estremoz no início do século XX, tinha então vinte e poucos anos e aqui registou aspectos do traje e usos e costumes locais, perpetuados em desenhos que “A EDITORA”, divulgou em postais ilustrados da sua 3ª série, a qual incluía motivos de Estremoz, Évora e Beja. Os motivos de Estremoz são: CARRO ALENTEJANO (Fig. 1), UM POÇO (Fig. 2), QUINTAL (Fig. 3) e LAREIRA (Fig. 4). Estes postais deram a volta ao mundo. O mais antigo que integra a minha colecção, tem aposto sobre selo de 25 reis de D. Carlos I (tipo Mouchon), o carimbo de LISBOA CENTRAL / 3ª SECÇÃO de 21-10-1904, local de onde foi expedido para Londres, onde chegou a 24-10-1904, conforme revela a marca de chegada à estação de PADDINGTON, na capital inglesa. Como curiosidade refiro que tenho outro circulado em 1906, expedido pelo escritor Ramalho Ortigão (1836-1915) - uma das figuras principais da Geração de 70 - de Lisboa para Estocolmo, na Suécia, dirigido ao então Ministro Plenipotenciário do Reino, António Feijó (1859-1917), diplomata e poeta consagrado. O desenho de um homem culto e consciência plástica da Nação (Alberto de Souza), a servir de abraço fraternal e a ligar dois amigos afastados (Ramalho Ortigão e António Feijó.
Mas, a relação de Alberto de Souza com Estremoz, não ficou por aqui. Alberto de Souza seria posteriormente o autor de uma aguarela (Fig. 5), propriedade da Câmara Municipal de Estremoz e que esteve na base da confecção de um cartaz para a afamada Feira-Exposição de Maio de 1926, em Estremoz. Nesta aguarela, na parte superior, a parte antiga do burgo, confinada às muralhas do Castelo e, dominando tudo, altaneira e vigilante sobre a planície, a Torre de Menagem, ex-líbris de Estremoz. Em primeiro plano, o pastor de ovelhas, arrimado ao seu cajado, com o tarro com as comedorias do dia, envergando o seu traje regional constituído pelo pelico, pelos safões, pelo lenço em redor do pescoço e pelo chapéu de aba farta, que é tema de quadra brejeira no cancioneiro regional:

“Alentejo não tem sombra,
Senão a que vem do céu.
Assente-se aqui, menina,
À sombra do meu chapéu.”

