terça-feira, 30 de janeiro de 2018

A berardização da paisagem rural


Herdade das Carvalhas na estrada da Glória (Estremoz).

A identidade cultural alentejana       
O Alentejo tem marcas identitárias que o distinguem de qualquer outra região do país. São elas: a paisagem, o carácter do povo alentejano, a casa tradicional, o traje popular, os produtos regionais (ervas medicinais, azeites, vinhos, queijos, enchidos), a gastronomia, a arte popular, a tradição oral (adagiário, lendas, adivinhas, lengalengas, gíria popular, alcunhas, cancioneiro), o folclore (cante e saias), os jogos populares, os usos e costumes, etc.
Estas marcas identitárias conferem uma imagem de marca ao Alentejo, da qual muito justamente se orgulham e com a qual se identificam os alentejanos, tanto naturais como adoptivos. É o somatório desses timbres e da oferta turística, que é gerador de fluxos visitadores que muito contribuem para a economia regional. Daí ser preciso, imperioso e urgente que cada um de nós tenha consciência dessa identidade cultural e lute pela sua preservação, valorização e aprofundamento. Essa a razão da presente crónica.
A subversão das marcas identitárias
Quem transita pela estrada da Glória, ao chegar à Herdade das Carvalhas, fica atónito com a mudança de visual. A começar pela nova designação, que depois de travestida passou a ser a da marca “Quinta do Carmo”. Depois, ressalta à vista, a plantação de palmeiras de estaca, junto ao muro que bordeja a estrada. E por fim, blocos de mármore, pintados com cores variegadas e empilhados uns sobre os outros, formando conjuntos de altura variável. Que farão ali naquele cais? Será que aguardam a chegada de camiões de carga que os transportem ao Carnaval de Cascais? Não creio.
Não sou arquitecto paisagista, mas como regionalista convicto e esclarecido, julgo ser legítimo concluir que estamos perante um exemplo manifesto de lamentável “berardização” da paisagem rural. Aos que possam desconhecer a semântica de tal conceito, direi em bom e puro alentejano que consiste em “albardar o burro à vontade do dono”, manifestando um desprezo olímpico pelos usos e costumes locais, consignados pela tradição.
Dir-me-ão alguns que por ali não há burros e não me custa admitir que assim seja. Já quanto a camelos não estou tão certo, uma vez que é uma associação inescapável a que sou conduzido pela presença intrusa das palmeiras.
A prima Hifigénia, mulher de virtudes e com dotes de pitonisa era capaz de agourar:
- Para a imagem de califado ser ainda mais forte, só ali faltam tendas com beduínos a fumar narguilé, já que camelos não devem faltar.
Todavia e com grande mágoa minha, a prima já não pertence ao reino dos vivos. Contudo, o registo memorial das suas sábias alocuções, permanece perene nos nossos espíritos.

Hernâni Matos 
(Texto publicado no jornal E nº 192, de 25-01-2018)

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