segunda-feira, 22 de março de 2010

O tarro



Pastor alentejano – aguarela de Alberto de Souza
 (1880-1961), pintada em 1935.

A MANUFACTURA DO TARRO PELO PASTOR

Na procura incessante de pasto para o gado que pastoreava e lhe assegurava o ganha-pão, o pastor alentejano tinha que deambular por aqui e por ali, como cão pisteiro à procura de caça. A vida de nómada não era uma vida fácil e exigia que quem a praticasse se fizesse acompanhar de utensílios de uso diário. No caso do pastor alentejano, um desses utensílios era o tarro de cortiça que ele próprio manufacturava, visando guardar e transportar alimentos que se conservavam a uma temperatura próxima da atingida na sua confecção, decorridas algumas horas sobre terem saído do lume.Para esse efeito arranjava uma prancha de cortiça de dimensões adequadas e com a superfície o mais regular possível. Esta prancha, de espessura adequada, era cortada com o auxílio da faca ou da navalha, em formato rectangular e depois limpa de ambos os lados. A altura do rectângulo seria a altura do tarro e a base do rectângulo estava em relação directa com o diâmetro pretendido para a vasilha. A prancha de cortiça, era de seguida dobrada e fechada em arco, de modo a ficar com forma cilíndrica.
Para facilitar o fecho, as extremidades da prancha correspondentes à altura do rectângulo eram previamente desbastadas, de modo a ficarem mais estreitas e ao sobreporem-se, o cilindro ficar perfeito.
Na zona de junção das extremidades da prancha, estas eram ligadas por pregos de madeira, confeccionados pelo próprio pastor. Seguidamente, doutra prancha com espessura adequada, talhava um disco cilíndrico que ia servir de fundo ao tarro. Depois de limpar o disco em ambas as faces, encaixava-o sob pressão na extremidade do cilindro correspondente ao fundo. Este encaixe tinha de ser perfeito, não só para o tarro não vazar o conteúdo, como para serem absolutamente complanares na zona do fundo, a tampa e o cilindro que ela encerrava. O fundo, era seguidamente fixo ao cilindro com pregos, também de madeira.
Posteriormente, doutra prancha também com espessura adequada, talhava um disco ligeiramente tronco-cónico, que era limpo em ambas as faces e que ia servir de tampa móvel ao tarro. Este último disco, agora não era cilíndrico mas tronco-cónico, a fim de tornar mais fácil a compressão no acto de fecho do tarro, bem como facilitar a sua retirada no acto de abertura.
Quase a finalizar, o tarro levava uma asa constituída por uma verga de carvalho ou de castanho, de dimensões adequadas. Esta verga, dobrada em arco, era fixada nas extremidades em pontos opostos, situados junto ao topo da superfície lateral do tarro. A fixação era feita por meio de pregos de madeira de larga cabeça tronco-esférica, a fim de a asa não se soltar do tarro.
Muitas vezes o tarro era também decorado, sobretudo na tampa e na parte exterior da asa. Para isso e tal como fazia com as colheres, com o auxílio do ponteiro ou do lápis, esboçava o desenho a executar, gravado ou escavado. E mais uma vez os motivos decorativos tinham a ver com realidade que o cercavam e o imaginário e as superstições que lhe povoavam a mente. Aí estavam as ramagens, folhas, flores, animais, estrelas, cruzes, motivos geométricos, rosetas, arabescos, cordas, zig zags, signo saimão, etc.
O tarro era manufacturado com recursos fornecidos pelo meio ambiente que circundava o pastor. E à semelhança do talêgo era a vasilha reciclável inventada pelo sábio povo alentejano que sempre soube encontrar formas criativas de tirar o máximo proveito do meio. Durava uma vida inteira e quando por algum motivo já não pudesse ter préstimo e se deitasse fora, era degradado pela terra-mãe, a fim de renascer sob outra forma.
A escolha da cortiça para manufactura duma vasilha com a funcionalidade do tarro, tinha de resto a ver com o conhecimento empírico das invulgares propriedades da cortiça enquanto material: muito leve, elástico, compressível, impermeável a líquidos e a gases, com elevada resistência térmica, bom isolamento térmico, quimicamente inerte, resistente ao uso e com elevada longevidade.
O tarro manufacturado pelo pastor nada tem ver com o tarro industrial fabricado pela indústria corticeira. Sobre este assunto, advertiu Hipólito Raposo:
(…) No Chiado vendem-se tarros que jamais conheceram navalha de pastor de gado em herdade alentejana, porque saíram das fábricas de cortiça, polidos e reluzentes como as lâminas das máquinas com que os cortaram. Perde-se a arte do povo, vai a morrer tristemente com a industrialização mecânica.(…) [ 1]

APONTAMENTOS ETNOGRÁFICOS

Gil Vicente (1465?-1536?) no “Auto de Mofina Mendes” (1534) representado pela primeira vez, perante El-Rei Dom João III, põe na boca do pastor André a seguinte fala:

“Eu perdi, se s'acontece,
a asna ruça de meu pai.
O rasto por aqui vai,
mas a burra não parece,
nem sei em que vale cai.
Leva os tarros e apeiros,
e o surrão cos chocalhos,
os samarros dos vaqueiros,
dois sacos de páes inteiros,
porros, cebolas e alhos. “
(…)

Rodrigues Lobo (1579-1621), na “Primavera” (1601), refere-se à bagagem do pastor quando o faz dizer que a sua casa:

"He chea com um çurrão mal pendurado,
 com um tarro, com um cabaz, e com um pelico,
Huma frauta, huma funda, e um cajado."