Sobre o traje, diz-nos Luís Chaves, etnólogo que na época também por aqui andava: “O traje surge-nos como produto natural do meio, isto é, de quanto dentro e à volta do homem existe, e tudo o que influi no espírito e actua nele. Desde a escolha e adopção de tecidos, até à cor e forma, desde a ornamentação ao arranjo das partes componentes, tudo aí tem razão de ser como é, e tem de estar onde está.”.
Hoje, o pastor da região já não se veste assim e as encostas do monte onde se ergue o Castelo de Estremoz, são vinhas e não campos de semeadura de trigo. Daí a importância desta e de todas as outras aguarelas de Alberto de Souza no registo etnográfico. Sublinhe-se que a Etnografia (do grego έθνος, ethnos - nação, povo e γράφειν, graphein - escrever) é o método utilizado pela Antropologia na recolha de dados, através do contacto efectuado entre o antropólogo e o grupo humano, objecto do seu estudo. Sublinhe-se ainda que a Antropologia (do grego άνθρωπος, anthropos - homem e λόγος, logos - pensamento) é a ciência que estuda o Homem e a Humanidade, em geral. Por isso, Alberto de Souza foi um antropólogo e um antropólogo social porque se dedicou à observação das técnicas, usos, costumes, crenças, regras de conduta e de comportamento de grupos sociais. E que trabalho extraordinário ele produziu ao longo da sua vida! Uma ínfima parte desse trabalho é constituído por 39 aguarelas, propriedade da Fundação Portuguesa das Comunicações, retratando trajes populares portugueses e que serviram de base à edição pelos CTT, em 1941, de bilhetes-postais ditos oficiais.
Como filatelista e cartofilista, possuo estes postais na minha colecção. Esta circunstância, aliada ao facto de coleccionar bonecos de Estremoz, viria a dar os seus frutos. Vejamos como.
Fascinado pela magia emergente das suas mãos de barristas populares, frequento amiúde a oficina e a loja das Irmãs Flores, no Largo da República, em Estremoz. Gosto muito do trabalho destas senhoras, Maria Inácia e Perpétua, de seus nomes, discípulas de mestra Sabina Santos, que com ela aprenderam a nobre arte do barro e com ela aprenderam a respeitar o que de mais genuíno têm os bonecos de Estremoz, no que respeita a modelos e tipos característicos, formas, cores e tintas. Mas, também e simultaneamente, criaram novos modelos e apostaram em novos tamanhos, que têm vindo a enriquecer a vastíssima galeria de modelos de bonecos de Estremoz.
Pois bem, às Irmãs Flores, afamadas barristas da nossa terra, lancei oportunamente o desafio de criarem novos modelos de bonecos (Fig. 7), inspirados em aguarelas de Mestre Alberto de Souza (Fig. 6). Elas aceitaram o repto e o resultado traduziu-se na bela e magnífica Exposição “Bonecos das Irmãs Flores inspirados em Aguarelas de Alberto de Souza sobre Traje Popular Português”, que em Fevereiro-Março-Abril de 2007, esteve patente ao público na Sala de Exposições do Centro Cultural Dr. Marques Crespo, onde até agora, foi das exposições mais visitadas. Depois disso, a barrística popular estremocense ficou ainda mais rica.
Depois deste sucesso, pensei que a Memória de Alberto de Souza merecia ainda muito mais. Como agente cultural, a consciência da importância da sua Obra, levou-me a tomar a iniciativa de promover uma Exposição de Pintura em Sua Homenagem, o que acabaria por ser feito numa iniciativa conjunta da Associação Filatélica Alentejana, da Câmara e do Museu Municipal de Estremoz e, da Família de Alberto de Souza. Paralelamente a esta Exposição decorre o Salão Filatélico FILAMOZ 2008, comemorativo do 25º Aniversário da Associação Filatélica Alentejana, onde quatro expositores põem em evidência o trabalho desenvolvido pelo Artista na concepção de selos e postais dos Correios. São eles: António Cristóvão (Emissões Camilo Castelo Branco), João Soeiro (Emissões Independência de Portugal), Miranda da Mota (IV Centenário do Nascimento de Camões) e Hernâni Matos (Inteiros Postais reproduzindo Trajes Populares Portugueses baseados em Aguarelas de Alberto de Souza).
Para perpetuar no espaço e no tempo, esta homenagem a Alberto de Souza, a Associação Filatélica Alentejana encomendou aos Correios de Portugal, o fabrico de dois selos personalizados, novo tipo de selos, criados pela Portaria nº 1335/2007 de 10 de Outubro. Um dos selos reproduz o auto-retrato de Alberto de Souza em 1950 (Fig. 8) e o outro, a aguarela que serviu de base ao cartaz da Feira-Exposição de Maio de 1926, em Estremoz (Fig. 9).
No acto inaugural da Exposição funcionou no local um posto de correio, provido de carimbo comemorativo (Fig. 10), reproduzindo o auto-retrato de Alberto de Souza, carimbo este concedido para o evento pelo Serviço de Filatelia dos CTT, com o apoio da Federação Portuguesa de Filatelia, os quais também se associaram na Homenagem àquele que, através dos seus rigorosos e vigorosos traços e das suas pinceladas de Mestre, criou obras primas que, para nosso deleite ficaram perpetuadas nas fórmulas de franquia dos nossos Correios.

Publicado inicialmente a 23 de Setembro de 2010

Fig. 2 - Um poço.

Fig. 3 - Quintal. 

Fig. 4 - Lareira.

Fig. 5 – Aguarela que serviu de base para o cartaz da Feira-Exposição
de Maio de 1926.

Fig. 6 – Lavradeira de Viana do Castelo.I nteiro Postal nº 8,
da emissão de 1941.

Fig. 7 – Lavradeira de Viana do Castelo. Boneco de Estremoz,
das Irmãs Flores.

