Era uma maravilha viajar de comboio e era tanto melhor se os comboios eram a vapor, com carruagens do tempo de D. Luís e que tinham divisórias personalizadas, para onde se podia entrar de um lado e do outro. Nelas eu ainda viajei com os meus pais nos anos cinquenta do século passado, para irmos para a colónia de férias da FNAT na Caparica.
A viagem de Estremoz para o Barreiro era mais comprida que a légua da Póvoa. Havia apeadeiros e mais apeadeiros, porque era necessário servir o Zé Povo que não tinha automóvel. Só os ricos tinham automóvel, porque os outros não tinham dinheiro para o pagar e não tinham crédito, porque depois não podiam pagar, tal como hoje acontece. Só que hoje têm automóvel, não têm dinheiro, os bancos estão mais ricos e nós não temos comboios. Temos é uma grande saudade disso tudo. E é daquelas saudades que doem.
Que eu saiba, as viagens de comboio só tinham dois inconvenientes: Uma delas é que não se podiam fazer necessidades durante a paragem nas estações, por causa de não adubar a linha férrea. A outra é que os amantes da pinga como eu, tinham que ter cuidado na altura do arranque ou da travagem do comboio. Não se podia levar o copo à boca nessa altura. Quem o fizesse ficava baptizado e não era com água benta, era com tintol ou com brancol.
Certa vez, vi um passageiro anafado de corpo e vermelhusco de rosto, de certo adepto fiel e correligionário de Baco, ficar com as malfadadas marcas baptismais de tom bordeaux a conspurcar-lhe a alva camisa. Só queria que vissem a agilidade com que foi à casa de banho mudar de camisa, antes de chegar à estação onde disse a mulher o esperava. Hoje estou convencido que ele e a mulher não seguiam o mesmo culto. Se soubesse o que sei hoje, ter-lhe-ia dito na ocasião:
- Olhe amigo, diga à sua mulher que a culpa não foi sua, nem do vinho. Foi da maldita lei da inércia de Newton.
Publicado inicialmente a 20 de Fevereiro de 2010
Texto inserido no meu livro "Memórias do Tempo da Outra Senhora"
CRÉDITOS DA FOTOGRAFIA
Locomotiva a vapor número 1, Dom Luiz, de duas rodas motoras e de sete pés de diâmetro. Fotografia sem data. Produzida durante a actividade do Estúdio Mário Novais: 1933-1983. [CFT003 075602.ic] - Galeria de Biblioteca de Arte-Fundação Calouste Gulbenkian.
Obrigado, Hernâni, por mais esta saborosa memória. A propósito, mando a versão de uma moda ouvida em Beja - Penedo Gordo, ano 80:
ResponderEliminarEu hei-de ir até Lisboa
Eu hei-de ir até lá
À procura duma vida boa
que eu procuro e não encontro cá...
Cheguei a Beja, embarquei no comboio
Que assoprava pela linha
Às vezes penso comigo... e digo:
Triste sorte que era a minha...
E depois de chegar ao Barreiro
Embarquei no vapor que passa o Tejo...
Chora por mim, qu'eu choro por ti
Já deixei o Alentejo
Tem piada que aconteceu uma situação engraçada e que agora já se pode divulgar. O grupo coral "os Amigos do Barreiro", de quem somos particularmente amigos, tiveram inicialmente uma farda com as camisas cor de vinho tinto. Diseram-nos mais tarde que o propósito era mesmo o de evitar as nódoas.
ResponderEliminarnão tenho duvidas que foi uma ótima ideia, quem diria que tinham tanta capacidade de resolver um problema desta envergadura..........
ResponderEliminarGostei Hernâni!
ResponderEliminarCongratulo-me com isso. Um abraço.
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