Brito Camacho em “Gente Rústica (1921) refere-se à utilização do tarro:

“O leite das cabras, acabado de ordenhar, todo em espuma, sabia-me divinamente, e mesmo que dentro do tarro tivessem caído algumas caganitas, não era preciso coal-o nem fervel-o para o beber sem repugnância.” [2]

No adagiário popular é conhecida uma referência ao tarro:

“A mais ruim ovelha, do fato suja o tarro.”

Tal como a cortiça, também o tarro é exaltado no cancioneiro popular alentejano:

“Neste tarro de cortiça
oferta do meu amor,
até o pão com chouriça
às vezes sabe melhor.” [3]

O tarro transportava a comida do pastor, que trabalhava de sol a sol. A comida confeccionada logo de manhã (à hora do almoço), era guardada dentro do tarro para retemperar as forças à hora do jantar (ao meio dia). A vida do pastor era dura e a alimentação do pastor era parca, quase sempre à base de pão. A maior parte das vezes a refeição transportada era constituída por migas, cozinhadas com pão duro, pois é sabido que: “Pão mole depressa se engole” e “A pão duro, dente agudo”, bem como “Antes pão duro que figo maduro” e “É bom o pão duro, quando não há nenhum”. De resto: “Tudo com pão, faz o homem são”.

PASTOR DAS MIGAS – boneco de Estremoz,  da autoria das
barristas, irmãs Flores (2009).

Das migas disse João Falcato (1915-2005):

“Modestas, sem a fragrância da Açorda, sem o apreço agradecido do Caspacho, as Migas são o pilar da resistência duma raça aos convites estranhos para loucas transformações.” [4].

Actualmente as migas integram o rico património gastronómico alentejano, todo ele feito de sabores e de saberes determinados pelas condicionantes regionais e pelos contextos sociológicos de vida. Hoje comem-se migas em nossas casas, nos restaurantes e nos festivais gastronómicos, porque se gosta mesmo, por opção de paladar, ainda que se pudesse comer outra coisa. O que a esmagadora maioria das vezes não seria o caso do pastor, que as transportava no tarro. Porque os tempos de crise eram maiores que os de hoje e porque sendo o Alentejo o celeiro de Portugal, só era certo o quinhão de pão distribuído pelo lavrador.

[1] - RAPOSO, Hipólito. Do Folclore e sua Irmandade. 15 de Setembro de 1946. (In Hipólito Raposo, Modos de Ver. Ed. Gama. Lisboa, 1947).
[2] - CAMACHO, Manuel de Brito. Gente Rústica. Guimarães & Cª. Lisboa, 1921.
[3] – SANTOS, Victor. Cancioneiro Alentejano – Poesia Popular, Livraria Portugal, Lisboa, 1959.
[4] – FALCATO, João. Elucidário do Alentejo. Coimbra Editora Lda. Lisboa, 1953.

Publicado inicialmente em 22 de Março de 2010

9 comentários:

  1. Mau caro amigo Hernâni. Lembrei-me agora que certo dia fiz uma quadra alusiva ao tarro (e não só...).
    Permita-me que lha escreva pois poderá eventualmente servir para ilustrar a sua explanação:

    É na hora do acarro
    Que eu deito contas à vida
    Olho p'ró fundo do TARRO
    Não tenho água nem comida...

    Não é lá grande quadra,mas por acaso é uma das poucas que sei de cór e pareceu-me oportuno "dizê-la" aqui.
    Um abraço alentejano : demorado e grande!
    Fernando Máximo

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  2. Obrigado amigo Hernãni por esta lição
    do passado,espero que chegue até os mais novos um abraço.

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  3. Parabéns por todas as maravilhosas mensagens que publica no seu blogue e que tanto aprecio!

    Através delas aprendemos muito!

    Um abraço

    Maria da Cruz

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  4. Obrigada Hernâni por mais um belíssimo texto.

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  5. Avivaste muito bem as diversas fases do manufacturar de um Tarro.Essa ciência inventiva dos pastores alentejanos perdeu-se certamente no tempo.Cobiçada a prancha do dorso do montado, escolhida como prometida ao desvelo de aconchegar o estômago; falcava-se a mesma com perícia e paciência até ao apronto final. E lá vinha ele nos braços e caminhos do aprisco; ou nas contagens do Mantieiro; ufano de guardar o caldo da açorda ou as migas alouradas. Depois com simplicidade emprestava-se às barrelas de uma azedas e água do ribeiro para pôr a génese a brilhar.

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    1. É verdade, Francisco.
      Seja benvindo ao bloque. Volte sempre.
      Um abraço.

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  7. Seus conhecimentos sobre o tarro são um manancial de sabedoria.Aprendemos muito.Um abraço da M.Antónia

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    1. Muito obrigado pelo seu comentário. Os meus cumprimentos.

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