Dou comigo a pensar que o corpo com que nascemos nos molda. Como
se as características físicas fossem os atributos extensíveis da nossa
personalidade. Ou talvez seja ao contrário. Que o corpo se vai moldando de
forma a albergar a dimensão dos nossos interesses, dos nossos valores, do nosso
conhecimento, de como somos com os outros à medida que crescemos.
Em 2019, quando embarquei no Curso de Técnicas de Figurado de
Estremoz, estava longe de imaginar que a minha vida ia dar uma volta de 360
graus. Mas uma grande volta deu a minha vida, de tal
forma que, inspirada e apaixonada pelo que
tinha aprendido, deixei um emprego certo e decidi dedicar-me à
incerteza de ser artesã e fazer bonecos. Uns mais inspirados nos de Estremoz do
que outros, mas sempre com os de Estremoz, e o que aprendi no curso, no
horizonte e como ponto de partida.
Neste meu salto em queda livre, foram muitos os que me foram
abrindo para-quedas, de tal forma que acabei por perceber que afinal
não era uma queda, mas sim um voo. E ninguém como o Hernâni Matos, que agora
tenho o privilégio de ter como Amigo, e que me tem acompanhado neste voo
e tem sido uma ponte sólida entre o meu trabalho como artesã e o mundo
dos Bonecos de Estremoz.
Não me esqueço o sábado de sol, de um princípio de verão, no dia
em que nos conhecemos. Um dia da era estranha dos tempos Covid, que não são
ainda dias do passado, mas que espero, possam sê-lo em breve. Ambos de máscara
posta, adereço uniformizador da nossa vulnerabilidade humana, escudo que
nos protege a vida, mas que nos afasta da riqueza codificada das
expressões faciais. O que era para ser uma entrega de uma peça à laia de um
café, tornou-se numa conversa que teria durado todo o dia, não fosse a sardinhada
em família que o Hernâni tinha agendado para esse sábado.
A mente do Hernâni é como as cartolas dos mágicos, e exerce o
mesmo fascínio para quem tem a sorte de privar com ele. Nem bem acabado
que está de sair o primeiro coelho, já uma pomba, um lenço, uma rosa se põem em
fila para sair também, num desfile inesgotável e surpreendente, cada um como
consequência inevitável do outro. Dos cumprimentos formais "do como está,
é um prazer conhecê-lo finalmente", o Hernâni deslindou o primeiro
"coelho da sua cartola" com a lenda de São Roque e do seu
confinamento visionário, em tempos de outras pandemias, e sobre o cão que lhe
trazia pão e que lhe permitiu sobreviver. Do São Roque passou-se aos apitos. Os
mais tradicionais, os mais contemporâneos. Fiquei a saber que o Hernâni prefere
os mais singelos. Depois a conversa discorreu para a origem carnavalesca das
figuras do Amor é Cego, da sua possível inspiração nas obras barrocas com
cupidos e outros anjos. Daí passámos à Primavera, às peças de inovação, o percurso
histórico dos Bonecos. Outro truque da cartola, e o Hernâni falou do seu
percurso profissional como aprendiz de alfaiate, e depois como professor de
Física no Liceu. Mencionou um aluno brilhante que teve, o seu perfeccionismo já
evidente, e que se transformou num dos grandes do Figurado Português, com o
qual tive o privilégio de aprender o que sei de figurado - o Mestre Jorge
Palmela. Logo a conversa se virou para os novos artesãos, os mais velhos, os
que já não estão. E daquela cartola não parariam de sair
"coelhos e pombas", na analogia possível aos temas de
grande interesse que ali partilhávamos, não tivesse chegado a hora do almoço.
O mercado de sábado, que me parecia acontecer apenas com o
propósito de servir de cenário à nossa conversa, era já um baile de gente
a arrumar bancadas e outras de sacos nas mãos a transbordar com ramas verdes,
comprando um último ingrediente, ou fazendo uma última negociação de
algum achado em segunda mão, antes do regresso a casa.
E assim, sob o olhar atento da fonte do Sátiro, do
escultor Sá Lemos, nos despedimos. Sem abraços, ou outras manifestações de
proximidade, porque os tempos não estão para isso.
No regresso a casa vim a pensar no quanto aquele homem de 74 anos,
ao qual praticamente só vi os olhos, leva dentro. Tanto conhecimento, tanta
força, tanta generosidade, tanto amor por tantas coisas e um incomensurável
pelos Bonecos, que o seu corpo mais não poderia ser se não um corpo alto,
basilar, com a elegância da idade e das coisas interessantes às quais dedica o
seu tempo.
Desde então são inúmeras as vezes que trocamos ideias. Não se
cingem aos bonecos, nem ao eterno dilema, tão velho como a própria arte em si,
da tradição versus a inovação, que pano para longas mangas tem dado aos
Bonecos da Cidade Branca. Outros temas afloram, alguns de cariz mais
atual, outros mais poéticos e oníricos. Em todos eles sempre a mesma
generosidade, cuidado, mente crítica, conhecimento profundo,
sensibilidade e, a qualidade mais preciosa entre todas - humanidade.
Seres como Hernâni são seres raros, bons, necessários cuja
contribuição para o bem maior é indelével. E por isso têm corpos como
catedrais, fortes, amplos, erguidos, para que neles possa existir o universo
vasto que contêm.
Que acabem rápido estes dias covidescos, e que a nossa amizade
possa fazer-se de mais dias de verão, numa esplanada de Estremoz, irradiada
pelo sol e pela partilha de saber, de interesses comuns e pelos nossos
sorrisos.
Joana Santos
Foros do Queimado, 1 de Março de 2021
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