sexta-feira, 19 de março de 2010

O Tempo da Outra Senhora - Significados

Foi com o santo nome de "O TEMPO DA OUTRA SENHORA", que no acto de baptismo, o padre de serviço abençoou o presente blog. Mas ao contrário de designações como João ou Maria que não são susceptíveis de várias interpretações, o nome deste blog é passível de interpretações diversas. Passemo-las em revista, para ser possível concluir qual é aquela que este blog assume.

A MORTE DA DONA DE CASA

Capa da revista "Ilustração Portuguesa" - II Série - Nº 581,
de 10 de Junho de 1922.

Há um ditado que remonta a tempos imemoriais e que proclama que “Lá em casa manda ela e nela mando eu.” Pese embora o conteúdo, hoje considerado machista, deste provérbio, dele é possível concluir que quem mandava em casa era a dona de casa ou seja a Senhora. Era ela que punha e dispunha. Era ela que era responsável pela gestão de toda a economia doméstica, desde as arrumações e limpezas, até à determinação das ementas e à própria confecção das refeições.
A Senhora tinha muito poder e era ela quem dizia como se havia de cortar. Esse poder, condicionado naturalmente ao poder patriarcal do Senhor, só terminava quando à Senhora lhe dava o badagaio e esta esticava o pernil, antes do Senhor seu esposo.
Durante o período de nojo que se seguia à morte da Senhora, havia um curtíssimo interregno de poder, findo o qual se tinha de cumprir a tradição. A gestão da economia doméstica passava a ser efectuada por outra Senhora: filha ou nora do viúvo ou até nova esposa, se este entretanto tivesse casado. Era então natural que a nova Senhora quisesse proceder a alterações, que podiam começar por mudanças na arrumação e decoração da casa, passando pela modificação das atribuições dos serviçais, acabando nos mais infímos pormenores a ter em conta na gestão da economia doméstica. Sim, ”Porque eu é que sei”, tem sido sempre o lema e o estandarte sob o qual se têm abrigado todas as donas de casa. As alterações ocorridas eram então sempre referenciadas relativamente às “do tempo da outra Senhora.” Esta a origem da frase “do tempo da outra Senhora", consignada há muito no vocabulário popular. Todavia, a frase pode ter outro significado muito diferente do anterior. Vejamos qual.

O ESTADO NOVO

António de Oliveira Salazar (1889-1970),
representado num cromo duma caderneta de cromos,
 do período do Estado Novo.

Muitas vezes quando dizermos “do tempo da outra senhora” queremos significar o lapso de tempo que mediou entre 1926 e 1974 ou seja no chamado período do Estado Novo. E que foi isso do Estado Novo? É importante explicar isso aos mais novos. E com rigor histórico, naturalmente. Aqui o humor é dispensável.
Devido a instabilidade política e a problemas económicos que a I República não conseguiu resolver, a 9 de Julho de 1926 deu-se em Portugal, um golpe de estado militar, encabeçado pelo general Sinel de Cordes e que levaria Salazar ao poder, dando origem a uma das mais duradouras e odiadas ditaduras do século XX.
Em 1929, dirigindo-se ao País, Salazar proclama: “Tudo pela Nação, nada contra a Nação”, um dos slogans que acabou por se converter na imagem de marca de Salazar, por resumir emblematicamente a política do Estado Novo. Adaptando o slogan de Mussolini [1], Salazar utiliza o “Tudo pela Nação, nada contra a Nação”, como máxima oficial do Estado Novo, com que terminavam os próprios ofícios da burocracia do regime.
“Tudo pela Nação, nada contra a Nação” sintetiza a decisão de Salazar em estruturar um estado forte, que garantisse a ordem, por oposição à desordem que considerava (1910-1926). O Estado forte assentava no reforço do poder executivo, de que Salazar seria chefe, na substituição do pluralismo partidário por um partido único (União Nacional) e na supressão dos sindicatos.
Salazar defendia também a preservação dos valores tradicionais - Deus, Pátria, Família - de modo a formar uma sociedade doutrinada de acordo com a moral cristã (Deus), nacionalista (Pátria) e corporativa (Família). O Estado forte caracterizava-se, ainda, pelo imperialismo colonial e pelo nacionalismo económico.
A consolidação da ideia de nação em Portugal ficaria a cargo de uma organismo governamental, o Secretariado de Propaganda Nacional (SPN), criado em 1933 e dirigido pelo jornalista António Ferro, a quem cabia a espinhosa missão de, nas palavras de Salazar [2], “Elevar o espírito da gente portuguesa no conhecimento do que é e realmente vale, como grupo étnico, como meio cultural, como força de produção, como capacidade civilizadora, como unidade independente no concerto das nações”.
Como coadjuvantes da política do “Tudo pela Nação, nada contra a Nação”, existiam:
- Um partido único oficial – a União Nacional.
- Uma censura férrea aos meios de comunicação social.
- Uma polícia política que perseguia os opositores a regime.
- Prisões políticas.
- Uma política colonialista, que proclamava Portugal como "Estado pluricontinental e multirracial”.
- Uma milícia – a Legião Portuguesa - para defesa do regime e combate ao comunismo.
- Uma milícia juvenil – a Mocidade Portuguesa - destinada a inculcar nos jovens os valores do regime.
- Uma vida económica e social do país organizadas em corporações.
- Sindicatos corporativos e inexistiam os sindicatos livres.
Eram estas as características mais marcantes do auto-denominado “Estado Novo”, que para gáudio da maioria, morreu de velho em 25 de Abril de 1974.

ANTIGAMENTE

Locomotiva a vapor número 1, Dom Luiz, de duas rodas motoras e de sete pés de diâmetro. Fotografia sem data. Produzida durante a actividade do Estúdio Mário Novais: 1933-1983. [CFT003 075602.ic] - Galeria de Biblioteca de Arte-Fundação Calouste Gulbenkian.

As mulheres usavam combinação, saiote e soutien, mesmo que pouco tivessem para meter lá dentro. Iam à missa de véu e bem cobertas de roupa.
Os homens usavam ceroulas, botas de elástico e polainitos, bem como alfinete na gravata e relógio de bolso.
Antigamente, os tempos eram outros e é precisamente nessa acepção que a frase popular “do tempo da outra Senhora” é usada neste blog.
Tempos em que se ia a Lisboa de comboio a vapor, se passeava de churrião e as pessoas civilizadas defecavam no penico.
São tempos que despertam memórias nas quais nem todos se revêem da mesma maneira.
São tempos "do tempo da outra Senhora"…

[1] - “Nada fora do Estado, acima do Estado, contra o Estado. Tudo no Estado, dentro do Estado”. – Mussolini (1883-1945).
[2] - SALAZAR, António de Oliveira. Discursos. Coimbra Editora Limitada, Coimbra, 5ª edição, 1961, vol. 1.

Hernâni Matos

2 comentários:

  1. Sr. Hernâni,
    Muchas gracias por sus indicaciones. El buen maestro es el que enseña a descubrir nuevos caminos.
    Obrigado.

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    1. Teresa:
      Não tem de quê.
      Tenho muito gosto em tê-la como leitora.
      Os meus cumprimentos.

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