terça-feira, 23 de março de 2010

Ciclo do pão na Literatura Oral ( 1 - A lavra)

1 - A LAVRA

A lavra no Alentejo, no início do século XX. Postal edição de Faustino António Martins (Lisboa).

A lavra era a operação com que se preparava o ventre da terra-mãe, antes de este ser fecundado. Era a primeira das fainas agrícolas do ciclo do pão, era determinante e exigia muito dos seus protagonistas. Daí que houvesse quem pensasse que:

“Bem pudera Deus dar pão
Na terra sem ser lavrada
Assim como Deus dá filhos
Na mulher sem ser casada.“ [1]

A esperança numa boa colheita era reconfortante:

“É bonito vêr no prado
pachorrentos bois lavrando,
Mais atraz o lavrador
Alegremente cantando.“ [2]

Havia o hábito das canções de trabalho:

“No alto daquela serra
Canta alegre o lavrador;
Que fará quem não arrasta
Os duros guilhões de amor “ [3]

Um dos protagonistas da lavra era o ganhão que assumia a grandeza da gesta com a pujança dos bois que conduzia:

“Eu sou um ganhão da ribêra,
Da ribêra sou ganhão.
Lavro com dois bois vermelhos
Que fazem tremer o chão.“ [4]

As condições para uma boa lavra, estavam perfeitamente identificadas:

“Bom arado e bom tomão
Faz’uma bela intanchadura;
Boa junta e bom ganhão
Deitam um rego à d’reitura.“ [5]

“Bom arado, bom temão
Uma boa enteixadura...
Embelga, bom abegão,
Faz lavrar a terra dura.“ [6]

“Desde que vim ao mundo
Sempre lavrei com três bois.
Metia o do meio ao rêgo
E, atrás, ficavam dois.“ [7]

O não saber lavrar ou o lavrar mal, era motivo de crítica:

“Já morreu o boi Capote
Qu’era parceiro do Pombinho,
Quem não sabe dar um rego
Não lavra’ao pé do caminho.“ [8], [9]

“Ó rapaz do boi Cadete,
Mais obras, menos razões...
Pareces um ramalhete
No mêo dos outros ganhões.“ [10]

A quadra podia ser brejeira, visto o seu autor ter vontade de lavrar em corpo de mulher:

“Quem me dera ser feitor,
Lavrador nesse teu peito
Antes que não semeasse
Ficava o alqueve feito. “ [11]

“Quem me dera ser feitor,
Lavrador na tua herdade,
Para dar um rêgo direito
E meter a mão à vontade.“ [12]

A mulher podia pensar que não era digna do filho do lavrador:

“Quando eu vou para a cidade
Passo à quinta do vedor.
Não te quero, não me és dado,
Que és filho de um lavrador.“ [13]

Todavia a mulher, podia assumir o amor por um lavrador, assim como optar pela vida no campo:

“Meu amor é lavrador,
Lavra terras na feiteira, [14]
O arado com que lavra
É de pau de laranjeira.“ [15]

"Meu amor é lavrador,
Tem um monte e uma herdade...
Nem eu quero, nem ele quer
ir viver para a cidade.“ [16]

O rifonário sobre a lavra é rico e vasto. Dele destacamos:

- “Em Abril lavra as altas mesmo com água pelo machil.“
- “Quando Maio chegar, quem não arou tem de arar.“
- “Se queres ter pão lavra pelo S. João.“
- “A terra lavrada em Agosto à estercada dá de rosto.“
- “Terra lavrada em Agosto, já estercada dá de rosto.“
- “Lavra temporão / se queres haver pão.“
- “Quem não tem carro nem bois, ou lavra antes, ou depois.“
- “Quem mal lavra, pouco ceifa.“
- “Lavra a terra enquanto o preguiçoso dorme e terás trigo para vender e guardar.“
- “Não há boa terra sem bom lavrador.”
- “O que lavra crie e o que guarda não fie.“
- “Ara com os bois, semeia com as vacas.“
- “Deixa o boi mijar e farta-o de lavrar.“
- “Lá se foi o melhor boi do meu arado.“

Quanto a adivinhas, apenas conhecemos esta:

“Reluz como prata
E prata não é;
Fossa como porco
Mas tem só um pé.” [17]

Decerto não será muito. Mas lá diz o rifão:

“Quem dá o que tem, a mais não é obrigado.”

Hernâni Matos

[1] - Alentejo - recolha de Azinhal Abelho in Roteiro Lírico do Alentejo, Mensário das Casas do Povo, nº 92 - 1954.
[2] - Milfontes e Odemira - recolha de Victor Santos in Cancioneiro Alentejano Português, edição do Grémio Alentejano, Lisboa, 1938.
[3] - Tolosa (concelho de Nisa) - Recolha de J. Leite de Vasconcellos in Cancioneiro Popular Português.
[4]  - Olivença - Recolha de J. Leite de Vasconcellos in Cancioneiro Popular Português.
[5] - Tolosa (concelho de Nisa) - Recolha de J. Leite de Vasconcellos in Cancioneiro Popular Português.
[6] - Alentejo - recolha de Azinhal Abelho in Roteiro Lírico do Alentejo, Mensário das Casas do Povo, nº 92 - 1954.
[7] -Milfontes e Odemira - recolha de Victor Santos in Cancioneiro Alentejano, Grémio Alentejano, Lisboa, 1938.
[8] - Quem não sabe lavrar bem, não lavra ao pé de gente, parece mal.
[9] - Amieira (concelho de Nisa) - Recolha de J. Leite de Vasconcellos in Cancioneiro Popular Português.
[10] - Alentejo - Recolha de J. Leite de Vasconcellos in Cancioneiro Popular Português.
[11] - Milfontes e Odemira - recolha de Victor Santos in Cancioneiro Alentejano, Grémio Alentejano, Lisboa, 1938.
[12] - Milfontes e Odemira - recolha de Victor Santos in Cancioneiro Alentejano, Grémio Alentejano, Lisboa, 1938.
[13] - Tolosa (concelho de Nisa) - Recolha de J. Leite de Vasconcellos in Cancioneiro Popular Português.
[14] - Onde há fetos.
[15] - Amieira (concelho de Nisa) - Recolha de J. Leite de Vasconcellos in Cancioneiro Popular Português.
[16] - Alentejo - recolha de Azinhal Abelho in Roteiro Lírico do Alentejo, Mensário das Casas do Povo, nº 92 - 1954.
[17] - É o arado. Recolha de Teófilo Braga in As Adivinhas Portuguesas in Era Nova, Lisboa, 1881.

2 comentários:

  1. Ainda bem que há "gentes" que não deixam morrer a nossa cultura ancestral porque ela é parte integrante do nosso ser português.

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  2. Bem ha-ja quem preserva a cultura e a divulga. É um legado que devemos manter para transmitir aos nossos descendentes.

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