Fig. 8 - Selo de correio normal, reproduzindo o
auto-retrato de Alberto de Souza (1950).

Fig. 9 - Selo de correio normal, reproduzindo aguarela

 de 1926, de Alberto de Souza.

 

Fig. 10 - Carimbo Comemorativo de Homenagem a Alberto de Souza.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Os bonecos de Estremoz

1. Galeria de bonecos de Estremoz de Mariano Augusto da Conceição (1902-1959), barrista da Olaria Alfacinha. Fotografia de Rogério de Carvalho (1915-1988), obtida cerca de 1930.

Desde os dez anos que transportamos na massa do sangue o espírito de coleccionador. Marca genética ou atávica, não sabemos, mas que veio ao de cima lá por essa idade, veio. E é um facto tão real como o odor da flor de esteva ou o castanho da terra de barro.
Coleccionar é reunir num todo, objectos que têm pelo menos uma característica ou funcionalidade comum. A motivação para o fazer pode ser diversa, como distintas podem ser as consequências de uma colecção. Pode ficar guardada numa caixa ou arrumada numa prateleira de estante ou mesmo numa vitrina, como também pode ser objecto de estudo numa procura de respostas, desde sempre procuradas pela alma humana.
Há objectos que pelos mais diferentes motivos somos levados a coleccionar. E nenhuma colecção é estática, mas antes bem pelo contrário, dinâmica, uma vez que com o porvir há que as reformular, pelo aumento do grau de exigência imposto e mesmo fruto de uma certa especialização, os quais diminuem o espectro daquilo que se colecciona.
Uma das coisas que coleccionamos, são os bonecos de Estremoz, os quais descobrimos há cerca de trinta anos. E dizemos que descobrimos, porque efectivamente, nados e medrados em Estremoz, tínhamos os olhos abertos, mas não víamos, como acontece a muito boa gente. Até que um dia, os nossos olhos foram para além da missão elementar de observar o óbvio. Então a nossa retina transmitiu às redes neuronais um impulso nervoso que se traduziu numa emoção com um misto de estético e de sociológico. Foi tiro e queda a nossa atracção pelos bonecos de Estremoz.
Bonecos que duplamente têm a ver com a nossa identidade cultural estremocense e alentejana, bonecos que antes de tudo são arte popular, naquilo que de mais nobre, profundo e ancestral, encerra este exigente conceito estético-etnológico.
Bonecos moldados pelas mãos do povo, a partir daquilo que a terra dá - o barro com que porventura Deus terá modelado o primeiro homem e as cores minerais já utilizadas pelos artistas rupestres de Lascaux e Altamira no Paleolítico, mas aqui garridas e alegres, como convém às claridades do Sul.
É vasta e diversificada a galeria dos bonecos de Estremoz. Reflexo afinal da riqueza do imaginário popular, que procura retratar a realidade local e regional, não só quando os bonecos se destinam a um uso específico (figuras de presépio, imagens religiosas, apitos, ganchos de meia, etc.), como e tão só a uma finalidade decorativa. Passemos então uma revista, ainda que breve, a esta galeria (fig.1), aproveitando para a sistematizar em doze grandes grupos de bonecos:
1. As figuras de presépio, de forte registo etnográfico e que ciclicamente permitem reconstituir e comemorar em nossas casas, o nascimento de Cristo Salvador.
2. As imagens religiosas que para além daquelas que noutros materiais e em ponto grande, existem nas nossas igrejas e conventos, são objecto de devoção popular (Senhor dos Passos, Senhora da Conceição, Santo António, São João Baptista, Santo Onofre, São Sebastião, procissão, etc.).
3. Figuras que têm a ver com a realidade local. Temos assim os militares (sargento a pé, sargento no jardim, lanceiro), o cavaleiro, a amazona, o frade a cavalo, a senhora dos pezinhos, a banda de música, o leiteiro, o aguadeiro, a mulher das castanhas, a mulher a vender chouriços, o oleiro, o canteiro, o brinholeiro, etc.
4. Figuras intimistas que têm a ver com o quotidiano doméstico (mulher a lavar o menino, mulher a lavar a roupa, mulher a fiar, mulher a regar as flores, mulher a passar a ferro, mulher a servir o chá, mulher a ver-se ao espelho, etc.).
5. Figuras que são personagens da faina agro-pastoril nas herdades alentejanas (pastor, ceifeira, ganhão, porqueiro, azeitoneira, coqueira, lavrador, mulher dos perus, mulher das galinhas, mulher dos carneiros, matança do porco, fabrico de chouriços, fabrico de queijos, etc.).
6. Figuras de negros, que a nosso ver, através da nossa permeabilização à cultura afro-brasileira, indiciam miscenização de raças e a fusão de culturas ocorrida ao longo da colonização do Alentejo. Para alguns são figuras inspiradas no Carnaval de outrora.
7. Figuras destinadas a assinalar períodos festivos (primaveras, bailadeiras, peraltas, músicos, etc.).
8. Figuras satíricas (o cirurgião e o doente, Napoleão, soldados franceses, etc.).
9. A infindável variedade de apitos para a miudagem brincar e atazanar os ouvidos aos mais velhos. Representam figuras humanas e animais. As figuras humanas são: senhora, amazona, peralta, peralta a cavalo, militares, militar a cavalo, camponês, camponês a cavalo. Por sua vez, as figuras animais são galos (no disco, no poleiro, na árvore, no pinheiro, no arco, etc.), galinha no choco e pomba. Existe também a cesta de ovos.
10. Os ganchos de meia para as mulheres ajeitarem ao peito a malha do tricot. Representam figuras humanas e animais. As figuras humanas são: mulher de chapéu, mulher em cabelo, freira de Malta, homem com chapéu, homem de carapuça, militar, padre, sacristão e palhaço. Quanto às figuras animais são: papagaios, pombos, galos e perus.
11. Paliteiros (homem a tocar viola, bobos, Lampião, Maria Bonita, etc).
12. Outros objectos decorativos ou funcionais: cantarinhas, pucarinhos, candelabros, suportes para velas, etc.
Todos os bonecos de Estremoz possuem um forte registo de uma dada época. As imagens religiosas, pelo detalhe e riqueza do traje reproduzem as esculturas sagradas barrocas, objecto de culto nas nossas igrejas e conventos. Por sua vez, as imagens profanas, possuem um rigoroso registo etnográfico do traje, sobre o qual nos diz, Luís Chaves [3]: “O traje surge-nos como produto natural do meio, isto é, de quanto dentro e à volta do homem existe; e tudo que influi no espírito e actua nele. Desde a escolha e adopção dos tecidos, até a côr e a forma, desde a ornamentação ao arranjo das partes componentes, tudo aí tem razão de ser como é, e tem de estar onde está”. O trajo alentejano, tal como é revelado pelos bonecos de Estremoz, é rico e diversificado, quer seja usado por homem ou mulher, estando em relação directa com a posição de cada um na escala social e com as tarefas diárias desempenhadas. As imagens profanas, no seu conjunto, traduzem também a diversidade e a hierarquia das relações de produção no contexto social da nossa região.
Na nossa condição de etnólogo amador e auto-didacta, o registo etnográfico das imagens profanas e em particular dos personagens da faina agro-pastoril, será porventura, o mais forte atractivo dos bonecos de Estremoz. À procura deles deambulamos nos sábados, pelo Mercado, na esperança permanentemente renovada de encontrar exemplares mais antigos, que por vezes aparecem à venda. E já temos tido a sorte de conseguir comprar por bom preço, um ou outro boneco que nos faltava, de afamados barristas já falecidos, como Mariano da Conceição, José Moreira ou Sabina Santos. Lá diz o rifão “Quem porfia sempre alcança”. E quando isso acontece é grande o nosso contentamento. E o sábado ainda é melhor. O sábado, é de resto, um dia singular, em Estremoz e é mesmo festejado por muita gente, entre elas escritores. Assim, numa carta de Estremoz, acerca do mercado, publicada no "Jornal do Barreiro" de Março de 1951, dizia Sebastião da Gama [7]: “Se me querem ver contente, é darem-me um sábado de Estremoz“. Perguntamos nós:- Porquê? Dizia ele que ao “Sábado, é o mercado. A praça enfeitada, a praça contente”. E concluía a carta dizendo: “O sábado de Estremoz é o meu domingo de Estremoz”.
Da venda de bonecos de Estremoz no mercado-feira (fig. 2), nos fala João Falcato [6]: “A feira alentejana é um mar de pitoresco. E de abastança também. Tem de tudo e para todos. Até para os artistas ou que, pelo menos, de artistas têm olhos e alma.
Sobre o largo passeio que separa o local da feira da estrada, há sempre multidão de figuras policrómicas e representativas duma originalidade que, sendo viva, é sui-generis: o pastor, o homem do leite, a ceifeira, o cavaleiro, o abegão, a mulher que enche os chouriços, o lavrador, a fiandeira, e até os reis magos, são as personagens estranhas que nos dias de feira povoam as bermas do passeio do Rossio. E tudo isto bonecos, que só não são rudes e primitivos por as mãos que moldaram o seu barro terem em si o jeito divino das criação”.
Os bonecos de Estremoz têm sido objecto de múltiplos estudos, os mais antigos dos quais serão de D. Sebastião Pessanha [9], de Virgílio Correia [5] e de Luís Chaves [4]. Quanto às abordagens publicadas mais recentemente, merecem especial destaque os trabalhos de Solange Parvaux [8] e de Joaquim Vermelho [10].
À criação e venda de bonecos de Estremoz se dedicam na actualidade, barristas como Maria Luísa da Conceição, Irmãos Ginga, Irmãs Flores, Fátima Estróia, Isabel Pires e Célia Freitas, cada um com o seu toque próprio.
As peças produzidas por estes barristas não chegam para as encomendas. O futuro dos bonecos de Estremoz parece, actualmente não estar em risco. Todavia, nem sempre foi assim. Segundo D. Sebastião Pessanha, os últimos presépios feitos em Estremoz, terão sido uma encomenda que fez para si e para o Museu Etnológico de Belém, em 1916. Por outras palavras, os bonecos de Estremoz foram dados como extintos. Como ressurgiram então? Graças à acção de José Maria de Sá Lemos (fig. 3), escultor, natural de Vila Nova de Gaia, discípulo de Mestre Teixeira Lopes e director nos anos 30 da Escola Industrial de António Augusto Gonçalves. Quando ele chegou a Estremoz, o artesanato em barro, estava na mais completa decadência, apenas se confeccionando peças de olaria para uso doméstico. Alimentou então o sonho do ressurgimento dos bonecos de Estremoz e conseguiu concretizar esse sonho. Como director da Escola deu forte incentivo aos Cursos de Olaria e de Cantaria e com o apoio de Ti Ana das Peles (fig. 5) primeiro e de Mariano da Conceição (fig. 6) depois, estimulou a recuperação dos bonecos dados como extintos. Espírito humanista, de rara sensibilidade artística, a ele se deve o facto de os bonecos serem ainda hoje um dos nossos ex-líbris, conhecidos aquém e além fronteiras.
Sá Lemos ao impulsionar o renascimento dos bonecos de Estremoz, pô-los na ordem do dia. Não é assim de admirar que a artista Laura Costa tenha escolhido os bonecos de Estremoz, como motivo de ilustração de bilhetes-postais de Boas Festas dos Correios, da emissão de 1942 (fig. 7 e fig. 8).
No seu livro “Barros de Estremoz” dado à estampa em 1964 diz-nos Azinhal Abelho [1]: “Que Estremoz pague um dia a José Sá Lemos pois voltaram os bonecos de barro à luz do dia” (fig. 9). Parafraseando Azinhal Abelho é caso para dizer que há muito tinha chegado a altura de Estremoz pagar a Sá Lemos os serviços relevantes prestados ao Município. Pois bem, a Assembleia Municipal de Estremoz na sua sessão de 19 de Setembro de 1997, recomendou à Câmara Municipal de Estremoz, que perpetuasse a memória deste estremocense pelo coração, numa futura atribuição de nomes a ruas da nossa cidade. A recomendação carece ainda de concretização.


BIBLIOGRAFIA

[1] - ABELHO, Azinhal – Barros de Estremoz. Lisboa: Edições Panorama, 1964.
[2] - ALVES, Aníbal Falcato – Os Comeres dos Ganhões. Porto: Campo das Letras, 1994.
[3] - CHAVES, Luís – A Arte Popular – Aspectos do Problema. Porto: Portucalense Editora, 1943.
[4] - CHAVES, Luís – Arte popular do Alentejo. Os ganchos de meia de barro d’Estremoz, in Águia, 1917.
[5] - CORREIA, Virgílio – Brinquedos e Louça de Estremoz, in Terra Portuguesa, II, 1916.
[6] - Falcato, João – Elucidário do Alentejo. Coimbra: Coimbra Editora, 1953.
[7] - GAMA, Sebastião - Carta de Estremoz, in Jornal do Barreiro, Março de 1951.
[8] - PARVAUX, Solange – La Céramique Populaire du Haut-Alentejo. Paris: Presses Universitaires de France, 1968.
[9] - PESSANHA, Sebastião – Os Bonecos d’Estremoz, in Terra Portuguesa, I-II, 1911.
[10] - VERMELHO, Joaquim – Barros de Estremoz. Porto: Limiar, 1990.

2. Mercado-feira dos sábados, em Estremoz. Fotografia de Rogério de Carvalho, obtida cerca de 1930.

3. José Maria de Sá Lemos (1892-1971), escultor, natural de Vila Nova de Gaia, discípulo de Mestre Teixeira Lopes e director nos anos 30 da Escola Industrial de António Augusto Gonçalves, em Estremoz.


4. Dr. José Lourenço Marques Crespo (1872-1955), médico, escritor regionalista, fundador e director do jornal Brados do Alentejo (1931-1951). Administrador do Concelho de Estremoz (Fevereiro-Julho de 1910 e Fevereiro- Março de 1913) e Presidente da Câmara Municipal de Estremoz (1923-1926).

5. Ti Ana das Peles, velha bonequeira com aprendizagem efectuada na segunda metade do século XIX, que colaborou com José Maria de Sá Lemos no ressurgimento dos bonecos de Estremoz. Fotografia de Rogério de Carvalho, obtida cerca de 1930.

6. Mariano Augusto da Conceição (1902-1959), Mestre de Olaria na Escola Industrial de António Augusto Gonçalves, em Estremoz e que viria a ser barrista da Olaria Alfacinha, após ter aprendido a arte com Ti Ana das Peles, por incentivo do Director da Escola, José Maria de Sá Lemos. Fotografia de Rogério de Carvalho, obtida cerca de 1930.



7. Bilhete-postal de Boas Festas do tipo "Tudo Pela Nação" e que tem como motivo  "Bonecos de Estremoz". Expedido em 24 de Dezembro de 1942, por SÁ LEMOS, director nos anos 30 da Escola Industrial de António Augusto Gonçalves, em Estremoz, o qual pela sua acção fez ressurgir os "Bonecos de Estremoz", que estavam em vias de extinção. Bilhete-postal recebido pelo Dr. José Lourenço Marques Crespo (1872-1955), Presidente da Câmara Municipal de Estremoz no período 1923-1926 e pessoa de rara sensibilidade para as questões do Património, do Artesanato e da Cultura em geral.

8. Verso do anterior bilhete-postal de Boas Festas emitido pelos correios portugueses em 1942, em que um presépio de Estremoz é o motivo central da ilustração de Laura Costa.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Nós os subversivos do Facebook



Perfilho há muito a ideia de que é necessário estabelecer pontes de entendimento entre as pessoas. Cada um de nós não está atomizado na sua individualidade, uma vez que a própria vida se encarrega de nos integrar em múltiplos grupos com características diversas, nem sempre convergentes.
Alguns grupos são fechados, com códigos de conduta rígidos que a pretexto da pureza de princípios, os incapacitam de dialogar com os restantes. Entre grupos fechados só são possíveis conversas de surdos, já que como não se ouvem uns aos outros, não sabem o que os outros dizem.
Uma atitude distinta é cada um de nós e os grupos em que se insere, procurarem ouvir os outros para perceber o que eles dizem, pensam e querem. Como retribuição podem ser ouvidos e os outros ficarão a saber o que dizemos, pensamos e queremos. É possível então chegar à conclusão de que partilhamos algumas ideias comuns, o que torna possível construir algo em conjunto, facto que introduzirá laços de união entre nós. É a unidade na diversidade.
Com o tempo é possível que a área de partilha aumente, mas também é possível que não. Porém, ficámos a saber o que os outros pensam e a respeitá-los porque nos respeitam a nós. E uma coisa é certa, a partilha é só de coisas que nos unem, não de coisas que nos separam. Podemos com outros partilhar amigos, se não todos, alguns. O que não somos é obrigados a partilhar os adversários. Isso é terreno que não é partilhável.
Uma das muitas coisas que partilho com os outros é a escrita, instrumento de libertação do Homem. Filho de alfaiate, aprendi a alinhavar palavras, que permitem cerzir ideias com que se propagam doutrinas. Esse o sentido da minha intervenção na blogosfera.
Furiosamente independente, procuro ser sempre incisivo, cáustico quanto baste, mas sempre preciso.
Modéstia à parte, tenho formação dura de físico teórico e fui treinado para pensar.
Procuro levar tudo às últimas consequências e como atirador franco do pensamento e da acção, procuro fazer o varrimento da transversalidade dos saberes.
Depois disso, a síntese dialéctica é um ovo de Colombo nascido no cú da galinha da minha cabeça.
É isso o rigor?
Então que seja!
Que a minha galinha continue a pôr ovos, por muitos anos e bons.
E desses ovos faremos suculentas e perfumadas omeletas verbais, que regaladamente trincharemos, sentados à mesa DO TEMPO DA OUTRA SENHORA, do CLUBE ROBINSON, dos ALENTEJANOS NO FACEBOOK, dos AZULEJOS PORTUGUESES e noutras mesas mais, onde habitualmente abancamos, degustamos e partilhamos saberes.
Nós somos os subversivos assumidos do Facebook, que apostámos forte em mudar a cara deste livro, o que diariamente fazemos com determinação, audácia e comunhão.
Nós, operários da palavra, homens e mulheres deste país, velhos e novos, tradicionalistas e alternativos, crentes e descrentes, de direita ou de esquerda, monárquicos ou republicanos, somos um paradigma do que são as potencialidades de redes sociais como o Facebook.
Comunicamos uns com os outros e partilhamos ideias e pensamentos, feitos de palavras, imagens e sons.
Aprendemos a respeitar-nos uns aos outros e a ter em conta a opinião do interlocutor. E passamos a fazer caminhadas comuns até onde é possível fazê-lo, de livre vontade e sem constrangimentos.
Talvez estejamos as lançar os alicerces dum mundo novo, nós os subversivos do Facebook.

Publicado inicialmente em 11 de Setembro de 2010

Textos do Facebook

Imagem recolhida na pasta "A LEITURA É UNIVERSAL"
(Biblioteca Escolar de Marvão)

LÁ VAI UM
À Manuela Mendes:
Nós somos recicladores, reutilizadores, reintegradores no presente das memórias do passado.
Nas nossas veias corre, provavelmente, sangue do Jurássico, aí pelo menos com uns 150 milhões de anos, o que é uma bagatela para a idade estimada para a Terra, que amavelmente nos serve de habitáculo.
Somos pois dinossauros, resquícios e memórias vivas de ecosócioetnosistemas, que o tempo, esse maganão, caldeou. É caso para perguntar:
- O que é o tempo?
- O que é a idade?
Não sei, apesar de nos circuitos neuronais intuir a percepção de que o tempo não perdoa. E é cruel, também. Todavia, eu não me rendo nunca. Nem nú, nem de fato e de gravata!
Talvez um dia destes, fale sobre o tempo na Literatura Oral. Mas hoje não, Manuela, que tenho falta de tempo. Hoje falarei sobre o tempo geológico, dos fósseis como eu, oriundos da proto-Pré-História, nascidos no funil do tempo, mercê dum salto quântico no espaço-tempo-energia.
Carnívoros uns, herbívoros alguns e omníveros outros, partilhamos desde os tempos ancestrais, quando a variável tempo foi imediatamente superior a zero segundos, a consciência de em nome da sobrevivência, haver necessidade de reciclar, de reutilizar, de reintegrar, como quem mapeia o passado, para poder construir o futuro com solidez.
Por isso, Manuela, eu, fóssil vivo, não reconhecido nem por Spielberg, nem pela Sociedade Geológica de Portugal, recuso-me a deixar de ter rugas, cabelos brancos. Para longe vá o reumático e outras formas de caruncho animal!
Eu gosto do que tem a patine do tempo.
O meu lugar é aí.
Hernâni
LÁ VÃO DOIS
À Teresa Bailão (vítima dum resfriado):
A gente tem sempre aquilo que não quer...
Quantos ricaços em Portugal, com os bofes de fora por causa do calor, não gostariam de ter a possibilidade de apanhar um resfriado?
É uma prova de que o dinheiro não compra tudo…
Um abraço:
Hernâni
LÁ VÃO TRÊS
Ao Feliciano Cupido (Um amigo pintor):
Quando releio ou mentalmente revejo poemas e prosa do Manuel da Fonseca, por vezes sinto arrepios de espinha. Imagens sociológicas dum Alentejo que já não existe, que a gente não quer que se repita, porque era opressivo e repressivo, mas que a gente não quer olvidar, para transmitir às gerações mais novas, a memória dos que sofreram e resistiram.
Feliciano:
Você tem o Alentejo na massa do sangue e através dele faz o registo conjugado dos volumes, das formas, das cores e das texturas, em tudo aquilo que nos toca a alma.
Partilhe connosco no Facebook, esse Alentejo que lhe vai na sua e na nossa alma.
Um abraço do amigo:
Hernâni
LÁ VÃO QUATRO
Ao Josué Carronha:
Desânimo, nem pensar!
Eu tenho um metro e noventa de altura e deixei de me pesar certo dia, já longínquo, em que uma balança me comunicou que a minha massa corporal era excessiva, porque ultrapassa os cem quilogramas. Ora eu, que não sou dado a depressões e gosto de respirar nos poros, o prazer da vida, dei-me ao trabalho, por questões meramente metodológicas, de mandar fazer uma série de exames ao esqueleto e àquilo que o reveste.
Quais os resultados?
As rugas, as olheiras e os cabelos brancos escondem um corpo de Fórmula 1, rodado em provas de fundo.
É caso para dizer:
- PORRA PARA AS BALANÇAS!
LÁ VÃO CINCO
À Maria Reis (Que esteve na origem deste texto):
Caros amigos e leitores:
O meu irmão gémeo, dado a pirraças e que me anda sempre a atazanar o juízo, no outro dia disse-me uma coisa que me ficou no sentido:
- “Pois! Agora deu-te para essa do blogue… Quando fores crescido hás-de ter muitos leitores. Hás-de, hás-de…Ouve lá, oh pá! Faz algum sentido, falares em coisas de que tu falas? Ministros? Burros? Penicos? Colheres de Pau? Morcelas e chouriços? Arte conventual? Cornos trabalhados? Tu estás doido! Mas mais doidos que tu, são esses do tal Grupo de Fãs…Valha-me, Santo António, aos pulos! As Marias e os Maneis que tu não arranjaste, para dizer ámen às tuas missas…”
No seu olímpico desprezo, o outro filho parelho de minha mãe, à sua maneira enviesada e tortuosa, encontrou uma maneira singular de realçar o papel dos fãs.
Às Marias e aos Maneis de que ele fala, independentemente do nome que tenham, só uma coisa é possível dizer pela minha parte:
- “Obrigado amigos, por confiarem em mim! Tenho motivos para estar feliz! Para vocês todos, o meu reconhecimento pela amizade desinteressada, acompanhado dum abraço do tamanho do mundo…"
Até sempre!
O Vosso Hernâni DO TEMPO DA OUTRA SENHORA